CRÔNICA
Antes do Além, Edgard
ró-Ã*
Por ró-Ã*
Faz mais de três décadas. Ele estava no palco do Teatro do Icba proferindo liberdades e eu o vi alçar voo. Confio no testemunho dos meus olhos. Portanto, não se deve esperar de mim isenção; meu lado será sempre o do amor e identidade que com ele estabeleci naquele instante, como se estivesse finalmente conhecendo em carne e osso a alma que me arrebatou a vida inteira através dos artistas que admiro.
Um macho que nunca foi alfa, nem beta, talvez sequer gama. Um menino escorado em muitas ocasiões, acusado de ser o frouxo que admite ser. Cheio de fios desencapados, volta e meia provocando curtos-circuitos às vezes mortais.
É assim que Edgard Navarro se descreve. Mais conhecido como cineasta, também possui enorme talento com as palavras. Enquanto o escuto, penso, ao contrário, na fortaleza que o constitui e o defende de seus próprios tormentos. Fracos somos todos os incapazes de nos atracar dia após dia com feras mitológicas e abatê-las.
Tudo nele não é normal, quando deveria ser. Impossível respirá-lo com moderação. Em sua presença, nada se mexe, porque o furor que se desprende da figura franzina não autoriza outros movimentos. É também capaz de leveza e bom humor de raríssima claridade, mesmo quando aborda questões que intimidariam os maiores e convictos picões.
Edgard é inexequível, mas ainda assim eu estava imbuída da ousadia de escrever sua biografia. A ideia foi minha e me senti honradíssima por ele ter aceitado. Seria, sem dúvida, uma aventura excepcional chegar mais perto de quem compartilha o espírito com aqueles que sempre me enfeitiçaram pela coragem de cavucar, até as profundezas, o solo farto da vida – “Esse grande mistério e pra quê?” – conseguindo assim criar obras transcendentais, retratos 3X4 da Humanidade.
Sentamos, pela primeira vez, a fim de conversar já na intenção do livro, numa sexta-feira, 22 de novembro de 2019. Havíamos marcado às três, mas ele chegou adiantado e precisou me esperar acabar de fazer o almoço. Comecei a ouvi-lo às duas e meia, pouco interferindo, e seguimos até as seis. Ainda sem gravar, meio tonta. Saltávamos de acontecimentos recentes a outros com alguma distância, apreciando a intimidade entre dois indivíduos que não se viam desde 2016, porém sempre habitaram as mesmas redondezas da existência.
Edgard completou 75 anos no Dia das Crianças e eu parabenizei meus 67 em 28/10. Sabemos que já demos testa com a maior parte desta empreitada e estamos tratando de apaziguar as inquietações que resistem. Ele ainda empreende uma busca feroz pela Verdade, embora reconheça que ela se multiplica, como uma célula se divide até dar origem a um ser vivo completo.
Acabamos deixando a biografia de lado: uma certa timidez por parte dele, um acontecimento que me destrambelhou a vida. Quem sabe a gente possa agora retomar o projeto. À época, queria que eu ouvisse outras pessoas e suas versões sobre episódios controversos que os envolveram. Não desejava a última palavra, apenas estar pacificado no dia que a morte viesse.
Em mim, resta o propósito de fazer com que todos possam conhecer melhor o indivíduo extraordinário de quem tenho a felicidade de ser amiga, certa de que será bravo alento para imoderados – entre os quais aqueles que, agora mesmo, esperneiam pela primeira vez no ar. Sejam bem-vindos – e encouraçados, caso lhes acompanhem a valentia indomável e a dor de nos servir de inspiração. Para o Amor, para o Bem, para tudo que sempre foi fora de moda, mas reside um pouco em cada um.
Que lhes seja dado algum talento para a Arte, como força para aguentar o rojão. Ou a garra de lutar e morrer por grandes causas, insuflados pelo mesmo ardor de perseguir o Belo. Preparados para ser os piores inimigos de si mesmos – porque, agredidos por todos os lados, investirão contra o que trazem de mais precioso. E só apelando a Deus, que os criou e os conhece, poderão resistir, desafiando: Porra, cara? Que merda é essa, seu Escroto?
Tenho pra mim que Deus gosta de quem o peita. E envia uma armadura invulnerável aos que se atrevem. Atrever-se custa muito. Assim, meu amigo, você é um abençoado. E a minha admiração, florescida instantaneamente numa noite em 1992, certamente fará companhia à de muitos que virão.
*Ró-ã é autora de Dor de facão & brevidades
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