OLHARES
Corpo e memória, silêncio e grito: Nino Cais e Walter Firmo
Confira a coluna Olhares da Revista Muito deste fim de semana
Por Cristina Damasceno*

O hábito de colecionar coisas, segundo alguns autores, é tão velho quanto a consciência humana. Pensando nesta possibilidade, podemos admitir que criamos um museu particular durante nossa existência. Partindo deste conceito, o artista Nino Cais elaborou a exposição intitulada Cada pessoa guarda um museu dentro de si, que pode ser vista até hoje na Caixa Cultural Salvador.
Durante algumas décadas, Nino Cais vem colecionando materiais imagéticos como revistas, livros e elementos da cultura visual para confecção de suas obras, que se converteram em instalações, colagens e fotografias. Dentre os trabalhos expostos estão algumas fotografias da série Viajantes, composta por objetos que o artista recebia de pessoas que viajavam para lugares que ele desconhecia.
Assim, o artista começou a fazer suas composições e se autofotografar no quintal da sua casa: “Uma ideia de viajante que não se desloca, viajante através dessa passagem, desses objetos que vão trazendo consigo esse repertório cultural de outro país, de uma outra cultura, de uma outra história”, diz. Ele ainda associa esse trabalho à atividade de alguns fotógrafos oitocentistas que faziam viagens em busca de temas exóticos para produzir cartões-postais.
Já na série denominada Quantos paus se faz uma canoa, Nino se inspirou no trabalho do artista norte-americano Bruce Nauman. Uma sequência de imagens em preto e branco apontam para uma cadeira que vai sendo desmontada pelo artista. A ação reflete questões do espaço, da experiência do corpo em relação ao objeto, e também o objeto como corpo e o corpo como objeto.
As relações entre os dois elementos resultam em uma dinâmica, onde a cadeira é dissolvida em um objeto plano. À medida que a ação vai sendo construída, ele cria uma espécie de narrativa com os elementos até o seu desfecho, quando restam apenas pedaços de madeira, retalhos da cadeira. Daí a escolha oportuna do título da obra que, segundo o autor, leva a certa ironia. A mostra tem curadoria de Nathalia Lavigne que menciona o corpo como meio utilizado pelo artista para incorporar o universo dos museus.
A exposição, de certa maneira, me remete a pensar nas primeiras coleções que foram criadas de forma inconsciente, de maneira espontânea, no sentido de agrupar itens que atendessem aos desejos e necessidades de seus colecionadores. Ao visitar a mostra, lembrei dos chamados Gabinetes de Curiosidades ou Câmaras de Maravilha, os antecessores do museu, locais de propriedade privada – que durante o Renascimento europeu, período de exploração de novos territórios e de descobertas científicas – exibiam artefatos raros e exóticos.
Tendo em conta que as orientações nas escolhas dos objetos no passado, muitas vezes, eram subjetivas, de modo semelhante nesta exposição o ato de classificação e sistematização das peças adquiridas obedecem a critérios particulares que se entrelaçam criando memórias coletivas.
Com trabalhos na 30ª Bienal Internacional de São Paulo, Nino Cais é paulista, artista plástico atuante, tendo diversas exposições no Brasil e no exterior. Acredito que suas escolhas foram bastante oportunas, pois trata, ainda, do fluxo de imagens e o apelo à memória na contemporaneidade. Também é estimulante refletir a ideia de um museu interior, constituído por objetos fontes de significados, lugar de evocar memórias, lembranças esquecidas ou escondidas, que reflete o passado e revela matizes do presente.
Panorama
Depois de passar por São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte, chegou em Salvador, no começo deste verão, no casarão principal do Museu de Arte Moderna, Solar do Unhão, a exposição Walter Firmo: no verbo do silêncio a síntese do grito. A exposição, que pode ser vista até março, traduz um panorama da carreira do fotógrafo com imagens do início de sua trajetória, no começo dos anos 1950, até a atualidade.
Carioca, fotojornalista, Walter Firmo trabalhou em veículos de comunicação influentes como Última Hora, Jornal do Brasil, Revista Manchete, Fatos & Fotos, dentre outros. Logo no começo de suas atividades, ele foi o vencedor de um dos principais prêmios de jornalismo na época, o Esso de Reportagem, com a matéria intitulada 100 dias na Amazônia de ninguém, em 1963.
O fotógrafo também se dedicou ao ensino da fotografia, e dirigiu até os anos 1990 o Instituto Nacional de Fotografia. A propósito, em um dos vídeos da exposição é possível assistir seus relatos sobre sua experiência como professor. Na prática com os estudantes, ele relata que mostrava “o pulo do gato”, as questões relativas à luz, ao enquadramento, as vantagens de morar em um país tropical e se beneficiar dos seus tons, percebendo a beleza na simplicidade do povo e, sobretudo, a sofisticação desta simplicidade.
O espaço do museu foi dividido em dois segmentos, parte inicial da exposição composta por fotografias em cores e outra em P&B.
Olhar vibrante
Ao chegar na exposição, me deparei com uma explosão vibrante de cores, onde me senti observada pelos olhares intensos dos retratados. A maneira que o fotógrafo se aproxima das cenas, dos rostos e o contraste produzido pelas cores se converte em pura poesia.
Walter Firmo se considera um fotógrafo colorista. Para ele, a cor é um emplastro, uma droga: “Eu não seria um fotógrafo colorista se morasse na Islândia, porque eu precisaria da cor para me comunicar através daquilo que bate na minha pele e me transcende, me reporta a um delírio. A cor é tão flamejante que, às vezes, eu penso que é um cometa que passa diariamente por nós, a cada 12 horas que a gente vê desde o nascer ao se pôr e que precisa daquela energia”.
Com curadoria de Janaína Damaceno e Sergio Burgi, o projeto expográfico reúne nas paredes do museu um mosaico composto por várias fotografias de manifestações culturais de diferentes partes do Brasil. Embora sejam eventos distintos, é possível enxergar a unidade nas combinações feitas.
A mistura de imagens reflete cenas de festas religiosas e profanas. A exemplo, um dos conjuntos expostos que apresenta a festa de São Benedito, em Conceição da Barra no Espírito Santo; a festa do Divino, em Minas Gerais; o Bumba-meu-boi, no Maranhão; a festa de São João, na Bahia, e o carnaval no Rio de Janeiro. Percebi esses elos como uma radiografia de uma identidade brasileira.
O segmento dedicado à fotografia P&B dialoga com os aspectos estéticos e formais do trecho colorido. Revela uma parte da intimidade do fotógrafo, sua família, amigos, amores e ainda apresenta uma produção desconhecida, com imagens inéditas, feitas em seus momentos de lazer na praia de Piatã.
Especialmente, a exposição representa o engajamento político de Walter Firmo na valorização e visibilidade da cultura negra no país, oferecendo ao visitante a possibilidade de admirar toda riqueza de nossa sociedade.
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa necessariamente a opinião de A TARDE
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