MUITO
As histórias de cantores que trabalham na noite de Salvador
Por Daniel Oliveira | Fotos: Adilton Venegeroles | Ag. A TARDE

Para cantores e cantoras, a noite significa, muitas vezes, trabalho. Enquanto as empresas e repartições fecham e as ruas tornam-se mais vazias, esses artistas saem para os bares, casas de show, restaurantes e clubes. “Em geral, somos pessoas notívagas. A lua inspira, a noite é mais propícia”, diz Lu Santana, que há mais de 30 anos canta na noite de Salvador, principalmente em Itapuã.
Nos mais diversos bairros da cidade, eles contribuem na construção da paisagem sonora, junto com as conversas, risadas e brindes. Assim, movimentam o ambiente cultural da cidade ao longo do ano, sem necessariamente a pretensão da fama, da descoberta para ganhar o mundo.
Vivem um cotidiano de música, interpretando canções de compositores de discos que furaram de tanto rodar nas vitrolas, ou que estão entre os mais ouvidos nas plataformas de streaming. Aos 11 anos, Bruna Barreto já sabia o que queria fazer. Nascida no município de Jequié, interior da Bahia, chegou à capital aos 19 anos para cantar. Desde cedo, ouvia o pai cantando e a mãe tocando teclado.
“A minha relação com a música sempre foi essa. De seresta, muita farra, da música na noite. Vim para Salvador e encontrei algumas oportunidades. Toco atualmente o ano inteiro”, diz a artista, que às vezes faz mais de três apresentações numa mesma semana em locais diferentes. Um cotidiano que é compartilhado por esses profissionais da música que escolhem trabalhar com a voz e um repertório, muitas vezes, escolhido minuciosamente.
A perspectiva é se manter e fazer o que gosta – um trabalho, aparentemente, como qualquer outro. A fama é bem-vinda, sem dúvida, mas não é o fim: “Não adianta ficar se cobrando pelo sucesso. Você sabe que nada pode acontecer, mas também pode acontecer tudo. Sempre quis me manter vivendo de música e não me falta nada. Já é sucesso se você se sente bem”.
Bares e TV
Em 2013, Bruna participou do programa The Voice Brasil, da Rede Globo – interpretou Disritmia, de Martinho da Vila; Podres poderes, de Caetano Veloso; e Blues da piedade, de Cazuza. Não chegou à final, mas ficou orgulhosa do trabalho que fez na televisão. Retornou à rotina de apresentações em barzinhos e pequenas casas de show em Salvador e leva consigo a experiência para a vida, além dos fãs de diferentes lugares do país que até hoje escrevem para a cantora. “Não era uma coisa que eu esperava. Uma amiga me inscreveu e aconteceu. Para qualquer artista é sensacional. Entrei bem e saí bem”, conta.
Em seu repertório, Bruna canta muita música brasileira e pop rock: Cazuza, Djavan, Rita Lee, Cássia Eller, Gilberto Gil, Chico Buarque, entre muitos outros. Nas suas palavras, “a música é infinita”. Os shows às vezes duram três, quatro horas, e o público ainda pede mais. "É sempre difícil escolher o que incluir e o que retirar. Mas é bom quando o show continua, fica quente e a galera está animada. Aí acrescento o que às vezes não estava previsto".
Minha relação com a música sempre foi essa. De seresta, farra, da música na noite
No boteco Zuka, na frente do Farol da Barra, onde tem se apresentado sempre às quintas-feiras, desde o verão, Bruna também se diverte. “Passa gente do mundo inteiro, a galera para o carro, faz vídeo, gente passa no busu. O pessoal desce para tomar uma cerveja, o trânsito supercaótico. Começo no final da tarde, então vejo o pôr do sol no Farol. É como se estivesse em um videoclipe”.
Em barzinho, os shows geralmente começam frios – o público ainda está chegando, bebendo os primeiros copos. É necessário, para os cantores, se acostumarem com essa característica. É diferente, segundo Bruna, de um espetáculo em teatro ou casa de show, do qual o público já sabe, de certa forma, o que esperar.
“Começa morno, todo mundo está tímido, tomando as suas primeiras cervejas. Aí vale a pena iniciar uma conversa pelo microfone, entre uma música e outra, puxar alguns assuntos até esquentar”, diz.
Romântico
Em 1981, o cantor Beto Narchi estreou na noite em Salvador. O cenário, a boate Cabral 1500, no antigo Salvador Praia Hotel. “Era um lugar frequentado pela alta sociedade baiana, famílias de renome, políticos famosos”, detalha o artista.
Cantava boleros, bossa-nova, foxtrote, samba-canção e baladas. Tentava transpor para os anos 1980, na capital baiana, o clima sonoro das casas cariocas no final dos anos 1950 e início do 1960 – representado recentemente na série Coisa mais linda, da Netflix, contextualizada no período de ascensão da Bossa Nova no Rio de Janeiro, período de força do samba-canção e que os clubes e bares com música eram lugares muito frequentados pela elite.
Antes disso, chegou a ensaiar composições próprias, mas percebeu que o seu caminho na música era o de intérprete. Sempre tentou estabelecer uma relação respeitosa com o seu público: “O incentivo é o grande estandarte do artista. Ele precisa ser carinhoso, inteirado com o público. Quando o artista se importa com o público, o contrário também acontece. Tenho muito essa visão como artista da noite”.

Em suas apresentações, por exemplo, no restaurante Pedra da Sereia, entre Ondina e o Rio Vermelho, toda quinta-feira, ele circula pelo espaço, olha nos olhos e interage com o público nas mesas. “Sou um cantor romântico”.
Beto admira os compositores que interpreta e orgulha-se do próprio trabalho. “Não somos cantores famosos, como Roberto Carlos. Mas eles também nos fazem grandes artistas. Não me sinto menor do que ninguém, do que nenhum artista de renome”. Entende que o seu ofício envolve diretamente agradar ao público e considera esse aspecto no momento de escolha do repertório. E não considera essa flexibilidade um problema.
“Eu canto para as pessoas dançarem e para ouvirem, depende do lugar, restaurante, clube, boate. No baile dançante, escolho um repertório dentro dessa atmosfera, então canto boleros, foxtrotes tradicionais, músicas do cancioneiro popular eterno, coisas antigas, e das mais novas faço uma peneira maior. Escolho muito baseado no público. E num show intimista faço uma mescla”, descreve.
Como canta Milton Nascimento, que também trabalhou como crooner (cantor popular que acompanha orquestra), “todo artista tem de ir aonde o povo está”. Mas quando trabalho do artista é consistente, o movimento no sentido contrário também ocorre.
A bióloga aposentada Teresa Lopes, 69 anos, acompanha a trajetória de Beto há décadas e diz, durante o show na Pedra da Sereia: “A gente vem e já sabe que, quando é Beto Narchi, é coisa boa. É da nossa geração”.
Para o cantor, os encantos da noite são as maiores experiências possíveis para um artista, tanto de ferramentas para a desenvoltura, como na relação com o público. “Feliz do artista que passa pela noite. Aprende a cantar melhor, a lidar com as pessoas, com a diversidade, sons, porque há uma variação de qualidade dos equipamentos. Todo artista deveria fazer estágio na noite”, completa o músico, que costuma se apresentar em espaços na Barra e no Rio Vermelho, além de eventos fechados.
Muitas histórias
Em outro extremo da orla da cidade, nos arredores do Farol de Itapuã, Lu Santana construiu a sua carreira como cantora. Com 3 anos, subia na cadeira com a vassoura, a sua guitarra imaginária, e cantava as propagandas da TV para a família. “Foi o meu primeiro palco”, lembra, rindo. Filha de “nativos de Itapuã”, como gosta de ressaltar, começou a cantar em palcos da noite também nos anos 1980.
“Tinha uma banda com Amadeu Alves, que hoje é diretor das Ganhadeiras de Itapuã, e a gente fazia muitos shows em bares do bairro”. A partir daí foram muitas histórias que, segundo ela, renderiam até um livro. “Quando as pessoas começam a ouvir a música, relaxam, tomam um drinque, deixam os seus problemas fora daquele contexto. Interagem numa sintonia afetuosa, harmoniosa”, fala a cantora, que encara o ofício como uma missão de vida.

Nos seus shows, faz um passeio pela música brasileira, cheio de clássicos, mas também inclui canções menos conhecidas. “No CD, tem a música de trabalho que todo mundo canta e o restante. Sempre gostei de vasculhar, de buscar o lado B do LP. Quando chegava lá me identificava e fazia. O repertório é baseado no meu sentimento. Se a música me arrepia, coloco”, diz ela, citando faixas do disco Tábua da esmeralda, de Jorge Ben, e Banho de folhas, de Luedji Luna.
Entretanto, não podem faltar algumas músicas que, se não estiver no roteiro, é certo que o público vai pedir, como É d’Oxum, de Gerônimo e Vevé Calazans. “Sempre jogo uma popular e outra não muito popular para as pessoas conhecerem. Se você chega no bar e fica ouvindo as mesmas músicas de sempre, que todo mundo canta, é muito chato”, opina.
Embora tenha um elo forte com a profissão, Lu considera o percurso como cantora complicado, sobretudo pelos altos e baixos. “A gente não tem uma legislação que regule os cachês. Está tocando, em um momento, para ganhar um determinado valor, aí vem outro e faz pela metade. Então, a gente não é valorizado como deveria ser”.
No entanto, garante que não faria outra coisa. Para ela, sucesso também é fazer o que gosta. “Imagina como seria a vida sem a música?”, pergunta, fica em silêncio por alguns segundos, e responde: “Seria muito áspera”.
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