MUITO
As obras de Carmem Carvalho: razão e emoção em equilíbrio
Luiz Freire, Doutor em História da Arte, professor da Escola de Belas Artes (Ufba) e museólogo
Por Luiz Freire
Razão e emoção como características do ser humano estiveram desde sempre presentes nas manifestações artísticas em diferentes dosagens. Nos movimentos das vanguardas podemos perceber quando as intenções envolvem e requerem uma compreensão predominantemente racional e outras em que a visceralidade da criação e a vontade de mover o espírito do fruidor preponderam, e quando ambas atuam.
O abstracionismo surge na primeira década do século 20 como quebra radical da relação mimética da arte com a realidade e da tradição representacional cultivada desde o Renascimento Europeu. Surge a partir da intuição e do desejo de uma linguagem universal como a da música, livre de narrativas e de figuras reconhecíveis na obra de Wassily Kandinsky. Surge também pelos impulsos teosóficos de Hilma af Klint, que antes de Kandinsky realizou as primeiras pinturas não figurativas da arte ocidental.
As motivações teosóficas continuam presentes na obra de Mondrian, cujo processo e resultados provém de uma forte atuação da razão em busca de harmonia e equilíbrio pela simplicidade e síntese geométrica e cromática.
A Teosofia (sabedoria divina) ganhou um impulso importante no início do século 20 promovido pelo pensamento e ações da russa Helena Blavatsky em um cenário de descrédito da religião face ao avanço da ciência e da tecnologia.
“Para a teosofia, a arte tem uma função iniciática, pois serve como lugar de sublimação dos instintos baixos. [...] A humanidade avança quando ultrapassa o mundo físico e emotivo, atingindo um grau de perfeição através do mundo mental. E na arte espiritualizada, intelectualizada, pode-se superar as obsessões pessoais, os tormentos individuais, atingindo-se a paz, que é o resultado do encontro com o absoluto. O equilíbrio encontrado numa tela é o mesmo equilíbrio encontrado pela mente (do artista e do espectador)”, afirma Jardel Dias Cavalcanti.
A historiografia da arte tende a separar a “abstração formal”, geométrica, da “sensível”. As proposições teosóficas serão as forças comuns dessas expressões, nas quais razão e emoção nem sempre se apartam completamente, atuando em conjunto na mesma obra artística.
Incursão
Carmem Carvalho – Carmem Celeste Lima de Carvalho (Salvador, 02.05.1942) afirma que sua incursão nas artes visuais se deu a partir do seu ingresso na Escola de Belas Artes da Ufba, no ano de 1960, quando iniciou o curso de Pintura, ainda na Rua 28 de setembro. Lá, foi aluna de professores que integraram a primeira e segunda gerações modernista da Bahia, alguns deles bastante íntimos da arte “abstrata”, como Mário Cravo Junior e Juarez Paraíso.
Parte do entendimento da forma e da prática da colagem dos cubistas, redimensionando-os. As composições “abstratas” na pintura derivam das colagens de recortes de revistas, iniciadas na disciplina lecionada por Juarez Paraiso. Colagens que ainda hoje produz, ordenando os recortes, interferindo nas imagens com pinceladas de tinta acrílica que preenchem os vazios e avançam sobre os fragmentos, constituindo um todo integrado, equilibrado, cuja finalização se dá pelo verniz.
Na pintura, faz croqui na tela, definindo e dispondo as formas que serão pintadas. Nessa etapa já soluciona as questões de equilíbrio e harmonia, retrabalhadas na etapa seguinte, da escolha dos tons a preencherem as formas: cores primárias contrastantes, quentes, provocadoras de intensas vibrações, como extravaso das emoções contidas da artista, cujo temperamento é conhecido pela delicadeza, suavidade e afeto. Entretanto, contenção e veemência se encontram em uma pintura que atua como algo importante para a sua sanidade mental e sua necessidade de dizer o que não consegue por outros meios.
Abstracionista convicta, não intitula suas pinturas, nem as colagens, o fruidor não conta com nenhuma sugestão para procurar algo reconhecível do mundo real. Impossível não reagir às composições de Carmem, aos estímulos dos arranjos cromáticos e suas tensões, à ordenação que faz do mundo e que compartilha com franqueza.
Liberdade formal
A criação de Carmem Carvalho manifesta-se mais livre e intuitiva na pintura de têxteis destinados ao vestuário e nas criações para a indústria têxtil. Esse contato ocorreu em 1963 por iniciativa da própria artista, que ofereceu o seu trabalho à Companhia Empório Industrial do Norte, fundada por Luís Tarquínio em 1891.
Lá aprendeu todos os ciclos de produção de têxteis atuando como designer e contribuindo com sua inventividade, conhecimentos artísticos e interpretação do gosto feminino da época, tanto que se afastou do trabalho em função de uma crise e foi convidada a retornar assim que a crise industrial foi superada.
O trabalho na fábrica favoreceu o sustento da família, já que era provedora e acumulava todos os encargos, os quais nunca foram divididos com o marido, mas interrompeu sua formação acadêmica por um tempo, retornando à EBA em 1972 para concluir o curso. Foi na escola, já situada na Av. Araújo Pinho, que fez uma grande exposição individual na Galeria Cañizares.
Da dedicação à arte industrial, Carmem preserva a monografia e os experimentos de conclusão do curso (1993) em Design de Estamparia Têxtil, realizado no Centro de Artes e Letras da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), sob o título Investigação estética sobre os lepdoptera brasileiros aplicada ao design para estamparia têxtil, orientada pelos professores Edemur Casanova e Ana Norogrando.
Depois de analisar a coleção de borboletas e mariposas no Departamento de Defesa Fitossanitária do Centro de Ciências Rurais da UFSM, desenhou e pintou as formas e cores desses insetos, criando padronagens que se diferenciam a partir da variação de cores dos tecidos, das formas e cores das estampas, e das disposições nas superfícies têxteis, concebendo padrões que referenciam ao todo e partes dos insetos, e outros abstratos, distantes do referencial natural, mas deles decorrentes.
Participou com colagens na Primeira Bienal de Artes Plásticas da Bahia (1966), foi premiada no I Salão de Verão”, no Museu de Arte da Bahia (Convento do Carmo). Realizou diversos trabalhos de estamparia, inclusive para o espetáculo de dança Ao pé do caboclo (1977). Ingressou na EBA como professora em 1983, através de concurso, ministrando as disciplinas de Composição Decorativa e a de Pintura, aposentando-se em 1997 em razão de saúde fragilizada, deixando um legado de competência pedagógica e apreço aos alunos.
Com 82 anos de idade e cerca de 60 anos de carreira, tem trabalhado constantemente nas colagens e pinturas em acrílica sobre tela, menos na estamparia de têxteis, por falta de espaço adequado. Tem se valido da fotografia digital para reproduzir as colagens através da impressão em “fine art” sobre papel, e de elevada qualidade cromática, como alternativa economicamente mais acessível.
Pertence a uma geração de artistas que despontou na década de 1960. Foi colega de Edson da Luz, Edsoleda Santos, Ana Pinto, Célia Azevedo, Marlene Cardoso, Antônio Pinho e Humberto Aquino Rocha. Sua carreira artística enfrentou impedimentos decorrentes do acúmulo de responsabilidades no provimento do lar, na criação de três filhos, mesmo contando com o apoio de seus pais.
Aliás essa condição associada ao machismo do sistema das artes constituiu em percalço para a projeção do seu trabalho e da maioria das mulheres artistas na Bahia. Não possui obras em acervos museológicos, nem catálogos das exposições individuais, apesar da elevada resolução técnica e expressiva de sua obra.
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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