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Afeto e unidade nas obras de Viga Gordilho
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Por Celso Cunha Neto*
O tempo é sua matéria, seu gozo e sua angústia. Num tempo de hipervisibilidade e hiperinformação, eis Viga Gordilho, uma artista que modela seu tempo, cuida com afeto do que a afeta, seleciona parcelas marcantes, embala para presente e nos oferta, indistinta e generosamente, como a suscitar, alertar para a importância do vivido e de suas marcas, grifes, cicatrizes, beleza e poesia.
Viga Gordilho, filha de professora de Desenho, iniciou sua vida profissional como professora, percorrendo por todos os níveis da docência. Formação que orientou e determinou toda a sua produção artística, que se confundem e se complementam.
De início, interessou-se pela cultura dos povos originários do nosso Brasil, pesquisando sua produção artística e aprofundando-se na sua antropologia. Realizou um mapeamento de exemplares de terras e seus específicos pigmentos, sem correspondentes na Bahia. Conhecimento que transferiu para suas telas e objetos.
Como toda boa mestra, seu entusiasmo pelo seu objeto de ensino contagia seus alunos, colegas e quem tem a oportunidade de conhecê-la.
Nascida e criada próxima ao mar, mar do Oceano Atlântico que nos une ao mundo e principalmente à África, Viga também singrou vários rios, neles e em suas terras próximas ou distantes construindo uma obra enquanto artista e educadora, obra que impressiona pela densidade, tamanho e qualidade. Assim como pela profundidade e coerência conceitual e temática, sem deixar de observar o apuro e qualidade estética que resultam em pura poesia visual.
Enquanto professora da Escola de Belas Artes (EBA-Ufba), ela pesquisa sistematicamente novos e velhos pigmentos, corantes e aglutinantes, documentando e divulgando seu trabalho em publicações e revistas especializadas.
Essa sua metodologia científica resultou no rico um arquivo que Viga doou, em 2019, para o Laboratório de Investigação de Materiais da EBA, disponibilizado aos pesquisadores e estudantes de Artes Visuais.
Na década de 90, ela realizou no Instituto Feminino da Bahia e no Museu Costa Pinto exposições que marcaram e sinalizaram seu tema central, a memória e seus afetos, assumindo a vanguarda no tratamento desses temas na Bahia.
Durante sua vida de artista pesquisadora por excelência, ela caminha contaminando culturalmente o ambiente com captações em todos os níveis possíveis, passeando do seu confortável e seguro ambiente acadêmico, ou visitando e vivenciando comunidades do Recôncavo baiano até suas referentes ancestrais da África do Sul.
Arriscando-se a experimentações socioantropológicas, regeu grupos de estudos através de escritas poéticas, danças, performances, cenografia e curadoria, somando sua longa e excepcional experiência com a criação coletiva.
Sua arte policultural, desenvolvida a partir do seu interesse pela produção artística indígena brasileira, a levou naturalmente a outras culturas e tomou dimensões globais a partir da Europa, seja na Espanha, Portugal e Alemanha ou na savana multilinguística Sul Africana, em busca quiçá de referências ancestrais.
Toda essa experiência foi compartilhada em exposições em Salvador e em outras cidades do Brasil e do exterior em diversas instituições culturais.
Materializar nossos afetos e o que nos afeta, emocional e espiritualmente durante nossa jornada da existência, creio ser esse um dos objetivos da nossa professora/artista/pesquisadora doutora Viga Gordilho, ou de maneira carinhosa, Viga.
Ela expressa fisicamente experiências sensoriais, torna tangíveis momentos, experiências, encontros e descobertas únicas, que porventura nos afetaram de maneira superficial ou profundamente. Desse modo, traduz com esmero artesanal e rigor científico, memórias e metáforas utilizando materiais dos mais diversos, sejam naturais ou sintéticos industrializados, na busca constante desse “material com que se fabricam os sonhos”. Quer sejam materiais brasileiros ou, quiçá, amealhados cuidadosamente das suas viagens de pesquisa para outros países, compondo belas obras valendo-se dos seus contrastes e principalmente sua contextualização e significado.
Viga é dotada de uma capacidade ímpar de lembrar e respeitar o passado, desde sua infância, na casa dos seus avós e pais, suas lembranças familiares, suas primeiras e marcantes experiências de vida, revelando desde cedo seu talento e sensibilidade para as Artes Visuais.
Sua mãe, Maria Sanches de Almeida Gordilho, professora de Desenho e Trabalhos Manuais do tradicional Colégio Severino Vieira, artista, dona de bela e disciplinada caligrafia, também era boa desenhista e pintora figurativa.
Ela também transferia seus elegantes desenhos para os seus delicados trabalhos manuais de renda e bordados. Foi sem dúvida sua primeira mestra e inspiradora em sua futura carreira de professora e artista visual.
De sua mãe, Viga Gordilho herdou o domínio da agulha de bordar e coser, e outras ferramentas manuais. Habilidades manuais fundamentais na produção de seus belos objetos e telas, suas instalações e interferências.
Essa necessidade imperiosa de preservar e materializar poeticamente o passar do tempo, levaram e levam Viga Gordilho a produzir uma imensa obra que documenta visual e simbolicamente seu tempo vivido.
É visível o carinho e o cuidado no trato do objeto artístico, com escolhas típicas de uma pesquisadora e com rigor científico no planejamento e organização, classificação e contextualização de sua produção artística.
Causa admiração constatar, que ao longo dos 50 anos dedicados a essa imensa produção, valendo de uma enorme variedade e quantidade de materiais e praticamente todas as técnicas de utilização de materiais e técnicas artísticas conhecidas, inclusive fotografia, a professora Viga Gordilho mantém uma coerência e unidade ímpar nessa sua soberba produção.
A literatura, a poesia principalmente, sempre permeou, permeia e confunde-se com a obra visual de Viga, convivendo em plena harmonia e complementando-se. Como ela sempre comenta, sofreu forte influência da poesia de Cecília Meireles e de Clarice Lispector, principalmente em seu livro Água Viva.
Creio ser consenso que a quarta dimensão, o leitmotiv de seu rico percurso e produção, é o tempo, suas memórias.
Nessa superestrutura, Viga Gordilho constrói com solidez sua coerente obra, seja em doces momentos de sua feliz infância ou seu rico universo de referências familiares, narrados com detalhes de uma poderosa memória. Efetuando, naturalmente, ao longo do tempo, rearranjos naturais devido às circunstâncias, uma retranscrição.
Navega no limiar entre uma boa prosa, em sua dupla acepção e uma sessão de análise psicanalítica onde consegue narrar com naturalidade suas lembranças e também inverte o posto, no momento que assume o lugar na escuta, traduzindo sua fala através de seus trabalhos, ricos de conteúdo e respostas.
Na contramão da arte abstrata, Viga trabalha tentando decifrar seus enigmas. Embora lide com temas abstratos e conceituais, ela os traduz por meio da escolha dos materiais contextualizados e plenos de significados.
Criou um sofisticado alfabeto, diria até linguagem particular, para comunicar com generosidade seu universo particular. Um universo íntimo que, a rigor, trata-se de nosso universo de dores, alegrias, surpresas e encantamentos que a vida nos proporciona.
O que nos envolve e seduz na medida em que racional ou institivamente percebemos e nos identificamos, embora persista sempre “o umbigo do sonho”. Essa, como vejo, é a verdadeira função da obra de arte, comunicar as pulsões naturais dos indivíduos e, consequentemente, cumprir seu papel na sintonia com outro espírito atento.
Viga Gordilho, artista, educadora por excelência, mulher, mãe, avó, é uma presença feminina marcante e referência nas artes visuais baianas.
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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