MUITO
Corrupio encerra atividades após 41 anos dedicados à cultura afro-baiana
Por Maria Clara Andrade

Tudo que começa tem fim. Entre o começo e o fim, você constrói uma história”. É assim que Arlete Soares, fundadora da Editora Corrupio, em 1979, anuncia o seu fechamento. Em seus mais de 40 anos de existência, a Corrupio construiu, compartilhou e modificou histórias. Rina Angulo, sua sócia, complementa: “É o curso natural da vida. A gente está fechando com a satisfação de um dever cumprido, com muito orgulho”.
A história da editora é marcada por peculiaridades. Foi fundada para publicar a obra de um homem em específico, o fotógrafo e etnólogo francês Pierre Verger. Grande amigo de Arlete, foi apresentado a ela por Jorge Amado.
Arlete, lá nos anos 1970, se indignou ao descobrir que não havia um exemplar sequer da obra de Verger traduzida em português. Prometeu ao amigo encontrar uma editora para publicá-la no Brasil, mas cumprir a promessa mostrou-se muito mais difícil do que imaginava.
Reuniu um material ainda não publicado que Verger tinha guardado e meteu-se a procurar editoras no Rio de Janeiro e em São Paulo. “Eu estava certa de que eles iam ficar muito gratos de eu ter levado um material tão fantástico, não tinha nada de Verger em português. Eles todos me disseram ‘não’, inclusive um me disse assim ‘tem tanto negro, não vai vender’”, relembra Arlete.
Decepcionada, voltou para Salvador e mentiu para o amigo. Disse que ainda não havia recebido resposta alguma. Mas, para Arlete, “palavra dada se cumpre” e foi assim que decidiu abrir a própria editora para publicar o material.
Em 1980, uma grande festa na prefeitura marcava o lançamento de Retratos da Bahia, com fotografias feitas por Verger no período de 1946-1959. Foi também neste momento que Rina chegava a Salvador. Natural de El Salvador, naquele ano de estreia da Corrupio, decidiu deixar o seu país por causa da guerra civil que se iniciava.
Aqui, ela assumiu o comando da livraria da editora. “A livraria para a época era muito moderna, servia café, vendia um monte de coisas, caleidoscópios, brinquedos artesanais e livros. Verger ia todos os dias à livraria, pela manhã. Aí, eu comecei minha amizade mais profunda com ele. Depois de um tempo eu virei sócia da Corrupio e, a partir desse momento, a gente caminha juntas”, conta Rina.
A aventura de montar uma editora deveria ser passageira, mas acabou acontecendo aos poucos e durou 41 anos. “A minha ideia era a seguinte: faça a editora, publique esse livro e volte para a vida de fotógrafa. Mas depois, no dia seguinte ao lançamento, Verger já estava lá com uma série de outros livros para me dedicar”, conta Arlete. Durante esse tempo, outros autores renomados passaram pela editora, juntos eles formam um catálogo “pequeno, mas precioso”, de acordo com a própria Arlete.

Autores
Nomes como Vivaldo Costa Lima, Mestre Didi, Carybé, Zélia Gattai, J. Cunha, Paloma Jorge Amado, Juana Elbein dos Santos, Mabel Velloso, dentre tantos outros autores da velha e da nova geração da literatura baiana e brasileira, preenchem o catálogo da Corrupio com obras singulares.
A escritora Goli Guerreiro é uma dessas autoras. Antropóloga e eterna estudante, em sua graduação Goli sempre se deparava com a editora na bibliografia de diversas disciplinas na Faculdade de Ciências Sociais, na Ufba. “Havia uma juventude ávida por produção nova de conhecimento e tinham os velhos que também estavam interessados naquilo. Era uma espécie de vanguarda reunida ali, produzindo livros. Eu acho que o mais incrível da Corrupio é que poucas cidades têm uma editora acompanhando a sua vida cultural tão de dentro, tão intensamente”, reflete Goli.
Depois de ir para São Paulo fazer mestrado, teve um livro publicado pela Edufba. Logo depois, uma editora paulista publicou mais um livro seu, fruto, dessa vez, do doutorado. Goli, então, passou a estar às vistas, uma amiga a apresentou para Arlete e Rina, e daí surgiu a parceria. Publicou três livros pela editora: Terceira Diáspora: culturas negras no mundo atlântico; Terror e Aventura: tráfico de africanos e cotidiano na Bahia e Alzira está morta, seu primeiro romance.
Já Geraldo Lima, 70, compositor e escritor, foi parar na editora por um acaso do destino. Decidiu escrever um livro sobre as antigas escolas de samba do carnaval de Salvador, recuperando memórias do carnaval nas ruas do Garcia. Foi por ter um livro da editora que ligou para lá perguntando se tinham interesse.
“Elas me pediram o que eu tinha escrito e me mandaram correções”, conta Geraldo. Depois, o livro foi lançado com apoio da Fundação Pedro Calmon, em 2017. Geraldo acredita na resistência dos livros a quaisquer intempéries sociais: “Sempre vai haver um espírito aventureiro que vai percorrer os caminhos do romance, da poesia”.
Dentro desse catálogo singular, há ainda espaço para a psicanálise. Marcelo Veras, 59, é psicanalista e já escreveu dois livros pela editora. Em ambos, a iconografia tinha grande relevância. “Nossa primeira relação de trabalho foi o livro Felicidade e Sintoma. Era um livro complexo, que exigia fotos e uma diagramação original. A segunda experiência foi um livro mais introspectivo, Selfie, logo existo, que vendeu bastante bem. Como sou fotógrafo e o livro inclui diversas fotos, foi crucial ter escolhido uma editora que tivesse experiência com fotografias em preto e branco, Rina e Arlete foram ótimas”, avalia.
Homenagem
Em 2018, a Corrupio foi homenageada na Flip, Festa literária de Paraty. A homenagem veio da curadoria da escritora e jornalista baiana Josélia Aguiar, e Rina destaca que foi a primeira vez em que a editora foi reconhecida nacionalmente.
“Como pesquisadora e curadora, sinto alegria em poder contribuir para que mais gente conheça trabalhos de valor e importância. Que bom que a Corrupio pôde receber essa homenagem a tempo. Muitas vezes, as histórias são descobertas e trazidas à luz depois que se perdem”, considera Josélia.
Ela conhecia a editora desde quando estudava comunicação, também na Ufba, e lia seus livros na faculdade. O vínculo se tornou ainda mais forte quando Josélia usou Verger como seu objeto de mestrado em história, na USP. “Tive bastante contato com a história de como nasceu a Corrupio e seu desafio inicial de publicar a obra de Verger, numa cena editorial que, naquela época, era pouquíssimo aberta a esse tipo de projeto. Admiro Arlete e Rina, editoras mulheres que mantiveram a Corrupio por tanto tempo, apesar das muitas dificuldades, pautadas pela inteligência, a sensibilidade e, em muitos sentidos, pela coragem também”, relata a jornalista.
Futuro
Arlete Soares tem hoje 80 anos, Rina Angulo, 75. Mas ambas não pensam em descansar. O fechamento da Corrupio já estava no planejamento, agora as duas querem seguir com novos projetos. Arlete está trabalhando na construção do seu acervo de fotografia e pretende, quando a pandemia acabar, continuar com o Pátio Corrupio – projeto que reúne exposições, rodas de conversa e lançamentos literários. Rina se prepara para retornar ao país onde nasceu e, quem sabe, escrever um livro sobre a sua vida.
Neste momento, as duas deixam suas mensagens para todos aqueles que, de alguma forma, fizeram parte dessa história: “Eu quero agradecer muitíssimo a todo o pessoal que passou pela Corrupio, todos os colaboradores, somos amigos de todos eles, aos nossos clientes e um salve para os autores da Corrupio. Nunca tivemos disputas, nada, sempre foi tudo de uma amorosidade incrível. E me orgulho muito de ter publicado autores tão importantes. A Corrupio não tem um grande catálogo, mas todo o catálogo da Corrupio é precioso. Aqueles livros precisavam acontecer, eles precisavam existir”, agradece Arlete.
Rina, com os olhos cheios de lágrimas, complementa a amiga: “Eu sou grata a Arlete primeiro, porque me chamou para trabalhar, e também a todas as pessoas que passaram por aqui. A imprensa sempre nos tratou muito bem. E a Corrupio foi constituindo um catálogo muito forte, que é referência. Então, a gente foi muito agraciada pelas pessoas que trabalharam conosco, os funcionários, os leitores. Eu acho que a gente fez uma bela carreira. E o mais importante, Arlete e eu nunca brigamos como sócias. Como amigas podemos já ter brigado, mas como sócias, jamais”.
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