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Cultura e história da Bahia inspiram a Unidos do Viradouro

A obra aborda elementos culturais da Costa da Mina, na África Ocidental

Publicado domingo, 25 de fevereiro de 2024 às 06:00 h | Autor: Gilson Jorge
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Enquanto ainda fazia pesquisas para o samba-enredo do Carnaval de 2023, o carnavalesco Tarcísio Zanon conheceu  o historiador  mineiro Moacir Maia, que colaborou com o enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Viradouro no ano passado. Em uma conversa, Maia mencionou que estava lançando, com o também historiador Aldair Rodrigues,  o livro Sacerdotisas voduns e rainhas do rosário: Mulheres africanas e Inquisição em Minas Gerais (Sec. XVIII), pela editora Chão.

A obra aborda elementos culturais da Costa da Mina, na África Ocidental, que compreende territórios dos atuais países Gana, Togo, Benim e Nigéria, e se tornaria a referência inicial para a elaboração do enredo Arroboboi, Dangbé, vencedor do Carnaval da Viradouro deste ano.

Meses depois de ler o livro, Zanon desembarcava em Salvador, juntamente com o historiador Gustavo Melo, da sua equipe na Viradouro, para pesquisar o assunto, visitando a Casa do Benim e conversando com acadêmicos baianos que conhecem o assunto a fundo e sacerdotes dos terreiros de Bogum, em Salvador, e Roça da Ventura, em Cachoeira. 

Nesses lugares, Zanon teve acesso a fontes orais que influenciaram também a narrativa. "O enredo não foi o livro do Moacir, mas ele foi um start para que tudo acontecesse. Foi na Bahia que a gente descobriu a história de Ludovina Pessoa. Houve vários cruzamentos de informações", pontua Zanon.

E um dos pesquisadores da academia ouvidos pelo carnavalesco carioca foi o antropólogo e professor da Universidade Federal da Bahia, Luis Nicolau Parés, especialista em religiosidade africana, que serviu como consultor da Viradouro. Ele é o autor do livro A Formação do Candomblé - História e Ritual da Nação Jeje na Bahia,  da editora Unicamp, que narra como Ludovina  Pessoa, sacerdotisa do Daomé, escravizada e trazida à Bahia, foi importante na iniciação de lideranças negras que se tornariam referências no Candomblé, como Marta Luiza do Sacramento, mãe de santo na Roça da Ventura, e Valentina Emiliana, mãe de santo no Bogum. O enredo da Viradouro também  coloca Ludovina como uma influência para a Revolta dos Malês, mas não há evidências científicas de sua participação.

A historiadora e antropóloga Lisa Earl Castillo considera que as evidências sobre o fator étnico na revolta dos malês são contundentes. "O protagonismo principal era de nagôs, não de jejes. Quanto à influência religiosa, a liderança era muçulmana. Claro que pode ter havido participação de não-muçulmanos. Mas não eram os líderes. João Reis, o maior pesquisador sobre o assunto, já vem dizendo isso há anos", pontua Lisa.

A  acadêmica pontua ainda que a memória popular de que o terreiro do Bogum tivesse algum envolvimento com a revolta dos malês gira em torno do nome africano da casa: Zoogodô Bogum Malê Rundô. Reza a lenda que um cofre com as armas dos rebeldes teria sido escondido no terreiro do Bogum.  O principal estudioso sobre a história do candomblé jeje, Luis Nicolau Parés, analisou com cuidado essa questão no livro, sem encontrar evidências convincentes", declara Lisa.

Parés, que preferiu não conceder entrevista, estuda o tema há décadas e foi orientador do mestrado da pesquisadora  Lia Dias Laranjeira, autora do livro O Culto da serpente no Reino de Uidá, publicado pela Edufba em 2015, oito anos antes do livro dos historiadores mineiros, e que também serviu como fonte de pesquisa para o samba-enredo.

Costa da Mina

A ligação de Lia com o tema surgiu ainda na graduação, quando ela integrou um grupo de pesquisa sobre práticas religiosas na Costa da Mina, coordenado por Luiz Nicolau Parés. "Nesse projeto, dei início à tradução e sistematização dos relatos de viajantes europeus na Costa da Mina, nos séculos XVII e XVIII", explica a antropóloga.A investigação resultou no website https://costadamina.ufba.br.

Lia explica que estudou mais os relatos sobre o culto a Dangbe no reino de Uidá durante o mestrado no Pós-Afro, Programa Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos da Ufba, onde hoje atua como colaboradora. "Apesar do olhar eurocêntrico dos viajantes, repleto de estereótipos, foi possível identificar como aconteciam as oferendas a Dangbe, as interdições, os ritos de iniciação, assim como a importância das sacerdotisas da serpente e das narrativas míticas sobre a origem do culto", declara Lia.

A pesquisadora explica que os elementos fundamentais na estrutura do culto a Dangbe estavam diretamente associados à soberania do reino de Uidá, que foi invadido pelo reino de Daomé no século XVIII e hoje integra o território do atual Benim. "Estudei a bibliografia que existia sobre o comércio de escravizados dessa região, sobre as práticas religiosas locais e sobre os viajantes na Costa da Mina. Investiguei também os relatos dos próprios viajantes publicados e um manuscrito, até então inédito, localizados, principalmente, na Biblioteca Nacional da França", declara Lia.

Sobre o desfile da escola campeã, a acadêmica pontua que o seu trabalho não serviu de base para o samba-enredo, mas trouxe elementos à performance. Mãe de uma menina de dez meses, Lia celebra o fato de seu trabalho ter ido ao sambódromo no primeiro Carnaval que passou com a filha: "Foi muito legal ver parte desses temas, como as narrativas míticas de origem ao culto e as sacerdotisas da serpente, transformados em samba-enredo e em performance artística no desfile da Viradouro".

A ligação da Viradouro com a Bahia começou há exatamente seis décadas. No ano do golpe militar, 1964, a escola levou para a avenida  um enredo homenageando Maria Quitéria. Nesse ano e em1965, a escola fundada em Niterói, antiga capital do Estado da Guanabara, desfilou excepcionalmente na cidade do Rio.  Em 1976, em Niterói, a Viradouro saiu com o tema Só Mesmo na Bahia, que exaltou a história, a cultura e o modo de vida na capital baiana.

Depois que a escola passou a integrar, definitivamente, o grupo das escolas de samba do Rio de Janeiro, em 1986, conquistou três títulos do grupo especial, dois dos quais ligados às tradições baianas. Além do título deste ano, em 2020 o enredo Viradouro de Alma Lavada homenageou as Ganhadeiras de Itapuã. Foi o primeiro carnaval na escola da dupla Tarcísio Zanon e Marcus Ferreira, que substituíram Paulo Barros.

"A relação da Viradouro com a Bahia é muito intensa, de axé e sorte. Nós levamos a proposta do enredo com as Ganhadeiras, conquistamos aquele campeonato e construímos uma relação muito afetiva com a Bahia e com Itapuã. E essa relação se estendeu",  afirma Zanon. 

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