MUITO
Crônica - As flores espinhentas das recordações
Por Ró-Â

Fiquei jururu há pouco, tentando lembrar o nome de um ator por quem sempre nutri grande simpatia. Creio que era Francisco, mas o máximo que recordo de seu sobrenome é que começava com A. Certa vez, não muito antes de falecer, gravou um quadro no Fantástico declamando nomes estranhos, desses de que os brasileiros são tão pródigos e eu acho geniais, a exemplo de “Um Dois Três de Oliveira Quatro”. Foi da pessoa passar mal de tanto rir. A entonação que ele conferia à leitura e a expressão de seu rosto me tornaram essa experiência inesquecível. Tantos anos depois, aquele momento da mais pura diversão permanece vívido e libertador.
Lembrei: Francisco Milani! Bastou digitar “Ator Francisco”, mesmo sem aspas, que logo ele apareceu e o reconheci. Sobrenome começando com M, não com A – que rasteira minha memória me deu! Morreu em 2005, quando eu iniciava carreira na categoria de “senhora”. Se bem que eu ainda não entrara nos 40 quando fui chamada de senhora pela primeira vez, por uma moça uns dez anos mais jovem, e só faltei ter uma síncope. Depois a gente vai se acostumando, mas no início é muitíssimo esquisito. Você está num momento de transição que é notado pelos outros mas não por você mesma. Como se estivesse atravessando uma ponte e um estranho te reconhecesse no meio daquele caminho que seus pés ignoravam. Você não percebia o deslocamento. Precisou da bondade alheia, como Tennessee Williams.
Queria ser como ele, que escrevia tão lindamente, e me pergunto se alguma vez sofreu a infelicidade de não conseguir produzir nada que prestasse. Ando assim: tudo que me sai é péba, e para a pessoa que escreve no intuito de acomodar a alma, é uma condição constrangedora feito um homem que brocha – imagino. Mas confesso não ser minha primeira vez. Há períodos assim, de estiagem.
Portanto, aproveito pra dizer que, quando tinha 13 anos, me apaixonei pelo menino mais bonito da Salvador que eu conhecia. Era o deus dos deuses, assediado por 11 entre 10 meninas. Eu minzinha então fiquei sabendo de uma simpatia infalível: durante sete dias, escrever o nome dele em três pedacinhos de papel: o primeiro, jogava na porta da casa do muso; o segundo, na porta de uma igreja – escolhi a da Graça, a primeira da cidade; construída a partir de um sonho com Nossa Senhora sonhado por Paraguaçu Catarina; o terceiro pedacinho de papel era pra ser despachado goela abaixo. O nome do deus continha cinco elementos, eu fazia uma letra bem pequenininha a fim de não obstruir meu aparelho digestório, que acabou encarando o desafio de boa. O rapaz me pediu pra namorar, porque era assim que as coisas se davam, e as outras pretendentes ficaram verdes de inveja e roxas de despeito – eu sabia, porque também teria ficado. Depois de alguns meses ele terminou comigo sem nem me avisar; só fiquei sabendo ao testemunhar o beijo com que contemplou uma das moças que já eram apaixonadas antes de mim. Devo acrescentar tal cena à lista dos meus grandes espantos. Assim se dão as coisas.
Atribui-se ao escritor Victor Hugo a frase “É incrível a força que as coisas parecem ter quando precisam acontecer”. E quando não querem acontecer, não acontecem, por mais que você rebole, se descabele, maldiga, esperneie, blasfeme ou pague. O controle que temos é diminuto, a qualquer momento tudo pode mudar. Para melhor, inclusive.
Por isso que quando me oferecem seguro de vida eu só acho graça e digo que prefiro viver perigosamente. Não que eu goste, mas assim é. Se o perigo não estivesse sempre à espreita, nem ao capitalista mais ancestral teria jamais ocorrido a ideia de estabelecer uma companhia de seguros. Não é sentimento agradável saber-se na corda bamba, ao menos para quem não possui o vício da adrenalina, no entanto é a condição mais fundamental da existência.
Triste ter que percorrer este tempo árido, de capim seco e escasso, por isso o apelo aos mandacarus das minhas lembranças. Já li um crítico falando mal de quem pretende transformar o que viveu em “literatura”, aspas dele. Minha impressão é de que, se assim fosse, não existiria literatura alguma, mas vai ver ele estava certo aquele dia, quando o ser amado terminou o relacionamento sem comunicar-lhe e, mesmo flagrando outro alguém recebendo o beijo desejado, estava obrigado a escrever sua coluna.
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