MUITO
A volta ao mundo da capoeira: combativa, livre
Por Maria Clara Andrade

Esporte, dança, luta ou prática de lazer? Dependendo de quem fala, a capoeira pode ser descrita por qualquer um desses conceitos e mais alguns outros. Para não deixar margem de dúvidas sobre o que é a capoeira, existem algumas outras definições que também se encaixam bem: uma manifestação cultural única, representação da memória de um povo, símbolo de resistência e, desde 2014, Patrimônio Imaterial da Humanidade, título concedido pela Unesco.
Mesmo com tal reconhecimento, promover a prática da capoeira continua sendo um exercício contínuo de amor à tradição. Nas comunidades de Salvador, mestres e mestras se esforçam para manter seus espaços ativos com recursos cada vez mais escassos. É o caso do mestre Angola, líder da Associação de Capoeira Angola Corpo e Movimento.
Descendo a Ladeira do Porto da Lenha, próximo ao estaleiro do Bonfim, está a associação. Com representantes em diversos estados brasileiros e até nos Estados Unidos, no bairro em que nasceu, a associação ocupa apenas uma pequena sala. O aluguel do espaço é dividido ainda com o presidente da associação de moradores da comunidade.
Funcionário público aposentado, mestre Angola não recebe um tostão pelo trabalho enquanto mestre de capoeira, a única contribuição que pede às crianças é para os seus uniformes. “A capoeira, aqui, nós trabalhamos pelo social. Não vou dizer que a gente não precisa de dinheiro, precisa, mas o nosso trabalho é mais ajudar as crianças, tirar as crianças da rua, educar através da capoeira”, explica o mestre.
Mestre Angola conta que não conseguiu fazer a inscrição da associação para o recebimento do auxílio concedido pela Lei Aldir Blanc para trabalhadores da cultura. Com a pandemia, as aulas de capoeira pararam e, até agora, apenas os adultos estão frequentando a associação, em menor quantidade de pessoas e todas com máscara. “Então nós vamos levando devagarinho para ver até o fim do ano o que vai acontecer. A nossa preocupação é com as crianças”, diz ele, que espera o momento se acalmar para retomar as atividades com as crianças do bairro.
O auxílio ficou, realmente, só na imaginação de alguns mestres capoeiristas. Mestre Zé do Lenço, da Associação de Capoeira Angola Relíquia Espinho Remoso, dá aula em três localidades de Salvador, sendo o Mercado de São Miguel, na Baixa dos Sapateiros, sede da associação. “Não recebi nada, ao contrário, eu faço pagar. Eu pago alvará de funcionamento, pago ata todo ano, pago tudo”, queixa-se.
Aos 71 anos, o mestre é aposentado e trabalha ainda como artesão, fazendo instrumentos musicais. Dá aula para crianças e idosos, mas desse exercício não tira dinheiro nenhum. O seu grupo de capoeira é mais um que está extrapolando fronteiras, tendo representantes em outras duas cidades do Brasil, em Portugal e no Uruguai.
Pastiniana
Saindo do Mercado de São Miguel e indo em direção ao Rio Vermelho está o Instituto Nzinga, com sede instalada no Alto da Sereia, um dos quilombos urbanos de Salvador. Além da prática de capoeira, através do Grupo Nzinga de Capoeira Angola, o instituto também trabalha com pesquisa, realiza atividades de promoção social e educação. Mestra Janja, capoeirista desde 1982, fundou o grupo há 25 anos.
Ela conta que a organização não possui fins lucrativos e todos os mestres envolvidos com o grupo não recebem dinheiro pelo trabalho. Mestra Janja também é discípula dos ensinamentos do mestre Pastinha – principal difusor dos princípios da capoeira angola –, e a tradição pastiniana é a base da organização que vai muito além do ensino da capoeira apenas como esporte ou lazer.
“Nós fizemos com que o nosso trabalho de capoeirista recuperasse a capoeira no contexto das lutas sociais envolvidas, sobretudo, com a defesa da liberdade e da dignidade humana. E, nesse caso, nós atuamos principalmente no combate do racismo e do sexismo, entendendo o sexismo como desmonte do modelo cis-hétero-patriarcal desde da capoeira e de todas as formas de violência cometidas contra as mulheres e pessoas LGBTs”, explica mestra Janja.
Em um sistema de autogestão, o instituto tem como premissa “não ser dependente de políticas públicas”, segundo explica a mestra. Com sedes em 10 países e em diversos estados brasileiros, cada integrante contribui como pode, quando pode.
“A gente tem o nosso trabalho conduzido a partir de práticas que são resultantes do envolvimento dos integrantes desse grupo. Tem núcleos com um nível de vulnerabilidade maior do que outros, como é o caso do Povo de Moçambique, ou, no caso brasileiro do núcleo de Jataí, o mesmo de Salvador”.
Mestra Janja explica que boa parte dos trabalhos do grupo está voltada para a criação de campanhas sociais. No início da pandemia, durante um período de cinco meses, o núcleo de Salvador envolveu-se em mais uma, com arrecadações feitas no interior do próprio grupo, e assumiu a subsistência de 20 famílias na comunidade do Alto da Sereia.
Regulamentação
Depois de ser considerada crime à Patrimônio Imaterial da Humanidade, agora mais um novo capítulo na história da capoeira está tentando ser escrito. Novamente entre controvérsias. O projeto de lei 3640/2020, apresentado pelo deputado federal Lafayette de Andrada (Republicanos-MG), reacendeu polêmicas. O projeto visa a regulamentação da capoeira, proposta refutada por diversos mestres e mestras.
Ainda em 1976, mestre Pastinha, em entrevista ao Jornal O Globo, afirmou ser contra a transformação da capoeira em esporte, o afastamento de suas raízes.
Anos depois, a discussão ainda está em pauta, e quem fala dessa vez contra a proposta é mestra Janja: “Existe uma tentativa de regulamentação, porque existe uma economia da capoeira, nessa que eu chamo de comunidade em trânsito. O que se quer ao final é ter o controle dessas ações, dizendo o que pode e o que não pode ser feito, acima de tudo quem está e quem não está apto a dar aula de capoeira. Para nós, isso é uma perda muito grande e que mais uma vez a comunidade da capoeira se mobiliza para tentar impedir que isso aconteça”.
A mobilização ocorre também nas redes sociais, em que um abaixo-assinado contra a PL conta com a assinatura de mais de quatro mil pessoas.
Mestre Angola também emite a sua opinião sobre a proposta: “Vai tudo seguir uma cartilha feita pela regulamentação, a capoeira vai ser direcionada pelo sistema, pelo governo, e vamos ficar completamente ao deus-dará”. Para ele, independentemente da classificação da prática enquanto luta, esporte ou dança, “a capoeira tem um fundamento profundo. É como se fosse o candomblé. É um poço fundo, que só quem sabe o segredo da capoeira é quem vem de lá de baixo. Capoeira é ancestral”.
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