OLHARES
Brasil futuro: as artes visuais na construção da democracia
Aa democracia não está posta, ela é uma construção contínua
Democracia, justaposição das palavras dêmos (povo) e kratia (poder), refere-se desde a Grécia Antiga a uma forma de governo cujas decisões deveriam ser tomadas via participação direta do povo, entretanto, seus modelos conceituais e práticos têm se alterado ao longo dos tempos.
As diversas formas da democracia presentes na contemporaneidade evidenciam a inexistência de um único modelo, visto que fatores culturais e históricos condicionam sua significância. Nessa perspectiva, podemos compreender a democracia como um processo dinâmico que se transforma conforme especificidades espaciais e temporais.
Ou seja, a democracia não está posta, ela é uma construção contínua. No Brasil, especificamente, ela ainda se encontra permeada de elementos autoritários e colonizadores, e, portanto, faz-se necessário uma vigilância visando seu aprimoramento e sua eficiência.
É a partir desse mote que a exposição Brasil futuro: as formas da democracia busca compreender o papel da arte nas reflexões que perpassam direitos sociais, diversidade étnica, religiosa e de gênero no país. Inaugurada em Brasília, no dia 1º de janeiro, na posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a exposição já passou por Belém e, de Salvador, deve seguir para outras cidades.
Diálogo
Com curadoria de Lilia Schwarcz, Paulo Vieira, Márcio Tavares e Rogério Carvalho, a exposição é composta por quatro núcleos, um dos quais, acrescido na versão baiana, também contou com a colaboração curatorial de Adriana Cravo, Daniel Rangel, Acervo da Lage e Zumvi Acervo Afro. Ao agregar acervos locais, a exposição estreita o diálogo com o repertório baiano.
Há uma profusão de artistas de diferentes gerações, estilos e técnicas artísticas. Assim, vemos desde um representante da Escola Baiana de pintura da segunda metade do século 18, com a obra Alegoria dos quatro continentes – África, de José Teófilo de Jesus, até a novíssima geração de artistas contemporâneos brasileiros como Jota e Bonikta, passando pelos já consagrados Antônio Obá e Rosana Paulino.
Artistas modernos como Djanira e Genaro de Carvalho também estão representados, além de tantos outros ditos “artistas populares” como José Adário dos Santos.
Coube especial destaque aos artistas negros, negras, da comunidade LGBTQIA e indígenas que, por muito tempo, foram sub-representados na historiografia da arte brasileira, quando esta seguia um viés quase exclusivamente branco, masculino e católico.
Núcleos
Com tantas obras marcantes é uma tarefa árdua analisar aqui alguns destaques. Seguirei o ordenamento proposto pelos núcleos da exposição – que poderiam ser facilmente intercambiados, nos três andares que ocupam no Centro Cultural Solar Ferrão, no Pelourinho, e segue em cartaz até 15 de novembro.
Retomar símbolos – Os símbolos nacionais, como a bandeira, representam valores que formam nossa sociedade. Suas diversificadas releituras de diferentes grupos sociais refazem identidades a partir de elementos comuns.
A queda do céu e a mãe de todas as lutas, de Daiara Tukano, traz a representação da mãe terra com um ser antropomorfo desfalecido nos braços e rodeado de onças. Embora a iconografia nos remeta a Pietá do renascentista Michelangelo, a artista faz referência ao pensamento de Davi Kopenawa Yanomami, através do seu livro A queda do céu, e A mãe de todas as lutas é o mote da Marcha das mulheres Indígenas no Brasil.
A obra da artista militante soa como alerta ao descaso sofrido pelos grupos indígenas na defesa de suas terras. A artista paraense Edvânia Iyatunde lida com temas relacionados às religiões de matrizes africanas. Ipa Onaa traz uma série de simbologias, como a insígnia do Orixá Exu, construídas numa harmonia espacial e organizacional ímpares.
Descolonizar – Segundo a curadora Lilia Schwarcz, "a história da arte é um braço do imperialismo e esse núcleo traz artistas que projetam outras formas de imaginar o mesmo território a partir de sua própria cosmologia e filosofia".
Assim, Goya Lopes apresenta Paladar afro-baiano, uma serigrafia que abarca o repertório afro-baiano ao representar os santos Cosme e Damião, numa associação iniciada pelos escravizados durante a escravidão para celebrar os orixás Ibejis, filhos de Xangô e Iansã.
Nela também aparecem oferendas da culinária afro-baiana. A obra carrega uma plasticidade quase minimalista na simplicidade das formas e na presença de matizes avermelhadas.
Outra artista baiana, Ana Elisa Improta, participa com uma obra sem título representando um claustrofóbico interior de transporte público abarrotado de passageiros.
Nesse prosaico tema, a artista traz reflexões acerca da pobreza, políticas públicas, importunação sexual e racismo, mostrando as desigualdades sociais – e democráticas, da cidade de Salvador.
Somos nós – a diversidade cultural é a grande riqueza do Brasil, embora a desigualdade estruturante e a exclusão social ainda sejam grandes desafios da democracia. O trenzinho do artista paulista Victor Fidelis traz a representação de três jovens negros sentados num banco. A imagem aparenta uma inação dos jovens, que parecem marcar presença no espaço.
O artista vem buscando uma iconografia para retratar pessoas negras, num país de racismo estruturante, e nesse processo de relações interraciais se reconhecer através de suas próprias memórias.
O artista Jota apresenta sua tela Subindo os degraus, retratando um jovem subindo uma escada de uma comunidade e olhando para algo fora do plano. A periferia carioca é a origem do artista e seu celeiro criativo.
Como uma crônica visual, sua obra traz no repertório a complexidade da periferia carioca com suas ilicitudes, caos, violência, mas também beleza e compaixão. É uma ode à periferia criativa que também pode dar certo.
Tudo é dádiva – Ato de dar, receber e retribuir. O coexistir de diferentes símbolos, ícones e objetos de cultos pelo Brasil afora. Ani Ganzala traz na sua obra, No mundo dos peixes e répteis nós sonhamos, uma representação onírica de répteis que circundam figuras femininas nadando no rio/mar.
A artista percorre um processo criativo que resgata uma investigação das memórias dos mais velhos e antepassados, e da memória coletiva, baseada no respeito à diversidade e a natureza.
Ela afirma que “pinta memórias, utopias, nossos sonhos que nos permitam sair desses traumas, dores e mortes que vamos tendo durante a vida, sonhar com cores, alegrias, amores, lugares e relações possíveis”.
A arte vai construindo utopias de uma possível democracia mais inclusiva e social no futuro. Santo Agostinho em suas reflexões filosóficas fez analogias entre o tempo passado, presente e futuro com a alma humana que, segundo ele, estaria distendida entre a memória, a atenção e a expectativa. Na arte, como na política, o futuro se alicerça no presente a partir da compreensão do passado.
* Museólogo e doutorando em Estudos Étnicos e Africanos (Ufba)
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