MUITO
Casa Cor Bahia promove o mix tecnologia, sustentabilidade e afetividade
Por Gilson Jorge

Um sonhador de casas vê casas em toda parte. Tudo serve de motivação para os sonhos de abrigo. O pensamento do filósofo francês Gaston Bachelard, expresso no livro A poética do espaço, ilustra o esforço empreendido por arquitetos e designers de interiores para estabelecer ambientes conceituais em alguns locais improváveis.
Trinta e três ambientes, incluindo quiosques e passagens, das duas casas vizinhas que abrigam a edição 2019 da Casa Cor Bahia, no Horto Florestal, foram cuidadosamente trabalhados para servir de vitrine das propostas dos profissionais que tiveram como base o tema Planeta Casa e os conceitos de sustentabilidade, tecnologia e afetividade. Os mesmos parâmetros utilizados nas 13 mostras de outros estados, além de Santa Cruz de La Sierra (Bolívia), Assunção (Paraguai), Lima (Peru) e Miami (Estados Unidos).
Mas se todos os arquitetos dessas cidades têm acesso às principais inovações tecnológicas e às soluções em sustentabilidade, o que pode tornar os projetos de imóveis uma experiência única para os clientes? Ou o que Bachelard define como casas reais com individualidade? A aposta na arte e na afetividade parece ser a resposta. “A escolha das peças de arte diz muito sobre a personalidade da casa”, afirma Cecília Miscow, sócia da TRPC Arquitetos, escritório responsável pelo Loft do Colecionador, um dos espaços da Casa Cor Bahia.
O ambiente foi criado com 32 quadros, sendo um do acervo pessoal do arquiteto Thiago Schultz (TRPC) e os outros da Galeria Roberto Alban, além de livros e objetos que remetem a experiências familiares. Na estante, objetos adquiridos em viagens, lojas de decoração e feiras.
O arquiteto Adalberto Vilela acredita que é a partir das memórias afetivas que se inicia o projeto de uma casa. “As heranças trazem um elemento de continuidade da história familiar, lembrando as experiências dos antepassados”, aposta.

Vanessa Sampaio pensa que as obras de arte podem ajudar a alcançar o sonho da casa perfeita, cores que destaquem o ambiente e formas que estimulem a curiosidade ou a reflexão. “E há obras que remetem a memórias da infância”.
Para Thiago Schultz, a criação de um projeto deve levar em consideração o potencial que o espaço tem de se tornar um lugar capaz de se adaptar às atividades cotidianas. “Mas o local precisa também se impregnar de significados atribuídos por quem mora na casa”, declara Schultz.
Franqueado da Casa Cor Bahia a partir deste ano e curador da mostra, Carlos Amorim entende que o conceito de afetividade não deve ser tomado de forma literal. “As plantas estão se abrindo, e quando você enxerga de um vão outra pessoa em outra parte da casa, isso também é afetividade”, analisa Amorim.
Ele sublinha que com a interação cada vez maior com o celular, convidando ao isolamento, cabe também à arquitetura buscar meios de facilitar o contato entre quem divide o mesmo teto. Amorim destaca ainda que a casa é o lugar que separa o caos do mundo da intimidade de cada pessoa.
Em sua terceira Casa Cor, a arquiteta Lorena Damásio apostou no modelo clássico para montar, junto com Daiana Fernandes, o Lounge Receptivo. Os destaques, em termos de arte, são um quadro do mineiro Menote, feito sob encomenda para a mostra, e uma escultura do carioca Zanini de Zanine, que no início da carreira recebeu duas vezes o Prêmio Liceu de Design, do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, e que hoje é um dos mais bem-sucedidos designers do país.
A escultura de Zanini no Lounge Receptivo é composta de peças soltas, que podem formar diferentes imagens. Lorena e Daiana levaram pouco menos de uma hora para chegar ao formato de exposição das peças que, assim como o quadro, estão sob os cuidados da Galeria Pena Cal. A flexibilidade da escultura combina com o estilo de trabalho de Lorena. “Sempre respeito o que o cliente deseja para a sua própria casa, mesmo que não coincida com o meu gosto pessoal porque ele é quem viverá no espaço”, pondera. Mesmo em projetos clássicos, como esse, é possível aplicar pequenas subversões, como uma luminária em formato de um ratinho.
Protagonista
Sergipano radicado na Bahia, o arquiteto Wesley Lemos considera que a arte é protagonista nos projetos de decoração. “A pessoa pode ter um sofá caríssimo, mas a obra de arte é única”, afirma o responsável pela Casa de Vidro da Casa Cor, instalada no Salvador Shopping, e pelo Instagramável, a área pensada pela curadoria para as poses da rede social. “A casa é um templo. Um lugar de renovação e purificação, e a arte é um amuleto de proteção”.
Formado na primeira turma de arquitetura em Sergipe, na Universidade Tiradentes, há 20 anos, Wesley tem uma trajetória singular. Mantém escritórios em Aracaju (voltado para a construção civil), São Paulo (design) e Salvador (reformas e segundas residências no litoral). E foi o primeiro arquiteto negro a marcar presença na Casa Vogue. “Eu não tinha pensado nisso até que um amigo dos Estados Unidos notou que eu era o único negro na revista”, afirma. “É uma pena ter que falar sobre isto. Mas eu inspiro pessoas”, destaca.
Wesley é um entusiasta do uso da arte nordestina em projetos de decoração, com uso de obras de Jenner, Almandrade e Josilton, e advoga em favor da simplicidade, de características regionais. Em seu ateliê paulistano produz almofadas de renda do Convento de São Francisco, cidade sergipana de São Cristóvão. A mesma onde a Santa Dulce dos Pobres iniciou-se como freira. E Wesley produz também um móvel-bar batizado de Caipirinha, que serve para guardar garrafas de cachaça, feito com palha comprada na Feira de São Joaquim. “A casa também merece isso, por muito tempo houve essa supremacia (do elitismo). Não é mais chique ou menos chique”, declara o arquiteto.

Interessada em referendar a presença feminina no mundo das artes, a arquiteta Jéssica Araújo encomendou à artista pernambucana Romilda Patez um quadro nos tons do material utilizado para a construção do ambiente Varanda, concebido em uma área de passagem entre os dois imóveis que abrigam a Casa Cor Bahia. “A tinta foi produzida com terra do sertão”, explica a arquiteta, que também defende a arte regional em seus projetos, como uma instalação de couro feita pelo artista pernambucano José Paulo.
Uma exceção no regionalismo é a poltrona Under Construct, do designer paulista Pedro Franco, nome tarimbado da Semana de Moda de Milão, através de sua loja A Lot of Brasil, e cujo trabalho é objeto de desejo de muitos arquitetos e decoradores. O projeto de Lorena Damásio e Daiana Fernandes também inclui uma poltrona dele, a Supernova. “A poltrona veio direto de Milão. Quando vi a poltrona, decidi que a queria em meu ambiente”, assinala Lorena.
A ferrovia
A mostra traz nomes consagrados do mundo das artes, como Siron Franco, Mário Cravo Júnior, Christian Cravo, Almandrade e Bel Borba. Mas o grande destaque é a devolução ao público do painel A Ferrovia, pintado pelo sergipano Jenner Augusto em 1958 para a Estação Ferroviária de Feira de Santana e que ficou guardado em um galpão da Rede Ferroviária Federal S.A., Calçada, onde permaneceu entre as décadas de 1970 e 2010.
Restaurado pelo Studio Argolo, do professor José Dirson Argolo, o painel, que faz parte do patrimônio do Iphan, fica em exibição na Arena do Conhecimento da Casa Cor Bahia até 3 de dezembro, e possivelmente será exposto em outras capitais brasileiras. “Jenner é um dos grandes representantes da segunda fase do Modernismo no Brasil, após a Segunda Guerra Mundial”, afirma Amorim.
Neto de Jenner, o galerista Zeca Fernandes, 43 anos, participou com familiares de uma cerimônia fechada antes da abertura da Casa Cor, no dia 21 de outubro, para conhecer o painel. “Foi emocionante. Ninguém tinha visto essa obra antes”, declara.

Sobre a mostra, o galerista considera extremamente importante que arquitetura e arte estejam juntas e que é um momento de apresentação de novidades, ao lado do resgate dos clássicos, como o painel de seu avô, Jenner Augusto.
Galerista há 20 anos, Thaís Darzé acredita que eventos de decoração, como a Casa Cor, são úteis para a formação de um público consumidor de arte. “É importante que o público veja como a obra de arte se comporta no projeto de arquitetura. A arte traz um diferencial e muito conteúdo aos projetos”, afirma a marchand da Paulo Darzé Galeria.
Bachelard faz uma interessante alegoria, a respeito dos insetos que têm as flores como sua casa. E uma das virtudes, aliás, das obras de arte enquanto objetos de decoração é que, tal qual o pólen, elas podem ser carregadas para o próximo lar e seguir nutrindo a gente que o habita. Mais vale viver no provisório que no definitivo, ensina Bachelard, para quem a casa é um lugar do passado, mas também do futuro.
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