MUITO
Adriana Varejão: "É um momento de ficar e fazer coisas"
Por Marcos Dias | Foto: Adilton Venegeroles / Ag. A TARDE

Há mais ou menos uma década, Adriana Varejão conseguiu ter contato com uma obra sua que não via há muitos anos, adquirida por uma colecionadora. Constatou que nunca havia saído da caixa. “Foi a situação mais triste que tive que lidar em relação à minha obra”, reconhece a artista. O sentimento é quase o oposto do que está vivendo agora, quando, pela primeira vez, consegue fazer uma mostra itinerante, fora do eixo Rio-São Paulo, reunindo 20 obras, de mais de 30 anos de carreira, na exposição Adriana Varejão – Por uma retórica canibal, com curadoria de Luísa Duarte, em cartaz no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA) até o dia 15 de junho. “Estou mais feliz de fazer uma exposição no MAM da Bahia do que se estivesse fazendo no MoMA, de Nova Iorque”, diz ela. Considerada um dos maiores nomes da arte contemporânea brasileira, a carioca tem obras no The Metropolitan Museum of Art e no The Solomon R. Guggenheim Museum, em Nova Iorque (EUA), no Hara Museum of Contemporary Art, Tóquio (Japão), na Fondation Cartier pour l’art contemporain, em Paris (França), no Inhotim Centro de Arte Contemporânea (MG), entre outros espaços, e títulos como a Ordem do Mérito Cultural pelo Ministério da Cultura do Brasil (2011) e a Medalha de Chevalier des Arts et Lettres (2008), do governo francês. Nesta entrevista, ela fala sobre a importância da Bahia na sua produção, a logística que envolve uma exposição como a que está realizando, descolonização e como vê o Brasil neste momento.
Quando foi a primeira vez que você sentiu que o que fazia era arte?
Até hoje eu não sinto. Estou falando sério. Eu acho que todo mundo nasce artista, na verdade. Vejo desenhos das crianças, essa falta de medo de fazer as coisas, experimentar, a curiosidade... Acho que são posturas muito importantes para a gente levar na vida, o tempo todo, em todos os aspectos e em todas as áreas. As crianças vão ficando formatadas e vão esquecendo e perdendo contato com essa postura diante das coisas e vão aprendendo a se enquadrar dentro de clichês, acham que erram menos e acredito que o processo artístico, de se tornar artista, ou ter uma postura artística diante do mundo, é justamente você se livrar desse tipo de amarras, dessa concepção viciada e caminhar novamente para esse caminho, essa lógica mais da coragem e da experimentação desse olhar fresco para as coisas, sem preconceitos, um olhar direto; então, é algo para a vida inteira.
Você chegou a se matricular em 1981 em um curso de engenharia. Ficou pouco tempo. Já era uma certeza do seu caminho?
Eu fiz faculdade, fiz mais que um ano, tranquei no terceiro ano, mudei de faculdade e fui fazer desenho industrial, que eu achava que era um pouco mais próximo do que eu queria, engenharia é exata demais, e depois entrei num curso no Parque Lage de pintura, tranquei desenho industrial também; achava que ia voltar para a faculdade, mas nunca voltei. Era uma época muito ruim das universidades, porque logo após a ditadura as universidades estavam muito esvaziadas. Tenho vontade de voltar para a universidade hoje. Depois, ainda tentei ver a faculdade de belas artes, mas era um ensino muito acadêmico e resolvi fazer por mim mesma. Aluguei um ateliê e comecei a pintar. Eu lia muito, ia ao cinema, foi um período que aprendi e absorvi muito, viajei pela primeira vez para fora do Brasil, nunca tinha saído, foi um período rico de aprendizado apesar de não estar na faculdade.
Eu estou mais feliz agora de fazer uma exposição aí, no MAM da Bahia, do que se estivesse fazendo no MoMA, de Nova York. Juro.
Com a exposição Por uma retórica canibal, é a primeira vez que está mostrando um conjunto da sua obra fora do eixo Rio-São Paulo. Isso tem um sentido especial para você?
A gente fez uma exposição numa instituição em Fortaleza, na Unifor, há uns três anos, e a Luísa Duarte foi curadora, mas nunca tive uma exposição em Salvador ou na Bahia, é uma loucura isso porque toda minha obra é baseada aí. Meu conhecimento, o desenvolvimento da minha linguagem, do barroco brasileiro principalmente, fala da Bahia, Pernambuco, Maranhão um pouco menos, mas foram cidades que me deram tanto, tanto, que eu estou mais feliz agora de fazer uma exposição aí, no MAM da Bahia, do que se estivesse fazendo no MoMA, de Nova York. Juro. Porque acho que o trabalho nunca voltou pra aí. É o resultado de toda a obra, dos lugares que fui, que me inspirei e aprendi. Era uma coisa, assim, completamente impossível, e quando me fizeram essa proposta, a ideia primeira foi do MAM, justamente por conta de referências, impacto cultural para a sociedade e, em seguida, o MAM de Recife. Foi uma exposição que eu me envolvi muito, porque não são obras inéditas, são obras desde 1994 e, por razões que a gente conhece, elas saem muito pouco do eixo Rio-São Paulo. Elas vão até para fora do Brasil, mas as pessoas têm problemas com toda a infraestrutura que o Brasil tem, de aceitar empréstimos dessas obras, uma exposição de uma logística complicada, cara, as peças têm que ter seguro, elas não pertencem a mim, pertencem a coleções particulares. Liguei para vários colecionadores pessoalmente. Foram umas quatro ou cinco obras que intervi, falei: ‘É importantíssimo a gente fazer essa exposição neste momento do Brasil, é importante não deixar a peteca cair’. Então, foi uma exposição que eu me envolvi nesse sentido, da importância de fazer em Salvador neste momento. Obviamente, a gente contou com o apoio da Galeria Almeida Dale, que partiu deles a ideia de fazer exposições com artistas brasileiros. Acho que eles pretendem fazer com outros artistas, para fora do eixo, em que as pessoas têm mais acesso, nem tanto, mas têm mais acesso às obras e exposições de arte contemporânea.
Costuma contar com apoio dos colecionadores?
Conto. Mas, às vezes, não. Tem caso que a pessoa não quer, escrevo cartas e dizem: “Não, infelizmente não vou poder emprestar”.
E, para você, é tranquilo se desapegar de um trabalho seu?
Eu entendo a insegurança das pessoas de emprestar, porque acontecem acidentes, aviões são roubados, principalmente no Brasil; as pessoas ficam sem essa obra em casa, têm que preencher formulários, e geralmente são pessoas que têm muitas obras e sempre estão emprestando, então, tem um momento que não é uma coisa fácil. Mas, acima disso, as pessoas têm a compreensão de que elas possuem um bem cultural e que se elas não dividem isso... Elas têm um papel na constituição cultural de uma coletividade. Acho que a maioria tem consciência disso, que possui aquela obra, mas tem que dividir com o público, museus, e que isso também é importante para o próprio histórico da obra, que faz parte de uma trajetória. Uma obra que fica dentro de uma caixa, num galpão, como acontece muitas vezes... Eu até entendo que, às vezes, a pessoa tem uma relação com a obra em casa e não queira emprestar, mas, às vezes, fica dentro de uma caixa em galpões. Outro dia, tirei uma obra que eu não via há muitos anos e que a colecionadora comprou e a obra nunca saiu da caixa. Isso já tem uns 10 anos. Foi a situação mais triste que tive que lidar em relação à minha obra. Era quase como se fosse o caixão da obra em terra. Tanto que a gente pediu a obra de volta, pediu para revender essa obra. Geralmente, eu tenho a localização dessas obras, a não ser quando é mercado secundário, comprada em leilão. Geralmente, eu sei quem é o dono, tenho relação com os colecionadores. Quando acho que a exposição é importante, eu ligo, vi que o empréstimo não está sendo fácil, eu ligo e converso. Eu mesma estou emprestando muitas obras minhas, tenho no meu acervo particular, guardo algumas obras que acho importantes.
Vendo o conjunto que está sendo exposto, com obras de 1992 a 2016, e tendo uma imagem de você como uma artista jovem, me espantei: há obras de Adriana do século passado! O que mudou na sua sensibilidade com a virada do século?
Sinto que está mudando a cada ano. Sinto uma mudança enorme no mundo de uns cinco anos para cá. Das coisas do século passado, nem se fala. Mas sinto que está existindo uma nova consciência, movimentos grandes de minorias com agendas raciais, sociais, de gênero e tudo isso não era uma questão tão evidente no século passado, nem há 10 anos. Acho que a obra é uma obra aberta, ela tem suas contradições. O mundo muda, a gente tem que ver se aquela obra feita lá atrás, como é que dialoga com o público hoje, se as questões dela continuam presentes. Eu lido com questões da história , da nossa formação como povo e identidade, então, é muito bom ter uma interação com o público de diferentes lugares, até para fazer novas obras, expor as contradições ou a força da obra, sentir o que exatamente está acontecendo.
Reconhece um tema em particular que atravessa sua produção?
Acho que seria a descolonização. Esse é um argumento que a Luísa Duarte [curadora] inclusive começa a exposição. Hoje em dia é um tema muito presente, e comecei a lidar com isso no meio dos anos 90, quando não se falava muito a respeito. Minha produção, então, trata um pouco sobre isso, porque tem um olhar canibal sobre a história. Quando a vítima deixa de ser vítima e tem um movimento de contraconquista em relação ao seu conquistador, no caso, a Europa, uma visão fresca que não se curva diante das concepções eurocêntricas da história, de maneira geral.
Você distinguiria essa ideia do canibalismo, a despeito de fazer arte atual, contemporânea, da antropofagia de Oswald de Andrade?
Assim, em relação ao modernismo, tenho contato, óbvio, com o Manifesto Antropofágico, com Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, mais de Visão do paraíso do que Raízes do Brasil, mas depois disso tem o Pixinguinha, do Rio, o próprio barroco nas igrejas que me ensinou muito, tem também o Lezama Lima, que amo, que tem uma obra barroca com essa ideia da contraconquista, e outro autor, que quase tenho um altar para ele, é o Severo Sarduy, então, é um somatório disso tudo. Nunca me vinculei unicamente ao Oswald. Tento correr atrás dessa história, esse lugar é o lugar que me inspira, realmente, é um lugar que tem força. Passa pelos paulistas na Semana de Arte, mas passa batido também quando vai para muitos outros lugares.
Pensando na fabulosa série Tintas Polvo (2013-14) em que você fabricou tintas com o modo que as pessoas identificam cores de pele, a mestiçagem também é um tema da sua obra. Como você se define nas categorias de cor do IBGE?
Essa pergunta é difícil de responder. Existe um trabalho que está na exposição que é a raiz deste trabalho, Ex-votos e peles. Eu fui para Alagoas fazer uma residência, fiquei um mês, e esse trabalho foi feito em 1994 e ele tem uma taxonomia de cores de pele, penduradas nuns pregos. Foi o primeiro trabalho que fiquei atenta a essa questão. Mas toda a continuidade, que inclui Testemunhas oculares, X, Y e Z (que são três retratos meus como índia, moura e chinesa), e Tintas Polvo, que é um trabalho mais recente, não está; tem este que é a raiz. O importante desse trabalho do Polvo é quando eu ia comprar tinta no século passado, a tinta a óleo cor de pele era uma tinta rosa. E sempre estava assim, em todas as línguas, flesh tone, e comecei a colecionar tintas de todas as partes do mundo e era aquele rosa. Só encontrei uma tinta italiana que se chamava testa di moro, cara de mouro, que era marrom; então, eu tinha esse projeto desde o final dos anos 90 de fazer uma cor de pele que fosse as várias cores... Mas que cores são essas? Porque não é a cor que interessa, mas como você se nomeia, então, é uma questão mais de nomenclatura do que de cor. A identidade não é uma cor, é uma nomenclatura. Você perguntou como é que eu me nomeio, é difícil porque eu me nomeio a cada dia de um jeito. Eu tomei contato com o trabalho da Lilia Schwarcz no meio dos anos 90 e comecei a ler O espetáculo das raças, e tomei conhecimento desse Censo que teve no Brasil em 1994 e nesse censo as pessoas se autonomeavam. Qual é a sua cor? Em vez de escolherem categorias estanques, as pessoas eram livres para dizer qual a cor. Isso originou uma tabela Pnad [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios] com 136 cores diferentes. Então, quando eu fui fazer minhas cores eu dei esses nomes, mas a cor que significava esses nomes foi uma viagem minha. Porque você chamar uma pessoa de ‘queimado de sol’, que cor é essa? A importância desse trabalho é mais o nome do que a cor, e a parte mais difícil também foi traduzir isso para o inglês, porque o nome é bilíngue. Então, tem uma que é ‘baiano’, então, que cor é essa? E também ‘queimado de praia’ e ‘queimado de sol’, são duas nomenclaturas diferentes, tem ‘quase branca’, ‘cor de burro quando foge’, tem ‘morena bem chegada’. Então, tem coisas como ‘morena jambo’, a gente sabe exatamente do que está se tratando, ‘sapecada’... mas é um nome, uma identidade maior do que uma cor.
Quando você aceita expor em um lugar você leva em consideração vínculos ideológicos dos patrocinadores ou realizadores? Uma construtora implicada em caixa-dois, por exemplo?
Quando é muito evidente, sim. Mas nem sempre é. Se a gente vai expor num museu e tem um grupo de 200 trustees no museu não é meu trabalho avaliar. Eu lido com mercado primário, exponho em galerias que vendem meu trabalho, não consigo ter uma ficha policial da pessoa que comprou. E quando é nos Estados Unidos é muito difícil. Eu não dependo muito de dinheiro incentivado, não vivo de Lei Rouanet, por exemplo. Há pouco tempo bastava você ser artista e sair com aquele carimbo da Lei Rouanet para ser ladrão. Mas não vivo de Lei Rouanet, vivo de venda de obras em galerias. Então, é pouca coisa de incentivo via alguma exposição ou retrospectiva em museu, no caso do MAM do Rio, acho que é vinculado à Lei Rouanet e tal, mas é a escolha de levar o trabalho ao público, que não tem nada a ver com isso. Então, isso envolve contradições, falando de maneira geral, mas não me lembro de nenhum caso de ter me visto diante de uma construtora me dando dinheiro, nenhum caso que consiga identificar.
Cada um tem o direito de achar o que quiser, mas isso não tira o direito de um artista, no campo da arte, fazer o que acha que tem que fazer
Em relação ao seu trabalho Cena de Interior 2, que integrou a exposição Queermuseu, realizada em 2017, o que a recepção da mostra representou para você?
Aquela confusão? A gente iniciou o movimento do #342 Artes [Contra a censura e a difamação], que teve uma reação muito forte a isso na época. Significou que eu fui veementemente contra isso e a favor de uma liberdade no campo da arte, sempre me posicionei assim. Não acho que as pessoas devem gostar do que faço, e não devem questionar, talvez devam questionar, não gostar, cada um tem o direito de achar o que quiser, mas isso não tira o direito dos artistas, ou qualquer pessoa, no campo da arte, fazer o que acha que tem que fazer. A arte é o único campo de experimentação total numa sociedade. Você está lidando ali quase que num espaço ficcional em que é possível experimentar. Acho que você limitar esse espaço é impossível, uma contradição que gera doenças sociais terríveis.
Já pensou ou considerou, em algum momento, parar ou se sentiu ameaçada em relação à criação?
Não. Eu sempre reagi. Eu sofri muita agressão naquela época. A página do Facebook do meu ateliê era uma loucura, agressões, ameaça de morte, e, como veio, foi. No Instagram, eu era muito ativa, respondia muito, argumentava, mas aquilo me tomava um tempo e uma energia enormes, e hoje em dia estou mais calma, preciso me dedicar, é uma questão de tempo e energia, e virou um campo de guerra realmente. Então, estou numa fase um pouco menos mídia social. Era uma batalha muito grande. Mas, voltando àquela questão dos cinco anos para cá e da questão racial e de etnias, eu sou uma pessoa privilegiada, branca, e tenho uma determinada visão. Meu trabalho é a partir dessa visão, nunca vou negar isso, e acho que o trabalho tem que estar exposto a outras visões e, talvez, ele tenha contradições. Eu não me exponho para vender meu peixe. Acho que me exponho no sentido de expor, e não impor. Para a construção de uma obra, ela nunca pode estar terminada, tem que ser sempre sensível às vozes, sem imposições e numa atitude muito de escuta de como as pessoas recebem isso.
A antropóloga e escritora Lilia Schwarcz fala que sua “inspiração vem da história, o que a torna uma intérprete da cena contemporânea”. Quanto ao Brasil, o que está pensando quando diz que “é preciso não deixar a peteca cair” neste momento?
A gente tem uma falência muito grande de instituições sociais no Brasil, por falta de dinheiro, por falta de recursos. E agora a gente tem um governo muito complicado, com pouquíssimo investimento em educação, essa catástrofe; praticamente zero apoio à cultura, ao contrário, é um governo que vê a cultura como um inimigo, os artistas como inimigos; então, a gente está vendo a falência muito grande em torno da gente. Acho que é momento de não falar assim, ‘ah, vou embora daqui’; acho que é um momento de ficar e fazer coisas.
Adriana Varejão – Por uma retórica canibal | Até 15 de junho (terça a sábado), 13h às 18h. Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA) Av. Contorno, s/n, Solar do Unhão | Gratuito | Classificação indicativa: Livre
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Siga nossas redes