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09/01/2023 às 7:00 - há XX semanas | Autor: Joaquim Araújo Filho*

OLHARES

Afrofuturismo no Salão de Artes Visuais da Bahia

Após um hiato de oito anos – a última edição tinha ocorrido em 2014 –, o evento retornou mais plural

Salão consolida-se como um dos mais importantes instrumentos de incentivo à difusão de produção artística nos espaços do estado
Salão consolida-se como um dos mais importantes instrumentos de incentivo à difusão de produção artística nos espaços do estado -

Esteve em cartaz até o recente mês de dezembro, no Museu de Arte da Bahia, o 64º Salão de Artes Visuais da Bahia, evento promovido pela Fundação Cultural do Estado (Funceb), vinculada à Secretaria de Cultura do Estado (Secult - BA). Após um hiato de oito anos – a última edição tinha ocorrido em 2014 –, o evento retornou mais plural na participação dos artistas selecionados (cotas raciais e indutores de gênero foram implantados pela primeira vez no edital), e mais diversificado nas mídias artísticas apresentadas, fruto de um longo processo de diálogo com comunidades artísticas baianas iniciado ainda em 2019, considerando os 27 Territórios de Identidade do Estado.

O Salão de Artes Visuais consolida-se como um dos mais importantes e longevo instrumentos de incentivo à difusão de produção artística nos espaços do estado. Além de ser uma potente plataforma de visibilidade para artistas emergentes, bem como para alguns veteranos. Participar de um criterioso evento como esse é uma oportunidade que o artista encontra de ampliar seu repertório comunicacional, como também com a possibilidade de se inserir no cenário mercadológico das artes.

A recente mostra coletiva contou com 42 artistas de 25 cidades diferentes, abarcando todos os macroterritórios do estado da Bahia. Observamos também uma multiplicidade de linguagens artísticas: da pintura à escultura, passando pela fotografia, desenho, gravura, assemblage, videoarte, instalação, cerâmica, tapeçaria, além de intervenção urbana. A qualidade das obras ressalta o alto nível criativo e inventivo da presente produção baiana das artes visuais. Alguns artistas, particularmente, me chamaram atenção pelo plausível diálogo de suas obras com o movimento Afrofuturista. Destaco os trabalhos de Pinta Silva, André Medina, Roque Boa Morte e Igor Rodrigues.

Ficção científica

O Afrofuturismo, construído como movimento artístico, surgiu depois do termo aparecer no livro Flame Wars: The Discourse of Cyberculture, do norte-americano Mark Dery, em 1994. Embora não fosse um afrodescendente, Dery questionava a razão de tão poucos afro-americanos estivessem envolvidos no gênero da ficção científica. Na busca por uma resposta, ele dialoga num dos ensaios do livro Black to the Future, com o escritor Samuel R. Delaney, o músico Greg Tate e a crítica de cultura Tricia Rose, todos negros. Foi quando ele cunhou o termo Afrofuturismo, fazendo referência à “significação afro-americana que se apropria de imagens de tecnologia e de futuro protético aprimorado”. Em outras palavras, Dery defendeu o pensamento de que as comunidades negras têm muito a contribuir com futuras tecnologias e a cultura no futuro.

As ideias afrofuturísticas foram primeiramente postas em prática por artista da diáspora africana na música, seguida pela literatura, cinema e, mais recentemente, pelas artes visuais e outras expressões artísticas, vislumbrando-se um futuro onde os negros empoderados são os personagens principais, sem o aniquilamento de suas ancestralidades. Assim, o Afrofuturismo projeta um futuro para as populações negras marginalizadas. Essa narrativa se torna mais poderosa quando associada a elementos visuais.

Embora não existam requisitos rígidos para uma obra se alinhar ao Afrofuturismo, Fábio Kabral destaca alguns elementos considerados norteadores para sua condição, como o protagonismo de personagens negros, afrocentricidade, narrativa especulativa e autoria negra. Para além de um gênero artístico e estético, o Afrofuturismo também é um movimento filosófico, social, e de certa forma político, visto que tensiona os eventos históricos do passado, como a escravidão, na construção de um futuro no qual os negros estejam potencializados.

Hoje, o Afrofuturismo é global. Na Bahia, ele reverbera de diversas formas, ressignificando a presença da população negra na sociedade, de periférica à centralidade na construção de pensamentos. O Festival AfroPunk e o coletivo LGBTQIA+ Batekoo são exemplos práticos dessa conexão.

Perspectiva

Analisar as obras do 64º Salão de Artes Visuais numa perspectiva Afrofuturista é uma forma de potencializá-las, e não de encaixá-las numa corrente artística dentre os muitos “ismos” que a história da arte tem criado na sua ânsia de sistematização. Assim, elenco algumas das características das obras que dialogam com o léxico Afrofuturista.

A Verrugosa Ribeirinha é a primeira obra que avistamos na entrada da sala central da exposição. É uma pequena escultura (33 cm x 9,5 cm), do artista Pinta Silva, em madeira maciça, talhada à semelhança de uma carranca tão comum em regiões ribeirinhas do Rio São Francisco.

A carranca é o resultado de um cruzamento de influências do imaginário cristão português com a africano e ameríndio. Muitas vezes utilizada como amuleto de proteção dos navegantes. Aqui, o artista constrói assimetricamente a figura mítica com olhos esbugalhados, narina arreganhada e dentes protuberantes, em formas desproporcionais ou exageradas que nos remetem à estatuária tradicional Iorubá em madeira.

Não à toa, muitas vezes as carrancas são associadas ao Orixá Exu, cultuado nas religiões de matriz africana. Exu está associado ao movimento inicial e dinâmico que leva à propulsão e ao crescimento.

Continuando pela sala a esquerda, encontramos quatro fotografias digitais da série Figas, mãos ancestrais, do artista Roque Boa Morte. O ponto de partida do artista é a ressignificação imagética da figa, amuleto de origem etrusca/fenícia que foi incorporado à tradição afro-americana.

Seu processo de pesquisa junto a duas comunidades de candomblé de tradição Ketu (Ilê Axé OjúOnirê e Ilê Íyá Áse Ìyámase, respectivamente em Santo Amaro e Salvador) contribuiu na criação imagética da figa associada a elementos simbólicos de cada Orixá.

Assim, temos Figa Òsògìyàn, Figa Òsún, Figa Òsálúfàn e Figa Sàngò. A encenação da imagem com mãos em forma de figa junto a elementos de adorno como braceletes, pedras e metais, além de diferentes planos de fundo, recriam potentes símbolos de identificação coletiva do povo negro. A coloração saturada das imagens imprime uma atmosfera fictícia à narrativa.

Na mesma sala, duas outras fotografias, agora em preto e branco, do artista André Medina me chamam atenção. Com o título Odoyá a Potência do Feminino em Mim, elas retratam a modelo Miriele Paulo representando o arquétipo da Orixá Yemanjá, cultuada em diversas partes do Brasil.

Pelas tradições Iorubás, ela está associada à fertilidade e maternidade. Toda a imagem é construída, desde o figurino, maquiagem, penteado até acessórios. Embora as imagens sejam ao ar livre, elas me remetem ao tradicional estilo de fotografia de estúdio da África Ocidental.

Numa terceira e última sala, à direita daquela central, encontramos três desenhos/pinturas de Igor Rodrigues da série Me Olhe nos Olhos. São eles: Eu Sempre Estive Entre Aspas, Habitar Nos Avessos de Si e A Sua Arma Branca Não Vai Me Destruir. O artista usa carvão, tinta acrílica, giz pastel sobre papel. Racismo e subjetividade são elementos-chave dessa série aqui apresentada.

A partir de questionamentos e vivências pessoais, o artista tensiona o que significa ser negro e homem LGBTQIA+ em uma sociedade racista e homofóbica. O artista busca compreender o impacto do olhar do outro na sua própria subjetividade.

A visitação ao 64º Salão de Artes Visuais se mostrou uma prazerosa experiência, além da constatação da formidável qualidade de uma nova geração de artistas visuais baianos que desponta no cenário. A expografia apresentada pelo Museu de Arte da Bahia também foi primorosa e criativa, usando diferentes cores e suportes para acrescentar dinamismo na mostra, ainda que um pouco prejudicada pelo espaço pequeno. Quem sabe numa próxima edição possam ousar mais, utilizar outras áreas do museu, outras instituições, ir extramuros, ocupar a cidade!

*Museólogo e doutorando em Estudos Étnicos e Africanos (Ufba)

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