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MUITO

Complexo de barragens da RMS enfrenta crise

Por Eron Rezende

12/06/2017 - 14:34 h | Atualizada em 21/01/2021 - 0:00
Jinaelson Nascimento na Barragem Joanes II, em Camaçari
Jinaelson Nascimento na Barragem Joanes II, em Camaçari -

No final de abril, a engenheira ambiental Isabel Teixeira saiu de casa para cumprir uma tarefa que repete ano após ano. Prendeu o longo cabelo grisalho e vestiu-se como uma escoteira para uma “missão” que, como ela diz, é pessoal e política. Ao chegar até a barragem de Joanes II, um dos principais reservatórios da região metropolitana de Salvador, situado ao norte de Camaçari, pôs-se a fotografar, medir o nível da água e, por fim, pescar, como quem zela pela própria criação. Uma das engenheiras responsáveis pela construção da barragem, inaugurada em 1971, Teixeira tem o registro da última década: a água diminuiu e os peixes estão escassos. “Nossos estudos mostravam que Joanes II conseguiria garantir a Salvador e às cidades vizinhas uma segurança hídrica de, no mínimo, 50 anos”, diz ela. “Não chegamos nem ao fim do prazo e a água está secando a passos largos”.

Com 14 municípios, a região metropolitana de Salvador (RMS) tem quase quatro milhões de habitantes e é abastecida com água captada em cinco barragens: Joanes I e II, vinculadas ao rio Joanes; Santa Helena, no rio Jacuípe; Ipitanga I e II, no rio Ipitanga; e Pedra do Cavalo, no rio Paraguaçu. Dados do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) revelam uma situação crítica. Apenas a barragem Joanes I opera no azul, com 100% de seu volume útil, nome dado à parcela de água que pode ser utilizada para o abastecimento da população (ver mapa).

Os piores registros vêm de Pedra do Cavalo, gigante situada entre as cidades de Cachoeira e São Félix, responsável por 60% do abastecimento da RMS. Inaugurada em 1985, com pompas faraônicas, previa-se que a barragem seria completamente preenchida pela água em dez anos. Em menos de quatro anos, as comportas tiveram que ser abertas tamanha a pujança do rio Paraguaçu. Administrada pelo Grupo Votorantim desde 2002, após vencer leilão e receber uma concessão de 35 anos do governo federal para a construção e exploração de uma usina hidrelétrica na barragem (essa inaugurada em abril de 2005), Pedra do Cavalo opera, hoje, como 23% do seu volume útil.

Imagem ilustrativa da imagem Complexo de barragens da RMS enfrenta crise

A engenheira Isabel Teixeira, na Barragem de Santa Helena, em Dias D'Ávila. Foto: Anderson Azevedo/ Divulgação

“Aquele elefante é o retrato de um sistema que está no meio de uma crise sem precedentes”, diz o engenheiro Clóvis Dantas, que esteve à frente da administração de Pedra do Cavalo entre os anos de 1997 e 2001. Aposentado desde 2014, ele oferece consultoria em gestão de águas, e seu apartamento, no centro de Salvador, é uma espécie de QG da situação hídrica do estado. Folhas impressas com dados pluviométricos traduzem o que Dantas chama de sexto ano seguido de seca. “O período de chuvas já começou, mas não tem sido suficiente. Com mais um ano de estiagem, o sistema que abastece Salvador não aguentará”.

POLÍTICA

Em um ano pré-eleitoral, políticos e agentes públicos passaram a medir a palavra racionamento. Não negam a possibilidade, mas exaltam “esforços para não sacrificar a população”, como disse o governador Rui Costa, em pronunciamento a empresários do Polo Petroquímico, em fevereiro. Cenários como o antecipado pelo diretor de abastecimento da Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa), Carlos Ramirez, no qual o fornecimento de água à RMS aconteceria três dias sim e um não, ou pelo presidente da Embasa, Rogério Cedraz, onde as cidades teriam seis dias com água e um não, passaram de corriqueiros a suspensos.
“A gente tem uma situação bem crítica de abastecimento em Salvador. As chuvas que têm caído dão a falsa impressão de que a situação está se regularizando, mas ela não cai onde a gente precisa. O risco de racionamento existe, mas é preciso esperar dados mais concretos sobre a questão”, diz Cedraz à Muito. De sua fala, depreende-se que o exemplo do colapso do Sistema Cantareira, em São Paulo, que jogou a crise hídrica no debate eleitoral de 2014, é um desassossego.
Em março deste ano, a Embasa e seu órgão de apoio, a Companhia de Engenharia Ambiental e Recursos Hídricos da Bahia (Cerb), passaram a intensificar a publicidade em torno de ações para reverter o que chamam de “maior seca em 100 anos”. Como carro-chefe está a implementação de um sistema que transpõe as águas de Pedra do Cavalo para a barragem Joanes II (que hoje opera com 47% do volume útil), seguido de um edital de licitação para uma obra, avaliada em R$ 860 milhões, que pretende ampliar a captação da barragem de Santa Helena (operando com 33%). A construção de uma nova barragem, em Itapecerica, a 50 quilômetros de Salvador, também entrou no radar. Os órgãos justificam as ações como formas de equilibrar o sistema hídrico da RMS.
Embora Salvador e as cidades vizinhas sejam holofotes para as ações públicas, a região não é a única na Bahia a ter o abastecimento de água ameaçado. Em todo o estado, 16 reservatórios de água estão com menos de 30% do volume e 223 municípios já decretaram emergência devido à seca ou estiagem – a população afetada chega a quatro milhões de pessoas no interior. Cidades como Senhor do Bonfim e Vitória da Conquista já lidam com racionamento. Nesta última, os moradores estão divididos em dois grupos e cada um recebe água três dias sim e três dias não. O racionamento na cidade já dura um ano.
No final de maio, o plano para a construção de uma nova barragem para abastecer Vitória da Conquista e outros seis municípios próximos sofreu um revés: a Justiça Federal determinou a suspensão da licitação para a construção por falta de licenciamento ambiental. Segundo a ação civil pública, a construção deve desmatar uma área de 170 hectares de mata atlântica. O governo alega que a documentação está em ordem e uma audiência sobre o caso está marcada para 17 de julho. Segundo a Embasa, como segue sem chover na região de Vitória da Conquista, o racionamento não tem prazo para acabar.

DEMANDA

Inconformado com o fato de o crédito da crise hídrica ser depositado na conta da falta de chuva, Asher Kiperstok, coordenador da Rede de Tecnologias Limpas (Teclim), grupo da Ufba que estuda o consumo de água, promoveu, em março, um debate na Escola Politécnica sobre o colapso hídrico e o risco de racionamento de água. Especialistas expuseram suas visões, e em comum esteve a ideia de que os problemas se agravarão se as ações públicas se concentrarem apenas em novas formas de captação de água.
“Se você aumenta sua dívida nos cartões de crédito, você corre atrás de mais empregos ou você corre para organizar melhorar as suas despesas. No caso da água, as ações são exclusivamente voltadas para buscar mais oferta. Não gerenciamos a outra ponta do processo, a demanda”, diz Kiperstok, um sujeito de fala rápida e muitos gestos. “A primeira pergunta é, justamente, que não fazemos: por que o sistema da Embasa perde 40% de água em suas tubulações?”.
Por obrigação legal, as empresas que gerenciam a distribuição de água nos estados brasileiros entregam relatórios à Agência Nacional de Águas (ANA). Entre os dados disponibilizados está o índice de perdas na distribuição. Na Bahia, o último índice divulgado, em 2015, foi de 36% – próximo à média nacional, de 37%. A cada 100 litros, o estado perde 36. Para pesquisadores, as perdas podem ser maiores, já que as empresas estatais não são obrigadas a auditar os números.
Para chegar às torneiras, a água sai dos reservatórios, segue para as estações de tratamento e, mais uma vez, pega o caminho de novas tubulações até as casas. Nesse processo, a água captada em Pedra do Cavalo, por exemplo, percorre cerca de 150 quilômetros. Vazamentos e rompimentos em tubulações não são incomuns, mas os índices de perda no Brasil não são banais. No Japão, esse número é de apenas 5%.
“Construir uma nova barragem custa mais e tem um impacto ambiental maior. Por que os esforços não estão em atenuar as perdas, com rastreamento das tubulações, redução de pressões, substituição de redes por materiais mais resistentes? São ações contínuas, mais baratas e que produzem resultados progressivamente”, diz Kiperstok. “Durante a construção de Pedra do Cavalo, havia uma unanimidade técnica de que aquela obra era desnecessária e que ações para atenuar as perdas de água somadas aos mananciais da região metropolitana eram suficientes. A obra seguiu, e por quê?”.
Uma visita a arquivos de jornais e a documentos públicos evidencia o embate em torno da construção de Pedra do Cavalo. A justificativa apresentada por agentes públicos para a construção foi a de que a barragem sanaria os problemas trazidos, justamente, por um recente período de seca – entre 1972 e 1975, a Bahia atravessou uma estiagem prolongada e Salvador viveu seu primeiro grande racionamento. Sob o governo de Antônio Carlos Magalhães, a construção foi gestada como “solução” e “maior obra no Nordeste”. Um discurso repetido pelo sucessor, João Durval, responsável pela inauguração.
Em nota enviada à Muito, a Embasa afirma que a construção de novas barragens não é a única ação para debelar a atual crise de abastecimento e que a empresa tem intensificado o combate a perdas no sistema, realizando “continuamente intervenções preventivas, para substituição de trechos das redes”, e que, em Salvador, o grande número de ligações clandestinas (usuários que se conectam à rede, mas não pagam pelo serviço) “é um fator de grande relevância em relação ao desperdício de água”.
Imagem ilustrativa da imagem Complexo de barragens da RMS enfrenta crise
Barragem Joanes II, em Camaçari, região metropolitana de Salvador. Raul Spinassé / Ag. A Tarde
ANATOMIA
No Brasil, a exaustão de sistemas hídricos expõe a composição complexa da gestão da água e uma legislação ainda frágil. A Constituição de 1988 definiu quem são os “chefes” das águas. Rios, lagos e quaisquer reservas que atravessem mais de um estado são domínio da União (exemplo da Bacia do São Francisco e da barragem de Sobradinho, no oeste baiano), caso fiquem num único estado, a tutela é estadual.
Em 1997, no governo de FHC, aprovou-se a lei das águas (Lei 9.433), que instituiu a política nacional de recursos hídricos. A legislação determina que a água é um bem de domínio público e que deve haver a descentralização da gestão e a participação dos cidadãos, com criação de comitês de bacias hidrográficas, encarregados de monitorar a aplicação e o consumo da água, zelar pelos mananciais e propor estudos técnicos. Mas, na prática, os comitês funcionam sem eficácia, com desacordos entre os setores.
Além das regras da Constituição e da lei das águas, uma lei mais recente sobre saneamento, a Lei 11.445, aprovada em 2007, no governo Lula, pôs mais um personagem na gestão. O saneamento (que inclui a poluição de rios e mananciais) passou a ser responsabilidade dos municípios. A falta de água exige uma articulação entre União, estados e municípios.
Não por acaso, no início deste ano, numa palestra dada a gestores públicos e pesquisadores baianos, o chefe da Companhia de Água de Israel, Amir Schischa, falou em “cooperação”. Em seu diagnóstico sobre o que ocorre na Bahia, disse: “O que nós estamos vendo nesta crise é que os planejamentos, se existiram, não consideraram de forma adequada as variações climáticas, as possibilidades de estiagem prolongada e nem que alternativas podem ser adotadas para fazer face a essa situação”.
“Transformando o deserto em oásis” é o slogan da Companhia de Água em Israel, país que luta contra a seca desde o seu nascimento, há 67 anos. A criação de leis claras para o uso da água, com sistemas de economia e regulação, é traduzida em reaproveitamento de 80% do esgoto e perdas nas tubulações em torno de 7% – cada tubulação tem uma espécie de RG, onde é possível acompanhar a sua idade; a cada ano, 10% das tubulações de água do país são renovadas.
Em entrevista à Muito, por e-mail, Schischa narrou um evento que chamou a sua atenção em sua passagem por Salvador. Em sua palestra, um engenheiro lhe perguntou qual era o nível de ingerência política do governo na Companhia de Água de Israel. “Não entendi a pergunta porque me parece um absurdo que isso possa existir. A administração da água não pode ser submissa a diretrizes dos governos. E, se algum governante quer mudar os rumos da gestão dos recursos hídricos, ele deve fazer isso através de lei”.

CADA GOTA

Em 2014, quando São Paulo enfrentou crise no abastecimento, a Agência Nacional de Águas divulgou um mapa com regiões que poderiam sofrer a próxima crise hídrica. No mapa, a Bahia apareceu salpicada de cores amarelas e vermelhas. A primeira cor indicava baixa quantidade de água. A segunda, marcando a região metropolitana de Salvador, assinalava baixa quantidade e qualidade.
“Temos rios degradados, índices de perda assustadores nas companhias de água e um desperdício inconcebível por parte da população”, diz Altair Delgado, coordenador da Associação Brasileira de Recursos Hídricos, que auxiliou na confecção daquele mapa. “Em Salvador e cidades vizinhas, há um forte crescimento desordenado. Sem planejamento não há proteção de nascentes nem dos reservatórios naturais”.
Delgado cita como exemplo a Bacia do Cobre, no subúrbio, e Pituaçu, duas reservas inutilizadas pela poluição. Em seu escritório, há um quadro branco com dados sobre Salvador e região. Ali lê-se: “Há anos os depósitos de água são explorados acima da recarga média. Tira-se mais água por dia do que os rios e as barragens conseguem repor. Deu no que deu”.
Nas barragens, a calmaria quase esconde a atual crise. Um ou outro flanco de terra, no entanto, surge para revelar o desarranjo. Acostumada a frequentar a barragem de Joanes II há 15 anos, a fazendeira Iracema Flores diz que nunca viu o local tão seco. Criada na pequena Nordestina, município encravado no meio do sertão baiano, Flores repete um ensinamento da mãe, também compreendido como um adágio para as cidades. “Em terra arredia, quem tem cacimba de água carrega cada gota como ouro”.

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