MUITO
As fabulações nas performances de Tina Melo
Artista de Cachoeira tem redimensionado experiências culturais e identitárias
Por Priscila Miraz*

Para conceber um corpo em movimento, é inevitável concebê-lo em relação ao tempo e ao espaço. Em Performance do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela, a poeta, ensaísta, dramaturga e professora Leda Maria Martins diz de uma concepção de tempo que se curva simultaneamente para frente e para trás, em movimento de rememoração e devir percebido como um tempo espiralar: tempo e memória se refletem, sendo o espiralar das temporalidades curvas a melhor imagem para dizer de uma percepção, concepção e experiência que explora as inter-relações entre corpo, tempo e memória como produção de saberes que são constituídos a partir dos corpos, e não necessariamente de uma inscrição discursiva.
Martins investiga a ideia de que, em determinadas culturas africanas, o conhecimento se constrói e se propaga pelos gestos, ritmos e timbres vocais, na palavra falada, e que a linguagem criada por esses corpos em performance estão presentes na formação cultural de toda a América, como uma filosofia encarnada em uma sofisticada vivência das ancestralidades africanas no presente. Martins afirma em seu livro: “O que no corpo e na voz se repete é também uma episteme”.
Podemos encontrar essa afirmação no trabalho da artista visual, educadora, figurinista, maquiadora e diretora de arte, Tina Melo, de maneira contundente, quando volta sua investigação poética para as trajetórias de mulheres negras como motivadoras de suas performances.

Para a artista, a relação entre arte e vida é sempre intrínseca, gerando uma polifonia que deve provocar a desnaturalização de um olhar acostumado a ter apenas uma perspectiva das artes. Aqui, novamente, Martins surge com a concepção de encruzilhada, informando que os corpos em movimento são atravessados por uma vastidão de memórias que são acessadas pelos sentidos. A encruzilhada abre para a riqueza de referências, estratégias argumentativas e suportes para outras narrativas historicamente invisibilizadas pela estrutura patriarcal e racista das sociedades latino-americanas.
Afójú, palavra yorubá que diz “olho quebrado”, “cega”, foi o título dado à fotoperformance de 2019, quando Tina participou da residência artística pIAR, em Kumasi, Gana. As imagens apresentam o corpo da artista em plano aberto, vestido de vermelho e sentado aos pés de uma grande árvore, ou em plano fechado que recorta seu dorso diante da mesma árvore ou de um bambuzal. Em todas as imagens a artista tem suas próprias tranças cobrindo seus olhos e se ramificando em outras tranças que se conectam aos galhos da árvore como polvos-raízes-aéreas, outros possíveis olhos-táteis indicando movimento de expansão em inúmeras direções.
Partimos dessas imagens como locais de inscrição do corpo vivo da artista que em performance narra sua trajetória e outras tantas, afirmando que a performance negra é a memória da ancestralidade e é também um corpo sendo visto a partir de narrativas que está fabulando no espiralar do tempo, um corpo que, em si mesmo, estabelece e apresenta a fabulação daquilo que está em movimento. Quando fala sobre esse trabalho, Tina aponta para dois momentos distintos de sua vida e de sua trajetória como artista, que dão à cegueira, nó central dessa trama, intenções distintas para os questionamentos que surgem de seu processo poético, um que indica suas referências e outro que indica sua imersão em si, sendo que ambas se cruzam para que alcance o coletivo.
Nascida em Cachoeira, Tina se muda para Salvador. Foi a partir desse distanciamento do recôncavo que passou a redimensionar as experiências proporcionadas por esse território de complexidades culturais e identitárias, como o que despertou seu olhar para as visualidades com as quais havia convivido desde cedo, como matéria de sua poética.

Tanto a vida familiar com a produção de bonecas e roupas por sua mãe a avó, quanto a vida social e cultural da cidade, com a performatividade das festas da Boa Morte e D’Ajuda, o samba de roda de Dona Dalva, as filarmônicas, a tradição da escultura em madeira e a presença das Bienais do Recôncavo, são produções que Tina, em seu redimensionamento de referências, chama sem distinção de arte contemporânea.
Por esse aspecto, a cegueira se vincula à desvalorização desses elementos visuais e performáticos presentes na experiência de vida da artista, em decorrência da desconsideração dessas produções por parte dos estudos formais, ainda fortemente embasados em tradições e escolas artísticas europeias ou norte-americanas.
Numa segunda possibilidade, os olhos vendados não são um deixar de ver, mas o seu contrário, um fechar os olhos para poder se reconectar consigo mesma, com seu corpo como local de inscrição ancestral para, a partir daí, fabular. O olhar para dentro torna-se expansão, a confirmação da não existência de um dentro e um fora, mas da fluidez de gestos, de vozes, de conhecimentos.
Saberes de várias ordens se manifestam de forma inter-relacionada quando o corpo é compreendido como temporalidade, andança rítmica que constitui uma trajetória única e compartilhada, expandida do mínimo gesto cotidiano para o movimento que performa experiências das vidas que não foram contadas pela história tradicional, especialmente as das mulheres negras. Nesse sentido, a fabulação é trazida por Tina como estratégia para agenciar existências e criações, e, dessa maneira, também como resistência negra.
Tina faz uma importante crítica à tradição ocidental da história e do ensino das artes e converge sua atuação e posicionamento ético e estético para os temas e propostas da arte contemporânea – e destaco aqui, especialmente nesse espaço geográfico denominado por Lélia Gonzáles de Améfrica Ladina –, que apontam para a necessidade de pluralização de sujeitos e de narrativas historicamente invisibilizadas pelas violências coloniais.
Referências dessa busca afirmativa, afetiva e de resistência na história da arte desde a América Latina são importantes para nos entendermos nesse processo que busca imagens resolutivas para traumas que compartilhamos.
Ver Tina é se conectar com essas referências latino-americanas e com a força que a performance tem como suporte de sentidos profundos, que atravessam os tempos e os corpos, nos aproximando, por exemplo, dos trabalhos da artista, poeta e coreógrafa peruana Victória Santa Cruz (1922 – 2014) em sua obra mais contundente, realizada em 1978, Gritaram-me negra, em que a memória de dor do racismo vivido na infância é narrado pela artista e por um coro que repete seus gestos, sua dança, e repete em gritos incessantes a palavra “negra” até desconstruir seu sentido racista do início da narrativa para fabulá-lo como lugar de reconhecimento afetivo e resistência política.
*Doutora em História Cultural e Professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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