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MUITO

Crônica - Prazeres com o governador

Tudo indica que acabou-se mesmo a moda de fazer versões marotas das canções de sucesso

Por ró-Ã*

01/04/2024 - 5:30 h
Leia a crônica da Muito
Leia a crônica da Muito -

Tudo indica que acabou-se mesmo a moda de fazer versões marotas das canções de sucesso. Na minha adolescência, a gente se divertia com as tantas que rolavam:

“No pau de Castro Alves falta um ovo / Quem roubou foi Gavião / Um ovo novo, eu quero um ovo novo / Todo mundo na praça procurando o ovo no chão”. E seguia nessa linha até o fim. Tinha também a “Feche os olhos e sinta / Dois metros e trinta…”, alternativa gaiata à versão de Renato e seus Blue Caps de All my Loving, dos Beatles.

A famigerada “Eu te amo, meu Brasil”, que até cogitaram para substituir o Hino Nacional, era cantada assim: “Maconha no Brasil foi liberada / Até o presidente já provou / Agora eu vou ficar na minha / E tomar bolinha com o governador / Eu te amo, meu Brasil, eu te amo / Meu coração é de Jesus e meu pulmão da Souza Cruz…” Politicamente incorretíssima nestes tempos em que cigarro é quase um palavrão - mas todo mundo fumava, inclusive os bem jovens. Meus amigos formaram a primeira geração de surfistas de Salvador e a maioria era fumante. Alguns deixaram o vício, outros continuam, mas até onde eu saiba nenhum ainda morreu por isso.

Víuge que os médicos vão querer me esquartejar. Mas não é minha intenção fazer apologia ao hábito de fumar, na verdade uma escravidão. Será que ainda posso usar a palavra “escravidão” neste sentido? Ou tenho que dizer: “Na verdade, uma prática análoga à escravidão”? As coisas estão ficando difíceis. Outro dia, o brilhante jornalista e nosso conterrâneo Leandro Fortes pediu certa clemência à comunidade do canal DCM se algumas vezes os mais velhos cometemos deslizes, pois crescemos num mundo muito mais selvagem. É quase tão difícil civilizar a linguagem quanto abandonar a nicotina, que acalma os nervos, inspira a alma e torna a vida mais palatável.

Penso que o melhor é nunca experimentar a primeira tragada, porém abomino a caça às bruxas tabagistas capitaneada pelos Estados Unidos. Vá pra Europa, pra ver o que é bom pra tosse. Em Nova York, já cogitaram até proibir as pessoas de fumar dentro de suas próprias casas!

Sempre acendi meu cigarrinho com convicção, só que de uns tempos pra cá resolvi desobedecer aos ditames tirânicos dos meus pulmões da Souza Cruz. Com a ajuda de adesivos, tenho conseguido ficar uma, duas semanas sem aspirar fumaça voluntariamente. Quando sento pra escrever, no entanto, não tem nem São Judas Tadeu que me valha: as musas só dão as caras na presença do cigarro. Ou os encostos, ou os obsessores. E, pra ser sincera, me alegra poder oferecer algum alívio aos coitados, que devem ficar numa fissura retada caçando por aqui alguém ainda capaz de lhes satisfazer. Neste exato momento, deve haver milhares à minha volta, cada um fungando um bocadinho, num prazer compartilhado entre o meu, sereno, e os seus ávidos perispíritos.

No grupo de zap aqui do prédio, moradores de bons costumes andaram se queixando do cheiro de maconha exalando das escadas. Imediatamente disponibilizei meu apartamento, apesar de não ser adepta da cannabis: me dá taquicardia. Como ninguém aceitou a oferta, certamente por acanhamento, sugeri a escada entre a garagem e o play, onde mantenho meu minhocário e não tem como o barrunfo incomodar outros condôminos. O da maconha, não o das minhocas inodoras. Só acho engraçado que maconha seja mais desagradável que as emissões dos tubos de escapamento nas ruas.

Não tenho problema algum com os prazeres das gentes, inclusive já cansei de comprar Caninha da Roça pra um rapaz que costuma transitar de turbante pela Graça e atende por “Carmem Miranda”. Acho uma imbecilidade a tal “Guerra às Drogas!”, igualmente orquestrada pelos EUA. Como podem não ter ainda aprendido que repressão não funciona desde Adão e Eva? Ou seja: tem gente graúda lucrando com o negócio, na certa gente acima de qualquer suspeita.

Estou longe de ser estudiosa do assunto, mas apenas bom senso dá conta da situação. Atribuo o fato de que os adolescentes de hoje fumem tão menos que meus amigos e eu à campanha educativa em ação há muitos anos. É o único caminho com alguma chance de dar certo. Libera tudo, cobra imposto, toma-lhe conscientização e pronto. Sempre existirão os tementes às musas, encostos e obsessores, mas tendem a ser inofensivos, em especial se puderem exercer seus gozos em paz. Gente rúin é quem só goza com dinheiro, e tenho dito.

*ró-Ã é autora de DOR DE FACÃO & brevidades

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