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OLHARES

A pele e os gestos: o que pulsa nas obras de Lucimélia Romão

Lucimélia Romão tem os olhos grandes, escuros, profundos. Não é possível ficar indiferente ao seu olhar

Por Priscila Miraz* | [email protected]

01/01/2024 - 8:30 h
A profundidade do olhar de Lucimélia atravessa, desmonta, coloca do avesso
A profundidade do olhar de Lucimélia atravessa, desmonta, coloca do avesso -

Lucimélia Romão tem os olhos grandes, escuros, profundos. Não é possível ficar indiferente ao seu olhar que parece te atravessar, e que muitas vezes, desconcerta. Conversando com ela, parece calma, fala tranquilamente. Mas é inquieta e trabalha num ritmo intenso, em vários projetos ao mesmo tempo, articulando parcerias entre artistas, coletivos e pesquisadores criando possibilidades para futuros trabalhos, ao mesmo tempo em que cursa a graduação em Artes Visuais na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e a pós-graduação em Artes na Universidade Federal de Pelotas.

Sua primeira formação em Teatro, na Universidade Federal de São João del-Rei, lhe possibilitou o estudo aprofundado da performance e a criação de seu trabalho mais conhecido, a performance instalativa Mil litros de preto: a maré está cheia, que já foi realizada em cidades de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, e que segue em circulação desde sua estreia em 2019.

A profundidade do olhar de Lucimélia atravessa, desmonta, coloca do avesso processos de violência perpetrados contra corpos negros, e nos mostra o horror através de uma poética que compõe elementos da performance, da instalação, da fotografia, da arte têxtil, numa imbricação de linguagens que utiliza de maneira a potencializar seu pensamento político e crítico.

A artista se posiciona eticamente com relação à complexidade dos problemas do Brasil contemporâneo, que são extensões do longo processo histórico da formação do país, como o genocídio da população negra, o feminicídio e as várias violências de gênero – especialmente contra mulheres negras –, a criminalização das vítimas e os processos de silenciamento em torno dessas questões por parte do poder público. Para ela, “a arte negra tem que ter uma dimensão sociopolítica”.

Em Mil litros de preto: a maré está cheia, a artista materializa dados estatísticos sobre o genocídio da população negra, principalmente de jovens periféricos, fundamentada nas práticas do Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado em 1944 pelo dramaturgo, sociólogo e artista visual Abdias do Nascimento, que também é referência para a artista com seu livro O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado (1978).

No texto de apresentação do trabalho, Lucimélia diz: “A maré está cheia. Cheia de balas. Cheia de corpos. Cheia de corpos negros atravessados pelas balas! Transborda dor, transborda morte”. Vista de cima, a instalação é composta por uma piscina de mil litros cercada por baldes pretos dispostos em quatro grupos que desenham o posicionamento de batalhões, em ordem. A cena é forte e cheia de tensão. Cada balde contém 7 litros de um líquido vermelho viscoso que remete em aparência e quantidade ao sangue que um ser humano comporta em seu corpo.

Na alça de cada balde está amarrada uma etiqueta de identificação de corpos, com número, nome, sexo, idade e causa da morte. Nessa instalação, a performer está em pé, em silêncio pesado, que prolonga a tensão do ambiente. A cada 25 minutos, tempo indicado no Atlas da Violência de 2017 como marcador estatístico da morte de um jovem negro no Brasil, um alarme toca, Lucimélia lê em voz alta a etiqueta de um balde e joga o líquido na piscina.

A ação segue até que todos os baldes sejam esvaziados. Com isso, a piscina transborda. A ordem que se via no posicionamento dos baldes agora é o caos do amontoado de baldes vazios empilhados. Na estreia da performance, que aconteceu em janeiro de 2019 no Centro Cultural da Universidade Federal de São João del-Rei, foram 60 horas de duração, em que a artista conversou com o público presente sobre o tema abordado, sendo interrompida pelo alarme que indicava que já havia passado 25 minutos e que deveria ler outra etiqueta e derramar outro balde na piscina, e por sirenes e sons de tiros, que também fazem parte da sonoplastia.

Ainda em 2019, a performance aconteceu em São Paulo, no Largo da Batata, com o nome alterado para Mil litros de preto – O largo está cheio, em parceria com as Mães de Maio, na inauguração da 9ª Mostra 3M de Arte – Manifestos por outros mundos possíveis.

Dessa vez, o trabalho teve duração de 1 hora e 30 minutos e contou com a participação de 33 mulheres, sendo duas atrizes convidadas, Marina Affares e Carolina Zeferino, três familiares de Lucimélia, sua mãe, tia e prima, e 28 mães do Movimento Mães de Maio, fundado pela ativista Débora Maria em 2006, em razão de uma chacina que matou mais de 600 jovens em periferias de São Paulo e Santos, entre 12 e 20 de maio.

A participação das Mães de Maio é, para Lucimélia, uma forma de apoiar o grupo e suas reivindicações, reforçando o caráter de manifesto que o trabalho carrega. Essa ação também ganhou a forma de um documentário que pode ser acessado pelo YouTube.

A obra de Lucimélia denuncia a violência de Estado contra os “corpos que não importam”, podendo ser abordado a partir do conceito de necropolítica, do filósofo camaronense Achille Mbembe (2016). Em seu livro Necropolítica, Mbembe atualiza os estudos foucaultianos sobre as políticas de morte para o controle populacional, que para sua efetividade estigmatiza os corpos que não geram lucro ao Estado, a partir da lógica neoliberal. Lucimélia nos faz prestar atenção no quanto a necropolítica se enraizou na burocratização que faz parte dessa lógica, se aliando a políticas de controle social.

As violências contra as mulheres é outro tema central em sua produção. Em E eu não sou uma mulher?, exposição de 2021, resultado da seleção pública de projetos do Ciclo de Mostras BDMG Cultural, Lucimélia e a fotógrafa Jessica Lemos abordaram o projeto de eugenia perpetrado no Brasil no início do século 20, apontando de que forma ele ainda está latente nas relações sociais e políticas que entremeiam as vidas de mulheres negras em diáspora, presentes em temas como o colorismo, a força de trabalho de mulher negra, o racismo e o sexismo. Nessa exposição, Lucimélia apresentou a fotoperformance e instalação Mulher de pau, discutindo a precarização e invisibilização das mulheres negras.

Em 2022, ela foi uma das ganhadoras do Prêmio FOCO ArtRio, sendo selecionada para uma residência artística em São Luís do Maranhão, a Residência Chão Slz. Como resultado dessa experiência, Lucimélia apresentou três produções. Crime de honra, uma bandeira do Brasil feita com as palavras crime de honra, traz a palavra mulher no centro, de onde escorre uma longa linha vermelha que se acumula no chão, criando uma poça vermelha intensa. Toda a bandeira é bordada pela artista, com uma barra que a contorna em crochê, realizada por sua mãe. Criou ainda duas séries de fotoperformances fotografadas pelo artista Dinho Araújo: Mortes anunciadas, pensada com o intuito de ser um memorial às vítimas de feminicídio, e Mulheres do Lar – Cazumbá para Iansã, um ritual pedindo pela vida das mulheres.

A violência contra a mulher, o sexismo e o machismo, que já faziam parte dos temas abordados pela artista, foram acionados aqui pelo encontro da artista com um livro sobre um crime de feminicídio que chocou o Maranhão, numa visita ao arquivo público da cidade de São Luís, e de entrevistas com três mulheres que foram responsáveis por acompanhar e ajudar a resolver um caso de feminicídio em Alcântara, não permitindo que o assassino saísse impune.

Nessas obras, Lucimélia também remonta aos aspectos estruturais da violência contra as mulheres. A bandeira Crime de honra (argumento historicamente utilizado para inocentar homens do assassinato de mulheres), nas palavras da artista “se configurou como uma instalação para demarcar esse ciclo infinito que é a violência contra mulheres”.

Já em Mulheres do Lar, a artista articula uma performance ritual para suspender o feminicídio, buscando interromper esse ciclo. Para 2024, além da participação na exposição Dos Brasis – Arte e pensamento negro, a perspectiva da artista é circular com a exposição individual Como se o corpo fosse documento, que reúne a bandeira e as duas fotoperformances. Para quem não quer ver, o olhar profundo de Lucimélia, que nos direciona pro centro latente de tantas feridas sociais e políticas, incomoda.

*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa necessariamente a opinião de A TARDE

*Doutora em história cultural e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

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