MUITO
“A temática do racismo tem que estar sempre em evidência”, diz promotor de Justiça
Por Gilson Jorge

A Defensoria Pública do Rio de Janeiro divulgou esta semana um estudo que sugere seletividade racial e social no sistema penal brasileiro. O número de apenados negros que conseguem liberdade provisória é de 27,4%, contra 30,8% dos brancos. E 80 % dos presos em flagrante ouvidos pelos pesquisadores declaram-se pretos ou pardos. Na Bahia, onde a população negra é relativamente maior, 94% dos presos em flagrante entre 2015 e 2018 são não brancos, segundo levantamento feito no ano passado pela Defensoria Pública do Estado. Para discutir a seletividade penal, A TARDE ouviu o promotor de justiça Jader Santos Alves, mestre em segurança pública pela Ufba.
A comoção mundial pelas imagens do assassinato de George Floyd por um policial branco com o joelho sobre seu pescoço causou algum impacto na polícia baiana? Na sequência, foram observados casos muito parecidos no Brasil. Como evitar que a violência policial contra pessoas negras seja naturalizada?
O assassinato brutal de George Floyd impactou várias partes do mundo, inclusive o Brasil e a Bahia, reforçando a discussão que já vinha ocorrendo aqui sobre a questão do racismo na atividade policial. Mas, se fizermos uma retrospectiva, nem precisaríamos do caso Floyd para fomentar essa discussão, pois, infelizmente, o Brasil é pródigo em assassinatos de negros em ações policiais, e uma parte nada desprezível deles ocorreu sem observância das restritas hipóteses da legítima defesa e do estrito cumprimento do dever legal que poderiam excluir a ilicitude dessas ações. Vivemos em um estado de guerra permanente, embora difuso, devido à lógica predominantemente repressiva da política de segurança pública no Brasil, que ignora as raízes mais profundas da violência numa sociedade brutalmente desigual, consumista e mergulhada numa crise de valores. Nesse contexto, a polícia é convocada para resolver, entre aspas, as crises cada vez mais complexas que poderiam ser evitadas com políticas públicas inclusivas e a consequência é essa que já conhecemos: encarceramento em massa, fortalecimento da criminalidade organizada, milhares de assassinatos de jovens e, também, lamentáveis baixas entre os policiais, os quais também vivem o temor constante de ser mortos. Para mudar esse quadro, precisamos, antes de tudo, priorizar os grandes problemas nacionais, como a desigualdade social, e reconhecer a persistência do racismo, principalmente o estrutural e o institucional. A partir daí, temos que priorizar políticas públicas inclusivas e protetivas, principalmente para os negros e outros grupos socialmente vulneráveis, além de adotar medidas mais imediatas. Por exemplo, pode-se adotar a prática de filmar as abordagens policiais, com o fito de prevenir eventuais abusos em abordagens, algo que eu já havia proposto na conclusão da minha pesquisa em 2017 e que, atualmente, tem sido discutida na mídia, sendo que alguns estados brasileiros já implantaram ou estão implantando. A filmagem das abordagens é importante para os policiais que agem dentro da lei, pois eles ficam protegidos de falsas acusações de abusos. Além disso, temos que reforçar a atuação das corregedorias das polícias e o controle externo do Ministério Público, que é um dever constitucional.
Para muitos garotos negros da periferia, a aproximação de uma viatura policial representa o perigo de perder a liberdade ou até a vida. Essa sensação é informada de alguma maneira aos policiais? O senhor tem jovens na família? Já viveu algum drama familiar envolvendo a abordagem da polícia?
Todos os jovens relataram esses temores nas entrevistas que fiz. O medo das abordagens é uma constante. Embora reconheçam que há bons policiais, os jovens sempre vivem a expectativa de se deparar com um policial que age fora da lei. No momento das abordagens, a juventude negra evita até falar do que sentem para os policiais não pensarem que estão com medo porque são criminosos ou têm algo ilícito a esconder. Eu tenho parentes jovens. Um familiar já passou por uma abordagem violenta há muitos anos, quando esse tema da violência policial ainda era pouco discutido. Hoje, o problema está mais evidenciado no meio acadêmico e na mídia também.
No último dia 26, completaram-se dois anos desde que o senhor ofereceu denúncia contra Mafran de Souza, acusado de matar com oito tiros, e sentindo prazer no sofrimento da vítima, um adolescente que teria lhe roubado pássaros. A TARDE noticiou que do ano passado para este ano as vendas de armas subiram 620% na Bahia. Como vê a possibilidade de expansão da violência banal?
O caso Mafran Souza Moura foi muito marcante na minha carreira, pois o homicídio do jovem foi brutal e praticado por um motivo banal. O processo demorou anos para ser julgado. Na verdade, eu já ingressei no caso com o processo em curso e consegui a condenação do acusado pelo Tribunal do Júri a 20 anos de prisão, que foi mantida pelo Tribunal de Justiça. O caso Mafran é um triste exemplo da denominada “banalização da violência”, que atinge principalmente os jovens pobres. Nesse ponto, penso que o incremento da venda de armas para os cidadãos, embora defendido por alguns sob o argumento da necessidade de legítima defesa, tem potencial para, de forma geral, provocar mais homicídios banais e até passionais, e mais especificamente no âmbito doméstico contra as mulheres. Segundo a pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no ano de 2019 foram registrados mais de 41 mil homicídios no Brasil, grande parte por armas de fogo, mas em anos anteriores esses números chegaram a 63 mil. É preciso muito cuidado, pois, em se tratando de segurança pública, qualquer política pública deve ser bem pensada e precedida de pesquisas científicas para evitar efeitos colaterais graves para a sociedade.
Nos Estados Unidos, noticiou-se que jovens negros temem usar máscara durante a pandemia para não serem vistos como assaltantes pelos comerciantes e outros clientes. O senhor notou, de alguma forma, esse movimento aqui na Bahia?
Eu não tenho informações sobre essa problemática específica das máscaras em jovens negros aqui na Bahia. A minha pesquisa foi realizada em 2017, muito antes, portanto, da pandemia. Mas, nas entrevistas que realizei, os jovens já relatavam que sua indumentária poderia torná-los ainda mais vulneráveis às ações policiais violentas. Alguns jovens disseram que preferiam evitar usar bonés, mochilas e roupas de certas marcas para evitar serem associados a criminosos por policiais.
Em 2013, durante as jornadas de junho, no Rio de Janeiro, o catador de material reciclável Rafael Braga foi detido por levar uma pequena porção de maconha e um vidro de Pinho Sol. Foi condenado e preso. Ele foi o único preso durante o evento e permanece na cadeia. Além da abordagem policial, como é possível fazer com que um jovem negro e pobre receba da Justiça o mesmo olhar que um jovem branco que, mesmo flagrado em crime, às vezes nem é chamado de traficante?
Esse é um ponto crucial. Na minha pesquisa, eu abordo justamente essa problemática da “naturalização do preconceito”, ou seja, paira na sociedade a ideia de que alguns grupos sociais podem ser alvos das ações policial e da Justiça (no nosso caso, os jovens negros) e outros não. Isso é reflexo do racismo estrutural que ainda persiste em nosso país, decorrente de um longo e doloroso período escravocrata, cujas bases sociopolíticas ainda não se desfizeram completamente. Eu não conheço o caso do Rafael Braga citado na pergunta, assim, não posso opinar. Mas, de forma geral, é fato que o jovem negro que é levado ao sistema de Justiça já tem um grande desvantagem em relação ao jovem branco. Em face disso, essa temática do racismo tem que estar sempre em evidência e deve ser considerada como uma possível variável pelos membros do sistema de Justiça (promotores, advogados, defensores e juízes). Deve-se analisar caso a caso, com muita cautela para evitar injustiças. A questão da prova de como ocorreram os fatos é fundamental e isso também é um grande problema em vários processos. A Justiça não pode atuar na lógica do “dois pesos, duas medidas”: deve aplicar os mesmos critérios de julgamento para todos, indistintamente.
O que levou o senhor a se debruçar sobre as abordagens policiais a jovens negros?
O tema selecionado para a minha pesquisa no mestrado em segurança pública da Ufba decorreu da atual conjuntura paradoxal. Por um lado, a juventude negra brasileira vem gozando de proeminência na política legislativa na seara da proteção aos direitos humanos estabelecidos pela Constituição Federal de 1988 e por leis ordinárias, notadamente pelo Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) e pelo Estatuto da Juventude (Lei 12.852/2013), que determinam que o Estado deve tratar a juventude como sujeitos de direitos e deverá adotar medidas para coibir a violência policial incidente sobre a população negra, assegurando-lhe o direito à participação social e política, dentre outros. Porém, na prática, a juventude negra forma o grupo social mais afetado pela ação policial, como vem sendo demonstrado em diversos estudos quantitativos e estatísticos. E pouco se sabe sobre esses jovens em relação à representação na atividade policial e como tais atividades, na interação social, constroem sua simbologia acerca da própria polícia.
Qual o seu diagnóstico?
De fato, os jovens negros têm sido sistematicamente excluídos do debate sobre segurança pública. Diante desse paradoxo, a pesquisa apresentou a proposta de inversão do modo de pensar o controle social, para conhecer e compreender os pontos de vista dos jovens negros sobre a atividade policial, dos “invisíveis sociais”, ampliando assim o espectro do debate sobre segurança pública em detrimento da percepção repressora demasiadamente reducionista. O objetivo foi fomentar a discussão, com o intuito de compatibilizar as atividades policiais, tão importantes para a sociedade, com a Constituição Federal, as leis e os tratados de direitos humanos. Compreendemos as dificuldades da polícia, a falta de estrutura adequada, os enormes riscos das atividades, as baixas remunerações de algumas categorias, mas não se pode consentir com abusos.
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