Com 25 anos, Didá mudou a vida de 500 meninas negras de Salvador e faz vaquinha para produzir documentário | A TARDE
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Com 25 anos, Didá mudou a vida de 500 meninas negras de Salvador e faz vaquinha para produzir documentário

Publicado segunda-feira, 30 de setembro de 2019 às 10:15 h | Atualizado em 30/09/2019, 12:49 | Autor: Alessandra Oliveira
Apresentação no Pelourinho, onde fica a sede do grupo, criado por Neguinho do Samba
Apresentação no Pelourinho, onde fica a sede do grupo, criado por Neguinho do Samba -

"Oxe. Banda de mulher? Nunca vi isso”, respondeu Viviam Caroline Queirós, à época com 17 anos, quando sua mãe lhe contou que Neguinho do Samba (1955-2009) a havia convidado para tocar percussão. Meio insegura, foi para sua primeira aula em julho de 1993 no local onde, cinco meses depois, se fundaria a Associação Educativa e Cultural Didá [do iorubá, “o poder da criação”], na rua João de Deus, no Pelourinho. “Quando coloquei o tambor pela primeira vez, já era muito íntimo, como uma retomada”, lembra a jornalista. Ela e cerca de 500 meninas  tiveram contato inicial com o instrumento nos últimos 25 anos do projeto.

Em ensaio acompanhado pela Muito, a primeira banda feminina de samba-reggae  se apresenta  em frente à sede. Um casal de gringos é o primeiro a parar e apontar as câmeras do celular para o grupo, arranjado em estrutura sinfônica –  graves no fundo e agudos na frente. Além do ritmo contagiante, o figurino e a coreografia das  percussionistas  conquistam o olhar dos passantes e dos vizinhos, que povoam o local antes deserto. O gingado sincronizado dos quadris disfarça o peso de cerca de 5 kg dos tambores.  

A apresentação dura apenas meia hora. É preciso retornar ao casarão colonial da Didá para a próxima atividade da noite, antes que fique tarde para as meninas voltarem para casa. Em um estúdio amplo, as cerca de 25 mulheres das 80 que compõem o projeto atualmente se colocam em círculo. 

Elas seguem os comandos da “pró Viviam”, como carinhosamente a chamam, que ministra a disciplina de identidade toda quarta-feira. Os encontros mesclam conversas com outras expressões artísticas aprendidas na associação, como teatro, dança e capoeira. Em 2019, o tema-guia das aulas tem sido a  escrava brasileira Anastácia –  mulher   negra, com máscara que lhe impede a fala. Apesar de ter sua existência questionada por historiadores, é  símbolo de resistência para suas devotas.  

Uma delas é a pequena  Cauana Beatriz Souza, 11, neta de Neguinho do Samba. A estudante do 6º ano do fundamental acredita que Anastácia “já é muito conhecida no Pelourinho”, mas deveria ser assunto escolar. “Até mesmo nos livros tem preconceito e racismo. Sempre colocam ‘ah, os homens criaram isso’. Mas não foram os homens, foi todo mundo”.

Cauana e as demais integrantes da Didá fizeram o exercício de atualizar a história da personagem. Conforme criaram, se ela   estivesse viva, 131 anos após a abolição legislativa da escravidão brasileira, seria estudante de direito, respeitada pelo marido e querida pelas amigas. 

A persona é uma metáfora da  história da associação, que está planejando um desfile maior para o Carnaval 2020. “Vamos celebrar a maturidade de uma mulher que amadurece, é mais imponente. Imagino até que ela fica mais alta porque consegue ver mais”, explica Viviam, 42. Os detalhes da festa serão anunciados junto com uma segunda campanha de arrecadação financeira para produção de documentário sobre os 25 anos da instituição. A primeira, lançada no início do ano,  juntou apenas R$ 2 mil dos R$ 22,5 mil requeridos. As imagens para o vídeo chegaram a ser feitas no Carnaval deste ano, quando a Didá homenageou seu fundador, Neguinho Samba, falecido há 10 anos. 

Percalços

A comunhão entre tristeza e alegria faz parte da trajetória da associação na avenida. A festa  seguinte à morte de Neguinho foi marcada pelo choro e pela alta qualidade técnica da banda, segundo avalia a maestrina Ivone de Jesus, 32. “Foi nosso melhor Carnaval em harmonia. Todas tocando no mesmo sentimento”.

Mas se a perda do maestro foi causa pontual de infelicidade, todo ano recomeça o desafio de juntar dinheiro para figurino, logística e abadás. Ainda assim, elas estão presentes na festa de rua desde 1994, quando se apresentaram na entrega das chaves da cidade para o rei Momo. Em 1995, estrearam o bloco com 100 mulheres. No ano seguinte, o número de folionas passou para as duas mil  atuais. 

Para desfilar, basta doar alimentos e produtos de limpeza. A arrecadação , compartilhada com outras instituições sem fins lucrativos, amortece os custos mensais, que ficam em torno de R$ 6 mil. Durante o resto do ano, a maior parte da renda do projeto vem de shows corporativos. 

Quando há dinheiro extra, é usado para ajudar no transporte das integrantes, que costumam dividir o tempo com trabalhos externos. Graduada em recursos humanos e pós-graduanda em psicologia organizacional, Ivone dá aula de música e atua como consultora de vendas. “Gosto de música, mas meu sonho é ter algo fixo. Não temos  estabilidade, não sabemos se  teremos dinheiro todo dia 5”.

Segurança financeira é coisa que  a Didá conheceu pontualmente. Além do apoio contínuo da Gope, empresa que mantém as peles dos tambores, já contaram com a ajuda valorosa da escritora paulista Mônica Buonfiglio, 56. “Tudo que eles precisavam, me ligavam, ‘mainha, estamos precisando disso aqui, equipamento de som, tudo”. Mônica conheceu a banda que seria “o encantamento da sua vida”, como diz, quando veio a Salvador em meados de 1990, e durante cerca de três anos bancou quase todas as despesas da Didá a distância.   

Amplitude

O reconhecimento por  nomes da música também veio nos anos iniciais. Em 1996, a banda participou da gravação da trilha  do filme A luz de Tieta, de Cacá Diegues, e viajou em turnê com Caetano Veloso e Gal Costa. No ano seguinte, lançaram o primeiro e único CD, A mulher gera o mundo. Desde então, tocaram em sete países e compuseram o projeto social internacional Red Hot and Lisbon.  

Para Viviam, além do talento das meninas, a figura de Neguinho foi crucial para a expansão do grupo. “Caetano perguntou ‘elas estão prontas?’ e ele assinou embaixo. Nessa época, ele já era um signo. Todos tinham imenso respeito”.

De fato, o samba-reggae já havia caído no gosto de artistas nacionais e, três anos antes da criação da instituição, o maestro baiano  regeu o Bloco Afro Olodum para o CD The rhythm of the saints, de Paul Simon. Foi, inclusive, o músico norte-americano quem presenteou Neguinho com o prédio que se tornou sua casa e a da Didá. 

A doação ajudou a concretizar o antigo desejo de montar uma banda de percussão feminina. Segundo Viviam, ele até tentou tocar o projeto no Bloco Olodum, mas não teve apoio. A jornalista fez a reconstituição da história do ex-companheiro em sua dissertação Quilombo de Tambores: Neguinho do Samba e a criação do samba-reggae como uma tradição negro baiana, defendida há três anos na Universidade Federal da Bahia (Ufba). 

Para ela, o nascimento da  Didá  é mais importante que o do próprio samba-reggae, pois “ele começou a se relacionar como grupo social mais vulnerabilizado, que somos, nós, mulheres negras. Foi muito arrojado da nossa parte assumir esse lugar que ninguém nos dava. Agora que deu, ninguém toma”. 

Desde o falecimento de Neguinho, é a filha Débora Souza quem preside a associação educativa e cultural. A irmã Andréa Souza,  Vivam e a maestrina Adriana Portela também compõem a diretoria. Segundo contam as colegas, Débora é “muito criteriosa, atenta e cuidadosa” com as demandas administrativas. 

Sob o comando da progênita, a banda participou do encerramento da Copa do Mundo de 2014, no Rio de Janeiro, ao lado de Shakira e Carlinhos Brown, e animou espectadores dos jogos da seleção feminina na Copa deste ano, no Pelourinho. Na ocasião, o narrador  Galvão Bueno chamou as meninas  de “Olodum feminino”, ignorando a história distinta dos grupos.

A instrumentista Marina Santos, 34, que esteve presente nos dois eventos  esportivos, conta rindo sobre a repercussão em casa. “Diz que era um alvoroço, o povo gritando ‘não acredito que é a Marina’, outro pessoal falava ‘é Marina, sim’”. Mas se os vizinhos tinham dificuldade em reconhecê-la, também ela não se imaginava em tal posição há 14 anos, quando entrou na Didá.

A timidez da atendente de call center era tanta que chegou a faltar a dezenas de apresentações da banda. “Entendi que não era só  lúdico, que eu tinha a responsabilidade de ser espelho quando as crianças do meu bairro começaram a me tratar como Deusa”.

Dentre as mudanças que passou na associação, a mais facilmente identificável é a aparência. Antes, fazia alisamento no cabelo e “deixava preso, escondido”. Tinha vergonha do nome e dos lábios carnudos. “Achava que batom vermelho não cabia em mim”. Depois de cerca de cinco anos no projeto, viu sua vaidade desabrochar aos poucos. Começou a soltar os cachos do cabelo, agora com tranças, e pintar a boca com cores claras. Hoje, sempre maquia outras meninas antes dos shows, o que lhe rende reclamações por atraso.  

Africanidade

O ato de arrumarem uma à outra é hábito na sede da Didá. As meninas andam à vontade pelo prédio, trocando de figurino nos corredores. “Enquanto um grupo ensaiava, tinham sempre duas meninas, uma penteando a outra. Um dia, disse a Viviam ‘aqui é um casa africana’. Nas casas africanas onde estive tinha esse cuidado”, lembra a escritora e doutora em educação Vanda Machado, 77.

Ela e o ex-marido, o ator Carlos Petrovich (1936-2005), começaram a frequentar a casa da rua João de Deus em 1999 para ensinar teatro com uma metodologia pautada na cultura afro-brasileira. As aulas acabaram virando um projeto de extensão de Carlos, então professor da Ufba. “Era pesquisa de fato, mas não era de direito”, brinca Vanda, que misturou ciência com afeto.

Nessa época, “a primeira coisa com que Neguinho se preocupava era alimentar as crianças”, diz a escritora. “Tinha dia que não tinha comida e ele saía com dois, três meninos e voltava com sacolas cheias. Dali para 16h, 17h, todo mundo almoçava. Era tarde, já estava todo mundo muito cansado, mas o importante é que estivéssemos juntos”. 

Depois de comer, a maioria das crianças voltava para  casa, geralmente, acompanhadas das mães, que as levavam e buscavam. Algumas delas, porém, cerca de 10, permaneciam na sede.  Sandra dos Santos, 32, é uma das que ficavam e até hoje  mora no prédio. Ela dorme no andar logo acima da família de Andréa Souza, filha de Neguinho do Samba.  

Antes  de frequentar as aulas do projeto aos 15 anos, Sandra residia em um orfanato. Ela viu uma apresentação da banda na TV e pediu para a dona da creche lhe matricular no projeto Sódomo [traduzido do yorubá, “criar uma criança como se fosse seu próprio filho”], que até hoje ensina percussão para crianças. Seu filho Marley dos Santos, 12, frequentou as aulas até os 10 anos – idade-limite para os participantes masculinos.

Como a maioria das meninas, Sandra chegou sem  saber tocar tambor no projeto, onde cresceu das mais diversas formas. “Eu não conhecia minha cultura, a beleza das pessoas negras, a atitude”. Agora, a percussionista aguarda a chegada de Pérola, que está há seis meses no seu ventre. A previsão para o nascimento é dezembro, mas Sandra  tem planos para a pequena. “Se é menina, vai tocar na Didá”.

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