MUITO
Abre aspas: “O usuário de álcool não se sente um usuário de drogas"
Por Gilson Jorge
Foram necessários três anos para concluir a redação do conteúdo de entrevistas a 42 acadêmicos usuários de drogas e, depois, reduzir o texto original de 570 páginas nas 332 que formam o livro Consumir e ser consumido, eis a questão! (Editora Devires, R$ 46,90). “Foi uma montagem cinematográfica”, define o autor Tom Valença, psicólogo e doutor em ciências sociais pela Ufba. A obra é o resultado de suas pesquisas de mestrado e doutorado em que entrevistou, respectivamente, professores e alunos de diferentes cursos da universidade para investigar as suas relações com drogas lícitas e ilícitas. Não foi fácil. Mesmo usando pseudônimos, muitos interlocutores tiveram receio de expor a natureza do consumo de maconha, por exemplo, com medo de estigmatização. O livro de Valença, que está chegando ao mercado, aponta o que realmente deveria estar preocupando as autoridades, em lugar do baseado, como o crescente uso de ansiolíticos e antidepressivos, especialmente durante a pandemia. Nesta entrevista, o pesquisador coloca na roda a discussão sobre drogas legais, como álcool e fármacos, que podem ter um efeito mais devastador na saúde mental.
O senhor estudou primeiro os estudantes e depois os professores? Como foi o processo de pesquisa?
Houve uma inversão metodológica na construção do livro. De fato, no mestrado eu estudei os professores e, posteriormente, como a carga metodológica, a bagagem, era a mesma, não mudei. Acabei o meu mestrado em setembro de 2005 e em dezembro entrei no doutorado para pesquisar os estudantes. Mas por uma questão de organização, no livro eu dispus de forma diferente. Comecei apresentando os estudantes.
Os resultados foram parecidos?
Em alguns aspectos. Inicialmente, percebi que houve uma grande aderência por parte de professores, e quando comecei a pesquisar os estudantes acreditei que fosse acontecer a mesma coisa. Só que não. Houve uma grande resistência por parte de alguns. Por quê? O status do professor consagrado, com uma carreira, salário, etc. e tal, permitia que eles pudessem entrar numa seara complexa como essa sem medo de retaliações. Com os estudantes, isso não foi tão simples. Porque a maior parte ainda está em começo de carreira... algumas pessoas verbalizaram isso, que não queriam se expor, com medo de posteriormente serem prejudicados, apesar de eu garantir sigilo. Trabalhei com pseudônimos, ninguém foi exposto. Mas a partir dessa diferença na recepção, os resultados também tiveram diferenças significativas, relacionadas ao status. O estudante ainda buscando consagrar o seu espaço, incluindo alguns deles que enveredaram depois na área de redução de danos, trabalhando para que esses problemas sejam reduzidos, tinham uma grande preocupação em construir sua carreira. Enquanto os professores não tinham esse problema, à exceção dos professores da área médica, uma seara que foi muito difícil.
A que se deve?
Sabe-se notoriamente, por informações de terceiros, que há um grande consumo de psicoativos, inclusive lícitos, de fácil acesso, que o pessoal da área médica tem. Mas a grande maioria dos professores da área de saúde não quis entrar em contato para não se expor. Só no caso da área médica que consegui entrevistar estudantes, mas não professores. E, de uma forma geral, o controle do estilo de vida dos professores é diferente dos estudantes. Pela organização, até pela idade, são pessoas com idade mais avançada, já a vida estruturada, em que o uso de substâncias psicoativas interfere menos do que na vida dos estudantes.
Os estudantes temem uma certa estigmatização…
É... em alguns grupos isso foi mais fácil, porque utilizei uma metodologia bola de neve. Funciona assim: um interlocutor vai indicar outros usuários da sua rede de relações porque ele tendo contato com essas pessoas é muito mais fácil que eles confiem nele do que em mim. Isso me possibilitou entrar em certos territórios que de outra forma eu não teria conseguido. Essa aproximação metodológica só funcionou na medida em que eu construí uma relação de confiança com eles. Eu tive que estabelecer vínculos sólidos para que as portas realmente ficassem abertas. Isso é uma questão da sociologia, da antropologia. Eu, sendo da psicologia, mergulhei muito nesse mundo das ciências sociais.
A abordagem fez diferença.
Abri essa porta porque é um problema que acho muito sério. Há pouco tempo, a psicologia passou das ciências humanas para as ciências da saúde. E isso, para mim, causa um terrível incômodo porque o aspecto central das ciências humanas é a capacidade de refletir sobre os problemas sociais. E quando a psicologia passa para as ciências da saúde, larga esse aspecto reflexivo. Então, fui buscar isso nas ciências sociais para construir vínculos sólidos. Um tema como esse é complicado. Eu tomei umas porradas. Gente que marcou e furou, me lembro até de uma professora que eu conhecia, propus que ela fosse uma interlocutora, e ela sumiu. Em algum momento encontrei com ela no lançamento de um livro e ela vira para mim e diz: ‘E aquele seu projeto maluco?’. Eu fiquei chocado, né? Meu projeto não é maluco, não! Eu já concluí aquele mestrado e fiz meu doutorado. Pensei: caramba, as pessoas me viam assim! Eu não tenho carta branca para entrar nesse território, foi essa impressão que tive. Mas, à medida em que o projeto foi avançando, as pessoas começaram a confiar em mim. Viram que eu não estava ali para fazer sensacionalismo.
Não querendo dar spoiler do seu livro, vamos detalhar um pouco essas conversas. Quais as principais conclusões a que você chegou nas conversas com os estudantes em relação ao uso de drogas?
Havia um grupo que ainda estava bem dependente de família, de pai e mãe, que não trabalhava, e nesse caso era uma percepção um pouco menos sólida, as pessoas estavam mais a fim da gandaia. Não estavam comprometidas com um discurso político. Não dá para pensar uma questão de saúde mental sem pensar que é uma questão política. Por que há a proibição de umas substâncias e não de outras? Não é necessariamente porque causa de mais ou menos dano, mas por interesses políticos e econômicos. Na medida em que eu percebia que havia um grupo de estudantes com menos interesses nesses aspectos políticos, e outro grupo de estudantes já enveredando pelo discurso político mais do que até pela própria busca do prazer, eu percebi duas coisas diferentes. Há aqueles que estão comprometidos politicamente com o uso do seu próprio corpo, da sua própria identidade, para uma transformação social, e há um grupo menor, que não estava interessado nessa questão, mas apenas em se divertir.
E quanto aos professores?
Em relação aos que aderiram ao projeto, há quase que 100% de interesse na transformação social. Na ideia de que não querem mais ter que se esconder para fazer uso de uma substância, sabendo das consequências e assumindo as responsabilidades, e que isso tem que ser transformado. Tanto que boa parte de um total de 42 interlocutores, entre estudantes e professores, eu diria que 35 têm um compromisso político de buscar a transformação. Em relação às estruturas de vida, desses 42 apenas dois estudantes tiveram problemas em relação à sua saúde mental, com crack, não estavam bem, foram internados pela família. Pensando em conclusões, eu diria que a imagem de que o uso de substâncias, como disse recentemente o ex-ministro da Educação [Abraham Weintraub], que geram balbúrdia, isso não é fato. São pessoas que produzem, alguns estudantes já estão trabalhando. A ideia de que o uso aliena é uma construção social falaciosa. Vale salientar que pesquisei também substâncias lícitas, como o álcool e os fármacos. Principalmente porque nos dias atuais, diferentemente do que se propaga por aí, a maior quantidade de dependência química está associada ao uso de fármacos. São ansiolíticos e antidepressivos. É onde há mais dependência química. A droga mais vendida no Brasil não é o crack, é o rivotril. Mas isso não se divulga muito. E é uma quantidade cada vez maior de pessoas dependentes de rivotril. E os antidepressivos, principalmente agora na pandemia. São pessoas estruturadas buscando organização dos seus aspectos cotidianos, não deixam de lado família, trabalho, estudo, amizade para consumir uma substância.
Entre as drogas ilícitas, supõe-se que a mais usada seja a maconha…
Sim. No sentido da redução de danos, é a que menos compromete a produção laboral e os vínculos. E inclusive muitos dos que pesquisei estavam envolvidos com as marchas da maconha aqui em Salvador, que já aconteceram em alguns anos; estão envolvidos com sites na internet para o cultivo indoor, o autocultivo. Alguns já pensam na possibilidade do uso recreativo, como acontece em 15 estados estadunidenses, onde há também o uso medicinal. Inclusive há um grupo em Salvador que está trabalhando nesse sentido.
Esta semana, o ator Fábio Assunção, que se tratou da dependência do álcool, comentou o fato de a maconha não estar permitida, mas que a embriaguez, por seu lado, é vista como algo “astral”. Que o jovem quando vai a uma festa e toma todas isso é encarado como uma coisa positiva...
Eu trabalhei no Caps AD (Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Outras Drogas) Gey Espinheira durante três anos. O público-alvo era de usuários abusivos de substâncias psicoativas. A portaria que dava as coordenadas do Caps dizia que a demanda deveria ser espontânea. Quando aparecia um menor, era levado para o Conselho Tutelar, mas os adultos que apareciam, os mais velhos, eram usuários de álcool de longa duração, 20, 30 anos. E um dos problemas mais graves que eu percebia, que não é só deles, é o seguinte: o usuário de álcool não se sente um usuário de drogas. Para eles, droga é o que é proibido. Por ser lícito, ele acha que pode enfiar o pé na jaca, tomar todas. Isso não é um problema. Esse é um erro muito grave porque álcool é droga e das que mais causam dependência. O senso comum relaciona: se é proibido é porque não presta; se é liberado, presta. Não é exatamente assim que a coisa funciona. Há interesses em deixar que o álcool, o tabaco e os fármacos sejam lícitos. Não vou nem entrar em detalhes da questão econômica, mas a gente sabe que os três maiores bilionários do Brasil são da AmBev. Em relação às drogas do planeta como um todo, o que mais se vende são os fármacos. Como o Brasil, de uma certa forma, tem uma cultura muito tradicional, isso tem sido refletido no nosso debate político. O Brasil é conservador e, diria até, reacionário, a gente volta àquela coisa da casa-grande. Enquanto o senhor toma sua pinga, o escravo no meio do trabalho fuma a maconha. A harmonia da relação entre casa-grande e senzala está mantida. Mas se a maconha sai da senzala e vai para a casa-grande, aí há um barulho. No caso do álcool, entre os mais velhos, o problema é quem tem 20, 30 anos de abuso contínuo do álcool. E entre os mais jovens, tem o que nós chamamos de binge (palavra em inglês que representa o uso excessivo de uma determinada substância em um curto período de tempo). Um jovem de 18 a 20 anos, todo pocado, que malha, estuda, tem seu carro, a família banca, mas chega na sexta-feira ele toma uma grande quantidade de álcool num curto espaço de tempo, ele perde os seus freios. Começa a ficar agressivo, ataca as garotas ao redor, quer dirigir...
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