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As fabulações nas performances de Tina Melo

Artista de Cachoeira tem redimensionado experiências culturais e identitárias

Por Priscila Miraz*

02/10/2022 - 6:00 h
Imagem ilustrativa da imagem As fabulações nas performances  de Tina Melo
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Para conceber um corpo em movimento, é inevitável concebê-lo em relação ao tempo e ao espaço. Em Performance do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela, a poeta, ensaísta, dramaturga e professora Leda Maria Martins diz de uma concepção de tempo que se curva simultaneamente para frente e para trás, em movimento de rememoração e devir percebido como um tempo espiralar: tempo e memória se refletem, sendo o espiralar das temporalidades curvas a melhor imagem para dizer de uma percepção, concepção e experiência que explora as inter-relações entre corpo, tempo e memória como produção de saberes que são constituídos a partir dos corpos, e não necessariamente de uma inscrição discursiva.

Martins investiga a ideia de que, em determinadas culturas africanas, o conhecimento se constrói e se propaga pelos gestos, ritmos e timbres vocais, na palavra falada, e que a linguagem criada por esses corpos em performance estão presentes na formação cultural de toda a América, como uma filosofia encarnada em uma sofisticada vivência das ancestralidades africanas no presente. Martins afirma em seu livro: “O que no corpo e na voz se repete é também uma episteme”.

Podemos encontrar essa afirmação no trabalho da artista visual, educadora, figurinista, maquiadora e diretora de arte, Tina Melo, de maneira contundente, quando volta sua investigação poética para as trajetórias de mulheres negras como motivadoras de suas performances.

Imagem ilustrativa da imagem As fabulações nas performances  de Tina Melo
| Foto: Nina Claire / Divulgação

Para a artista, a relação entre arte e vida é sempre intrínseca, gerando uma polifonia que deve provocar a desnaturalização de um olhar acostumado a ter apenas uma perspectiva das artes. Aqui, novamente, Martins surge com a concepção de encruzilhada, informando que os corpos em movimento são atravessados por uma vastidão de memórias que são acessadas pelos sentidos. A encruzilhada abre para a riqueza de referências, estratégias argumentativas e suportes para outras narrativas historicamente invisibilizadas pela estrutura patriarcal e racista das sociedades latino-americanas.

Afójú, palavra yorubá que diz “olho quebrado”, “cega”, foi o título dado à fotoperformance de 2019, quando Tina participou da residência artística pIAR, em Kumasi, Gana. As imagens apresentam o corpo da artista em plano aberto, vestido de vermelho e sentado aos pés de uma grande árvore, ou em plano fechado que recorta seu dorso diante da mesma árvore ou de um bambuzal. Em todas as imagens a artista tem suas próprias tranças cobrindo seus olhos e se ramificando em outras tranças que se conectam aos galhos da árvore como polvos-raízes-aéreas, outros possíveis olhos-táteis indicando movimento de expansão em inúmeras direções.

Partimos dessas imagens como locais de inscrição do corpo vivo da artista que em performance narra sua trajetória e outras tantas, afirmando que a performance negra é a memória da ancestralidade e é também um corpo sendo visto a partir de narrativas que está fabulando no espiralar do tempo, um corpo que, em si mesmo, estabelece e apresenta a fabulação daquilo que está em movimento. Quando fala sobre esse trabalho, Tina aponta para dois momentos distintos de sua vida e de sua trajetória como artista, que dão à cegueira, nó central dessa trama, intenções distintas para os questionamentos que surgem de seu processo poético, um que indica suas referências e outro que indica sua imersão em si, sendo que ambas se cruzam para que alcance o coletivo.

Nascida em Cachoeira, Tina se muda para Salvador. Foi a partir desse distanciamento do recôncavo que passou a redimensionar as experiências proporcionadas por esse território de complexidades culturais e identitárias, como o que despertou seu olhar para as visualidades com as quais havia convivido desde cedo, como matéria de sua poética.

Imagem ilustrativa da imagem As fabulações nas performances  de Tina Melo
| Foto: Nina Claire / Divulgação

Tanto a vida familiar com a produção de bonecas e roupas por sua mãe a avó, quanto a vida social e cultural da cidade, com a performatividade das festas da Boa Morte e D’Ajuda, o samba de roda de Dona Dalva, as filarmônicas, a tradição da escultura em madeira e a presença das Bienais do Recôncavo, são produções que Tina, em seu redimensionamento de referências, chama sem distinção de arte contemporânea.

Por esse aspecto, a cegueira se vincula à desvalorização desses elementos visuais e performáticos presentes na experiência de vida da artista, em decorrência da desconsideração dessas produções por parte dos estudos formais, ainda fortemente embasados em tradições e escolas artísticas europeias ou norte-americanas.

Numa segunda possibilidade, os olhos vendados não são um deixar de ver, mas o seu contrário, um fechar os olhos para poder se reconectar consigo mesma, com seu corpo como local de inscrição ancestral para, a partir daí, fabular. O olhar para dentro torna-se expansão, a confirmação da não existência de um dentro e um fora, mas da fluidez de gestos, de vozes, de conhecimentos.

Saberes de várias ordens se manifestam de forma inter-relacionada quando o corpo é compreendido como temporalidade, andança rítmica que constitui uma trajetória única e compartilhada, expandida do mínimo gesto cotidiano para o movimento que performa experiências das vidas que não foram contadas pela história tradicional, especialmente as das mulheres negras. Nesse sentido, a fabulação é trazida por Tina como estratégia para agenciar existências e criações, e, dessa maneira, também como resistência negra.

Tina faz uma importante crítica à tradição ocidental da história e do ensino das artes e converge sua atuação e posicionamento ético e estético para os temas e propostas da arte contemporânea – e destaco aqui, especialmente nesse espaço geográfico denominado por Lélia Gonzáles de Améfrica Ladina –, que apontam para a necessidade de pluralização de sujeitos e de narrativas historicamente invisibilizadas pelas violências coloniais.

Referências dessa busca afirmativa, afetiva e de resistência na história da arte desde a América Latina são importantes para nos entendermos nesse processo que busca imagens resolutivas para traumas que compartilhamos.

Ver Tina é se conectar com essas referências latino-americanas e com a força que a performance tem como suporte de sentidos profundos, que atravessam os tempos e os corpos, nos aproximando, por exemplo, dos trabalhos da artista, poeta e coreógrafa peruana Victória Santa Cruz (1922 – 2014) em sua obra mais contundente, realizada em 1978, Gritaram-me negra, em que a memória de dor do racismo vivido na infância é narrado pela artista e por um coro que repete seus gestos, sua dança, e repete em gritos incessantes a palavra “negra” até desconstruir seu sentido racista do início da narrativa para fabulá-lo como lugar de reconhecimento afetivo e resistência política.

*Doutora em História Cultural e Professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

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