MUITO
Arte e ativismo indígena na 11ª Flica
Feira homenageará indígenas no ano em que se comemora os 200 anos da Independência do Brasil na Bahia
Por Gilson Jorge
Em 1865, o escritor cearense José de Alencar publicou Iracema, livro de uma trilogia indianista que inclui O Guarani e Ubirajara, e se tornou um marco da literatura brasileira ao retratar o encontro amoroso de uma nativa, da nação Tabajara, com Martim, um colonizador português.
Uma metáfora da formação do povo cearense e, por extensão, da identidade nacional, ainda que talvez tivesse sido conveniente criar um trisal com uma pessoa de origem africana.
Mas os tempos definitivamente são outros. As expressões 'índia', 'índio' e 'índios', imortalizadas em canções de José Asunción Flores e Manuel Ortiz, Caetano Veloso e Renato Russo foram substituídas pelos termos indígena, aborígene e povos originários.
E o estereótipo da virgem dos lábios de mel deu lugar à representação de guerreiras que lutam contra a aprovação do Marco Temporal – projeto parlamentar que pode facilitar a ocupação de territórios indígenas por agropecuaristas – e estão disputando espaços de poder na política e nas universidades. Além disso, mulheres indígenas protagonizam as suas narrativas através da arte e reivindicam o reconhecimento pela sua luta para a expulsão dos colonizadores.
No ano em que se comemoram os 200 anos da Independência do Brasil na Bahia, a 11ª edição da Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), cidade decisiva na luta contra os colonizadores, homenageia mulheres indígenas que se destacam pela sua arte e ativismo. O evento, que acontece de 26 a 29 deste mês, tem como tema este ano Poéticas Afro-indígenas no Bicentenário da Independência do Brasil na Bahia.
Um dos destaques da programação é Yacunã Tuxá, uma ex-estudante de Letras da Ufba que, no primeiro ano do Governo Bolsonaro, começou a fazer desenhos com temáticas dos direitos humanos, especialmente a defesa dos povos originários e da população LGBTQIAPN+.
Nascida na cidade pernambucana de Floresta, onde estava a maternidade mais próxima da aldeia Dzubukuá, em Rodelas (BA), a jovem foi batizada como Sandy Eduarda Santos Vieira.
"Colocar um nome indígena era como marcar aquela criança, pelo tanto de racismo que a gente sofria", afirma Yacunã, nome que adotou posteriormente, quando se entendeu como artista e sentiu a necessidade de ter um nome com a sonoridade de seu povo. "Eu pedi para ser rebatizada em um ritual na aldeia e recebi de presente Yacunã, que significa filha da terra", conta a ilustradora e artista visual.
Um de seus trabalhos é a ilustração da capa do livro Chapeuzinho Verde, de Maria Lúcia Takua Peres, adaptação do conto popular europeu disseminado primeiro por Charles Perrault e depois pelos Irmãos Grimm, que modificaram o final. Na versão de Maria Lúcia, a protagonista empreende uma jornada para salvar o planeta.
Como artista visual, a jovem baiana participou no último dia 7, em São Paulo, da mostra Eu não sou uma artista? Grafittis Pretes Indígenes, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, na Bela Vista.
Yacunã também escreve poesia, embora ainda não tenha publicado. Mas foi quando chegou à Universidade que sentiu a necessidade de explorar outras linguagens e romper com os estereótipos indígenas na literatura.
"Eu via isso na graduação e me incomodava muito, a imagem de Iracema, o Guarani, que não tinham nada a ver com quem eu era, uma mulher indígena real", pontua Yacunã.
Naquele momento, ficou nítido para ela que era importante subverter o imaginário sobre os povos originários do Brasil. "Há uma demanda. Existe um racismo muito claro na sociedade brasileira contra os povos indígenas. A gente vive em constante defesa do nosso território", afirma a artista.
Yacunã considera que os povos que estiveram na linha de frente durante a batalha pela Independência ainda não puderam baixar as armas e permanecem na luta por respeito.
"Essas pessoas ainda estão brigando, não só por seus territórios, mas pela existência de um país mais diverso", afirma a ilustradora, para quem, na verdade, não existe um Brasil, mas brasis, em que cabem uma pluralidade de formas de vida.
Cearense e Tabajara como a personagem Iracema, a escritora Auritha Tabajara teve que lutar contra outro estereótipo quando chegou a São Paulo, em 2010. O nome da sua nação havia virado sinônimo de piada, devido ao programa de TV Casseta & Planeta, que criou as Organizações Tabajara. O programa saiu do ar no mesmo ano em que a escritora se mudou para o Sudeste, mas as piadas com o seu nome seguiram.
A luta pela sua identidade começou muito cedo, ainda na escola, em sua terra natal, Ipueiras. Auritha foi criada pelos avós maternos desde que sua mãe, que deu à luz aos 15 anos, precisou sair de casa. O avô e a avó, que não eram alfabetizados, ensinavam à pequena neta histórias em forma de rima transmitidas oralmente.
A menina, que aos 6 anos já sabia ler e escrever, anotava as rimas, ensinadas principalmente pela avó, e as repetia, orgulhosa, para os colegas na escola, o que desagradava os professores. "Eu sempre ficava de castigo. Mas, sem saber o que era, eu já fazia cordel desde criança", conta Auritha, a primeira mulher indígena a ser reconhecida como cordelista.
Ela vive em Guarulhos com seus dois filhos e produziu em 2020 o documentário autobiográfico A mulher sem chão, que ainda aguarda patrocínio para ser lançado. A vida na maior região metropolitana da América do Sul não afeta a sua essência. "Eu vim a São Paulo em busca de trabalho. Eu saí da aldeia, mas a aldeia não saiu de mim", afirma a autora de Coração na aldeia, pés no mundo.
Depois de trabalhar como faxineira, babá, cuidadora de idosos e terapeuta holística, hoje ela já consegue se manter com eventos literários com o cordel e contação de histórias indígenas. "A agenda está apertada", comenta Auritha.
Pessoas indígenas ainda se sentem discriminadas em diversos setores da sociedade, mas, diferentemente da escola primária de Auritha, não há mais como calar os povos originários. No artigo Um indígena na Academia Brasileira de Letras, publicado no último dia 10 em A TARDE, celebrando o novo imortal, Ailton Krenak, o professor Efson Lima, doutor em direito, afirma que a escolha "sintetiza o desejo coletivo do Brasil diverso e que tem como desafio respeitar os povos originários".
Mãe Terra
Outra convidada da Flica, a professora e escritora carioca Eliane Potiguara ainda acredita que esse desafio será vencido e que acontecerá a cura da terra, a despeito das consequências já presentes das mudanças climáticas, como as recentes inundações no Sul do país e a massa de ar quente que elevou a temperatura para 40 graus no oeste baiano, algo inusual para o mês de setembro.
"Acredito ainda na cura da terra porque a Mãe Terra tem sido um referencial de bases e princípios para povos indígenas", declara a professora, ressaltando que povos étnicos do mundo inteiro procuram conscientizar a sociedade sobre a destruição do meio ambiente e trabalham em mecanismos para impedir, como projetos de lei, denúncias, marchas, grupos de trabalho e articulações políticas com ambientalistas. “Enfim, ainda há uma luta e não podemos desanimar. A identidade indígena e os conhecimentos tradicionais são ainda estratégias para a defesa do planeta”.
Sobre a aprovação do Marco Temporal pelo Congresso Nacional, mesmo depois que o Supremo Tribunal Federal rejeitou essa tese por 9 votos a 2, a professora considera que as etnias precisam ser ouvidas: "No momento, possuímos representantes no Congresso Nacional, no Ministério, na presidência da Funai, e agora na ABL. Por essa razão, acredito na pressão que possam fazer contra o sistema opressor e o agronegócio, contra o Marco Temporal".
Eliane afirma que os povos originários abriram mais espaços para a visibilidade e protagonismo nas áreas de educação, artes, políticas públicas e setor de publicações sobre literatura indígena para escolas, universidades e outras instituições, o que deve inibir ações criminosas.
"Assassinar indígenas, estuprar e violentar mulheres, no momento atual, ficou complicado para mineradores, latifundiários, madeireiros e agronegócios, pois temos muitas vozes que ressoarão nas redes sociais, mídia e sociedade civil e política", declara a escritora.
Ela acredita que os ruralistas continuarão a impedir o avanço indígena, mas não se intimida: "Estamos preparados com nossa força ancestral para defender nossos direitos à terra. Conflitos e genocídios virão, mas nossa luta continua".
Eliane acabou de lançar o livro intitulado O vento espalha minha voz originária, com textos para professores aplicarem nas escolas, textos para alunos e universidades. "Ele segue a mesma linha poética de meu carro chefe, Metade cara, metade máscara, afirma a escritora, a primeira mulher indígena a receber o título de Doutora Honoris Causa, concedido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Independências
A pesquisa e seleção dos nomes de autoras e autores indígenas para a Flica deste ano começou em fevereiro passado. "Toda escolha se baseou numa reivindicação que a gente faz como curadoras, mas também como professoras e militantes de dar maior visibilidade às pessoas que realmente promoveram no passado e promovem ainda as independências de hoje", afirma Mírian Sumica, professora de teoria literária da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab) e uma das curadoras da Tenda Paraguassu da Flica, junto com Luciana Brito.
Dar visibilidade a quem atuou nos fronts durante as batalhas pela Independência, em Cachoeira, em Itaparica, em Salvador, mas também quem continua à frente das lutas por justiça social e igualdade de direitos. "Pensamos na diversidade étnica e racial, na diversidade de gênero, na diversidade religiosa. Na programação, vai haver mesa com representante indígena, com representante afro-brasileiro, uma representação da comunidade LGBTQIAPN+", afirma Mírian. "Buscamos entender o que cada um desses autores, dessas autoras, significa do ponto de vista da militância, dos direitos, da visibilidade dos modos de vida".
Alguns autores que foram convidados não puderem aceitar por questão de agenda, mas sinalizaram a participação no ano que vem. "A gente já tem uma pré-Flica para 2024", brinca a curadora. Outros destaques na programação da Flica este ano é a escritora e jornalista Marilene Felinto e a presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), Elisa Larkin Nascimento. Confira programação completa da 11ª Flica no site www.flica.com.br.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes