OLHARES
Corporeidades das (re)existências
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Por Milene Migliano*
A exposição Dona Fulô e outras joias negras recria histórias de resistências das existências negras por meio do encontro com seus corpos em expressão política em obras prenhes de potência de transformação. A exposição é uma iniciativa que se origina a partir de uma encruzilhada na qual estiveram uma imagem de Dona Florinda (também conhecida como Dona Fulô), presente de Emanoel Araújo para Itamar Musse, que revelou para o colecionador que uma das joias de crioula de sua coleção estava no braço da mulher da fotografia.
O encontro de Musse com a imagem abriu um campo de curiosidade e pesquisa nas quais a afirmação daquelas mulheres negras no fim do século XIX se conecta com as joias que proporcionavam a compra da liberdade de seus entes ainda sobre a égide da escravidão, afirmando sua distinção e relevância social diante da aristocracia branca.
A força destas mulheres prescreve, de alguma forma, as reexistências de sua descendência. A história que está contada em parte no livro Florindas, de Itamar Musse, que em textos e imagens recompõe a história de Florinda Anna do Nascimento, apresenta a coleção de joias do acervo de Musse e esclarece fatos capitais sobre as condições em que viviam as mulheres negras na Bahia dos séculos XIX e XX. Do livro, veio a ideia da exposição, a segunda promovida pelo Centro Cultural Banco do Brasil Salvador, que ainda não está com a sede própria instalada.
Eneida Sanches, curadora da exposição realizada no Museu de Arte Contemporânea, com Carol Barreto e Marília Panitz, afirma que quando Itamar Musse decidiu fazer o livro ele tinha a intenção de apresentar ao Brasil e ao mundo essa coleção inigualável e recontar corretamente a história das joias crioulas, em que “feminismo, ativismo e espiritualidade negra estão reunidos em um grupo de mulheres que desafiam racismo e poder econômico concentrado nas mãos da elite escravocrata desta região da Bahia. Uma ação sem precedentes nem ‘póscedentes’’’.
Assim, Navegação (2024), de Carlos Lin, nos recebe no início do trajeto da exposição como um preâmbulo, anterior à apresentação de Dona Fulô. Obra instalativa produzida a partir de cabaças, sementes, fibra de palmeira, cordão de juta e cesta de bambu com cipó, rearranja os elementos da natureza que no vazio do interior das cabaças têm o necessário para inscrever jornadas, começos, germinação de sementes e caminhos abertos.
No segundo andar, o primeiro núcleo da exposição traz nas Histórias de Florindas um sobrevoo na Salvador que desde os séculos XVIII e XIX abriga a prática transgressiva da criação das joias crioulas, idealizada pelas mulheres negras alforriadas e realizada por seus ourives não registrados, mas que manejavam muito bem as técnicas de fundição e confecção das joias. A fotografia de Dona Fulô juntamente com outros registros de mulheres daquele tempo definem suas fortalezas: seus corpos, suas famílias, suas crenças e seus lugares de ação – as ruas, os terreiros, as irmandades – os afetos, inclusive em relações paradoxais.
Em três grandes armários instalativos, as histórias das primeiras Casas de Axé da capital baiana, o Terreiro da Casa Branca, o Terreiro do Gantois e o Ilê Axé Opô Afonjá são apresentadas em um jogo de revelação das imagens das mães de santo que fundaram e que mantêm a continuidade dos três espaços de culto ao candomblé, aos orixás e suas culturas.
Pelo espaço instalativo as obras dialogam com as contas, tabuleiros, a cidade que se caminha e as joias que se constituem enquanto resistência. Imagens de santos negros da Igreja Católica se espalham pelo espaço: São Benedito, Santa Efigênia, Santo Eslavão e Rei Mago Baltazar, que é comemorado com os outros reis magos, no dia de Reis, 6 de janeiro.
A Irmandade da Boa Morte, que se constitui em Salvador e, depois do declínio econômico da cidade migra para Cachoeira, no Recôncavo Baiano, se apresenta com as irmãs em trajes da festa comemorada em todo mês de agosto, religiosamente.
No segundo núcleo, As Raras Florindas, estão expostas as joias de crioulas que fazem parte da coleção de Itamar Musse, vídeos que apresentam as técnicas de ourivesaria e as possibilidades de produção das joias, que burlavam as severas leis da coroa portuguesa.
Imagens e referências das mulheres da Irmandade da Boa Morte continuam presentes, já que suas joias fazem parte desta constelação de afirmação de sua magnitude em território brasileiro. Muitas das joias foram confeccionadas a partir da junção de alianças, mas também a partir da disponibilidade de pedras preciosas e da produção de espaços de armazenamento de objetos de valor, como fotos em relicários ou ervas de proteção em espaços ocos de pulseiras e de pingentes.
Patrimônio
A série de imagens de Adenor Gondim sobre a Festa ilumina momentos importantes da celebração ritual secular pelas ruas de Cachoeira, patrimônio imaterial da Bahia. Em três dias de procissões, missas, celebrações e festas, as mulheres da Boa Morte são acompanhadas por fiéis e seguidores que reafirmam sua fé junto às irmãs.
“A ideia de agregar um núcleo Contemporâneo à mostra veio em seguida, pois nossa intenção é mostrar de que forma os artistas que nela estão utilizam sua linguagem visual para apontar para as mesmas questões/cruzamentos”, diz Eneida Sanches. “Observamos este alinhamento entre passado e presente na luta das mulheres da Boa Morte especialmente nos quesitos de utilização do corpo para abrigar seus bens – cujo objetivo é também libertar outros corpos escravizados – poder econômico e religioso e da visibilizacão através da força estética”.
O terceiro eixo expositivo, As Armas Florindas, ocupa o primeiro andar e foi idealizado pelas curadoras Eneida Sanches e Marília Panitz. Apresenta um recorte da produção contemporânea de artistas brasileiras negras e negros que emulam essa história e “propõe novas transgressões poéticas com esculturas, vídeos, pinturas, objetos e outras mídias, com numerosos desdobramentos das joias de Dona Fulô: joias-folhas, joias-marés, joias-rezas, joias-roupas. Os recursos utilizados vão do uso do corpo como cofre para garantir a proteção de seus bens, ao aceno de liderança e autoridade para os desvalidos e à espiritualidade – fundação sobre e ao redor da qual tudo se agrega e regenera”.
Eneida Sanches explica que os diferentes eixos dentro do núcleo contemporâneo são recursos que visam dar conta das maneiras distintas de abordar esses quesitos da utilização do corpo como lugar de liberdade e resistência coletiva. Os eixos são nomeados como Aparições, Paisagens e Rituais.
A sala dedicada às Aparições tem como mote o imperativo “Lembre-se” e reúne os trabalhos Notícias da América (2010), de Paulo Nazareth, com duas fotos que enunciam a travessia e a diáspora com o que resta e reescreve o tempo; Aceita? (2013-2024), de Moisés Patrício, que apresenta fragmentos da fé das religiões afrodiaspóricas em relação à palma da mão; a escultura Orô (2013) de Nádia Taquary, que recria uma penca de balangandãs ligada a uma imensa corda de contas produzidas a partir de matérias de demolição.
Danton Paula apresenta neste eixo uma série de pinturas que são estudos para retratos de Tereza de Benguela I (2023), Nã Gotimé (2024), Ventura Mina (2024) e Francisca (2024), e que busca uma reparação através da arte, conferindo subjetividade e protagonismo a mulheres que foram quase apagadas da história do Brasil.
Na sala que acolhe o eixo Rituais estão as esculturas do Mestre José Adário dos Santos, conhecido como Zé Diabo, artista e ferreiro que atua na Ladeira da Conceição, em Salvador, produzindo obras que integram espaços sagrados e que por si só são sagradas em sua presença marcante. A série Afetocolagens: Reconstruindo narrativas visuais de negros na fotografia colonial Série II (2022), de Silvana Mendes, manipula texturas e outros objetos visuais na ressignificação das imagens base.
Mansinhas, Mulheres com fogo nos olhos (2021), de Chris Tigra, apresenta mais uma recriação a partir de imagens fotográficas coloniais, entregando para as mulheres retratadas um facão coberto acompanhado de linhas vermelhas que saem de seus olhos e enredam uma teia de apoio e de suporte no chão da sala da exposição, que ao ser tocada pelos pés do público, vai redesenhando os traços da rede de sustentação.
Enfim, dentre as fotografias apresentadas de Eustáquio Neves, ressalto a de seu Crispim, da série Encomendador de Almas (2007), cantador de Vissungos na região de Diamantina em Minas Gerais, tradição ancestral de embalar com cantos os corpos no caminho entre sua morada terrena e o cemitério nos quais eram enterrados, lembrando os ritos de passagem pelos quais todos, com canto, lamento ou despedida, estamos designados a viver.
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
*Doutora em Arquitetura e Urbanismo, jornalista e integrante da Associação Filmes Quintal
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