MUITO
Crônica: Você precisa apender a ser criança!
Por Luisa Sá Lasserre

Senta no chão, mãe, você precisa aprender a ser criança! A frase veio com a força de quem se impõe sem arrodeio e se apossou de mim. Saiu da boca da minha filha e bateu direto aqui dentro da cachola. Ficou rodando feito mosquito no lustre e não quis mais sair.
Não, não basta ser mãe. Tem que brincar junto. Mas não basta brincar, tem que sentar no chão, entrar no clima da brincadeira e parecer bem animada. Às vezes, tudo o que eu quero são só mais uns minutinhos de sono, ler um livro ou terminar de lavar a louça que acumula na pia. Mas, para minha filha, nada disso importa. Ela insiste em me lembrar como é ser criança.
Não sou o tipo de pessoa com saudosismo da infância, menos ainda dos idos anos juvenis. Falta de autonomia e independência, dúvidas a mil na cabeça. Não, obrigada. Acho que a maturidade é uma roupa elegante, bem mais confortável do que na moda, que a gente vai vestindo aos poucos e cai muito bem.
Mas não tem como fugir: a infância é aquele lugar pra onde a gente sempre volta. Algo do que somos e fazemos (ou deveríamos estar fazendo) tem pistas na criança que fomos. Naquela parte nossa que ainda existe e talvez tenha sido deixada para trás. Ou talvez posta num cantinho para pensar melhor. Seja como for, é uma referência que a gente pode sempre buscar.
Você sabe aonde foi parar aquela criança que corria e pulava, cheia de energia? Cadê o olhar de encanto daquela menina que gostava de descobrir formas e bichos em nuvens no céu? Para que lado fugiu o garoto que vivia com uma bola no pé e um sorriso no rosto?
A criança que eu fui deixava a imaginação correr solta. Gostava de inventar histórias na cabeça e encantava-se pelas que se tornavam palpáveis em formato de letras nos livros. Desenhava, pintava e brincava de casinha. Gostava de bonecas e as várias vidas que era capaz de criar pra elas.
Só que aí o inevitável acontece: a gente cresce. Estuda, trabalha, inventa outros passatempos. Descobre novos interesses e coisas mais importantes com o que se ocupar. Casinha vira casa de verdade cheia de demandas cotidianas. Bonecas dão lugar a uma família real e imperfeita, com suas intensas particularidades.
A gente fica séria porque, afinal, tem muito o que dar conta e resolver na vida. E aí perde-se no meio do caminho aquela graça da infância, aquele jeito de imitar personagens, de mirabolar fantasias. Ou, como se diz, de inventar arte – quem pode negar que brincar é mesmo uma das melhores formas de expressão artística?!
Nos afastamos da criança que fomos e com ela vai um pouco da nossa criatividade junto. Da nossa espontaneidade em ser exatamente aquilo que somos. De uma certa alegria descompromissada. E aí o restante da vida é tentando resgatar os lampejos de originalidade perdidos em algum canto qualquer que não enxergamos mais.
Em que parte do caminho deixei cair minha vontade de correr e brincar? Onde derrubei aquele sorriso? E a minha arte, em que pedra tropeçou? Teria se arranhado? Acredito que nenhum machucado seja tão profundo que não possa cicatrizar, ainda que permaneçam as marcas. Quem sabe dá pra pintá-las de colorido e transformá-las em algo novo.
Volto à fala da minha filha, dando voltas no lustre da cachola. Sento no chão e tento. Não consigo assim de vez, mas me esforço. Meu pensamento voa longe e eu o puxo de volta como quem ajusta a linha da pipa que sobe no ar.
Sim, é verdade, admito: eu preciso aprender a ser criança. A infância, afinal, descubro, é um estado de espírito.
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