MUITO
As tramas poéticas da arte de Aline Brune
Artista visual e atriz tensiona a fotografia e a pintura em suas produções
Por Priscila Miraz*
A fotografia cria mundos porque é, e sempre foi, manipulável. À revelia da tradição em que surgiu no século 19, e que a vinculou de maneira indelével ao cientificismo positivista que caracterizou a época, intensificando as relações entre olhar, realidade e verdade já presentes na construção da perspectiva renascentista como modo de ver ocidental, a fotografia, como qualquer técnica, é lugar de criação de mundos, de realidades, de tramas, de narrativas ficcionais. Uma famosa ficção fotográfica surgiu logo em 1840, quando Hippolyte Bayard, com seu Autorretrato afogado, encenou na fotografia seu afogamento pela desilusão de ter visto seu processo fotográfico preterido ao daguerreótipo.
A não aceitação da fotografia por tanto tempo no campo artístico diz muito mais, portanto, da sociedade e seu regime de verdade/visualidade, do que necessariamente da natureza da fotografia, aberta, conectável e expansível a outras linguagens, o que a arte contemporânea afirma quando torna visível o fazer fotográfico como estratégia criativa. Como diz André Roillé, a fotografia ancora as imagens na matéria das coisas, e serve tanto de base para determinados regimes de verdade, quanto tem a ver com o que está além, em outro lugar.
Entre as hibridizações da fotografia com outras artes, a pintura se destaca já no século 19 com o movimento pictorialista, que buscou afirmar o caráter artístico da fotografia a partir da intervenção da mão do artista numa obra que, a partir dessa intervenção, se tornava única, querendo assim minimizar no resultado final a presença da máquina e da reprodução técnica, caraterísticas relacionadas com sua aderência ao real, ao documental e à indústria fotográfica.
Com a arte contemporânea, tanto as técnicas pictorialistas do 19 são revisitadas, quanto intensificações dessa discussão entre real fotográfico e subjetivo/ficcional pictórico conduzem experimentações que mobilizam práticas e teorias no campo da fotografia e da arte contemporânea.
A artista visual, pesquisadora e atriz Aline Brune tensiona a fotografia e a pintura em suas produções, tanto nas escolhas de suportes para a imagem fotográfica e, posteriormente, sua quase ou total dissolução pela pintura, pelo vídeo, pelo bordado, quanto na mobilização teórica que conduz sua pesquisa a partir de outras epistemologias para pensar o visual, se detendo nesse processo num determinado ponto da imagem que faz lembrar o que Maurice Blanchot diz sobre o ser da imagem, algo que consiste em estar ao mesmo tempo oculto e aberto às presenças-ausências, sendo esse o ponto de sedução das imagens.
Aline vê esse ponto como o lugar para fazer a dobra na imagem fotográfica, que a partir desse momento torna-se a base para o surgimento de outra camada de realidade ficcionalizada que com a intervenção da pintura sobre a fotografia impressa, ela nos mostrará. A realidade cotidiana fotografada por ela mesma ou por outras pessoas, imagens recolhidas em uma pasta em seu computador com o nome “balaio de fotografias”, é o ponto de partida que reforça essa poética das dobras ficcionais que vão percorrendo estados marcados pela expansão dessa realidade fotografada a partir de outras técnicas.
No díptico Tem um monte de Oxum no SUS (2019), a visualização de outro mundo através dos sonhos inseridos/propiciados pelas fissuras de sedução da imagem fotográfica que impulsiona a trama poética, é explorada na variedade de técnicas e suportes que dão a duas imagens camadas sensoriais distintas, que podem ser complementares ou não, dependendo do acesso que o observador terá a elas.
Podemos ver as duas imagens postas lado a lado: no canto direito da primeira imagem, em primeiro plano, uma mulher de perfil, sentada, vestida de branco observa uma sala em que várias mulheres vestidas de branco, todas grávidas, também estão sentadas. O espaço da sala é apagado pela pintura que retirou a maioria dos elementos que identificariam esse espaço, tornando-o um largo fundo branco em que suavemente encostam, em possíveis paredes e chão, as cadeiras em que as mulheres grávidas se sentam. Estamos suspensos no tempo com poucas referências do espaço, em estado de sonho. O título nos ajuda a identificar o local como uma sala de espera do SUS.
Na segunda imagem, as mulheres grávidas vestidas de branco estão agora sentadas nas pedras de uma cachoeira que se derrama sobre elas. No silêncio das duas imagens, o observador pode fazer o trânsito de uma para a outra através do olhar da mulher do canto direito da primeira imagem, um possível autorretrato da artista inserida ali na sala, grávida como as outras mulheres. Seu olhar mudo conduz ao que ela está vendo quando olha as outras mulheres grávidas como ela: Oxuns desaguando nas pedras. Essa dobra conduzida pelo olhar dentro da imagem é sua sedução onírica exposta pela pintura. As duas imagens foram criadas a partir de fotografias impressas em papel e pintadas com tinta acrílica. As possibilidades trazidas pela pintura são múltiplas camadas de memória pessoal e coletiva, fração de sonho entrevisto como experiência.
As duas mesmas imagens foram usadas na videoarte selecionada para a Mostra Competitiva Baiana do XV Panorama Internacional Coisa de Cinema, realizada em Salvador e Cachoeira em 2021. O vídeo redimensiona as duas imagens em recortes pelo movimento e também pelo som. A palavra está presente no processo poético da artista o tempo todo, na forma do sonhário, um diário de experiências sensoriais, vividas ou sonhadas, não hierarquizadas, que também constroem os sentidos múltiplos dos mundos criados.
Se no primeiro formato a palavra está oculta na mudez do díptico, no vídeo ela expõe o que o possível autorretrato pensa enquanto olha, nos confirmando que, sim, a artista está inserida naquele grupo, é uma das mulheres grávidas. Ouvimos o som de uma cachoeira e a voz da artista: “Acho que as deusas trabalham mais no Sistema Único de Saúde, enquanto os humanos humanizam outros lugares. Éramos muitas parturientes naquele grupo próximo, não coincidentemente todas negras, desde a espera por leitos em cadeiras de recepção ao espaço em que compartilhamos para conhecermos e lidarmos com os nossos bebês pela primeira vez”.
O sonho, entendido fora da perspectiva ocidental, possui a função política de possibilitar a coletividade e com ela, a resistência, um forte argumento presente no pensamento de Ailton Krenak e Davi Kopenawa, por exemplo, acessado pela poética da artista.
Por fim, temos outro suporte, outras interferências para as mesmas duas imagens, agora com o título de Oxum em ponto de trás (2021), técnica mista de bordado sobre fotografia sobre lona. A impressão da fotografia em tecido fino, exige o suporte da lona, e o bordado interferindo apenas nos corpos das mulheres, cria ainda outra imagem no avesso da primeira.
Essa obra está fazendo parte da exposição Utopias e Distopias, com curadoria de Daniel Rangel, aberta até dia 27 de novembro no MAM-Bahia. A solução expográfica dada ao trabalho potencializa a duplificação das imagens e a relação do visual com o tátil. As imagens estão penduras em suportes longos que saltam da parede, uma em cima da outra, tridimensionais, possibilitando a movimentação de nosso corpo em torno dos dois lados da imagem.
Aline Brune ancora a imagem fotográfica na matéria das coisas para dar a elas a possibilidade de tornarem-se outra imagem e ganhar outras densidades pelo onírico, buscando em sua pesquisa perspectivas diversas para o lugar dos sonhos na vida, por exemplo, com a cultura yanomami, que entende o saber sonhar como saber ver o que é invisível, acessar a imagem vital de tudo que existe.
No trabalho Ventania dentro (2021) Aline imprimiu em papel Canson 21 frames de animação por rotoscopia de um corpo feminino no ar, rodando em sequência, solto, etéreo e pesado, voando e caindo, imóvel e em movimento ao mesmo tempo, sendo um sonho e um acontecimento, lembrando experimentações de Eadweard Muybridge e Etienne Jules Marey, fotografia e cinema e pintura em tempos tão distantes e cruzados, se conectando com momentos de expansão da história da fotografia, e ao mesmo tempo propondo novas desobediências ao meio através de perspectivas visuais advindas de outras epistemologias, outras formas de entender o visível e de acessá-lo.
*Doutora em História Cultural e professora da UFRB
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes