OLHARES
Da natureza, imaginação e coisas tecidas por Dôra Araújo
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Por Luiz Freire*
Tecer, bordar, tricotar, “crochetar” e uma infinidade de trabalhos de agulha foram culturalmente atribuídos às mulheres nas sociedades ocidentais e não só. Trabalhos cuja produção se relacionavam, frequentemente, ao suprimento das necessidades pessoais e domésticas, reproduzindo repertórios estéticos cultivados e identificados com o mundo que a cultura cristã reservou para as mulheres, atividades diminuídas pelo sistema das artes dominado pelos homens.
Rozsika Parker, em O ponto subversivo (1984), afirmou como o bordado era “caracterizado como algo repetitivo, decorativo e frágil”, ao que Katy Hessel acrescentou na sua História da Arte sem os homens: “Mas o que essa técnica revela é, na verdade, um profundo subtexto político, que traça a história da opressão das mulheres ao longo dos últimos quinhentos anos”. Por isso, conclui Hessel, “as artistas do movimento feminista da década de 1970 tenham recorrido à agulha como forma de protesto”.
Dôra Araújo (Juazeiro, BA, 1965) alcançou soluções inusitadas através do bordado e do crochê. Iniciou-se vendo e aprendendo com sua mãe, Terezinha de Jesus de Araujo, professora do ensino fundamental, os pontos básicos de crochê e outras manualidades realizadas para complementar a renda familiar. D. Terezinha tinha aprendido as técnicas do trabalho de agulha com as freiras salesianas do Colégio N. Sra. Auxiliadora, em Petrolina, onde fez o Curso Normal (Formação de professoras do ensino fundamental).
Cursar Artes Plásticas na EBA/Ufba foi um ato de resistência. Na escola, foi orientada por Maria Adair, que era sua vizinha de longo tempo e lhe inspirou a fazer arte. Outros professores contribuíram para sua formação, seja no aprendizado da técnica da tinta acrílica com Luiz Mário, seja nas provocações de Sônia Rangel questionando sobre a insistência em determinadas formas, incitando a superá-las.
Efetuou a graduação, entre 1992 e 1996. Depois de concluído o curso, por influência de seu namorado à época, Alex Sobral, dedicou-se à informática especializando-se em web design, design gráfico e design de interface. Programou vários sites e trabalhou no Rio de Janeiro durante três anos. Montou a primeira galeria de arte virtual da Bahia.
Em 2012, enfrentou uma crise profissional, reagindo através da fotografia com câmera digital. Sua atenção foi despertada para o potencial criativo do crochê quando compareceu a uma reunião do grupo de estudos “fenomenologia do som”, na casa de Dante Galeffi, portando um vestido de crochê de sua autoria. O grupo elogiou por demais o vestido, sua forma e composição cromática motivando-a ao desenvolvimento dos modelos.
Para tanto, buscou aprender várias técnicas de crochê, provenientes de várias culturas através da internet e passou a aplicá-las na confecção de vestidos, comercializando-os, inclusive para fora de Salvador. Em 2015, criou uma coleção de moda feminina em crochê, lançando-a nas redes sociais, resultando no convite da indústria têxtil Círculo S/A para colaborar com suas revistas de moda em crochê, mantendo essa colaboração até o presente.
O despertar para a elaboração de um projeto expositivo atrelado à relação ser humano/natureza ocorreu em 2017, quando soube do edital da pauta da Galeria Cañizares - EBA/Ufba. Precisou superar a ideia de que a galeria era espaço somente para artistas consagrados, submetendo e realizando instalação sob o mote Eu vou criar um jardim para viver porque este mundo anda muito estranho, resgatando um site que fez para ela, cuja tela inicial povoou de mudas de plantas, criando flores diferentes a cada dia.
Mas a instalação na Cañizares constituiu-se de obras analógicas, “objetos-plantas e flores” fantasiosas, estruturadas em crochê com colorido vibrante e formas orgânicas diversificadas, distribuídas nas salas da galeria, pendendo do teto e tocando o chão.
Essa exibição deu muita visibilidade ao trabalho, gerando desdobramentos em ações pedagógicas do bordado e do crochê e mostras no interior da Bahia e internacionais. Vem atuando em escolas públicas, galerias, museus e no seu próprio atelier ensinando as técnicas e motivando mulheres e homens à prática dos têxteis, bastante salutar para a mente.
Para Dôra, Eu vou criar um Jardim para viver... não nasceu do nada, mas “proveio do gosto em fazer fotografias macro de plantas, flores, de enfatizar as texturas e o colorido”. Não costuma projetar os “objetos” de crochê, mentaliza formas e se entrega ao devir da manufatura variando pontos, cores, usando apliques de contas, emaranhado de linhas e linhas soltas, com o propósito de povoar a mente do fruidor, convidando-o a continuar o entrelace e reelaborar pela imaginação. Chegou a esculpir em madeira um tipo de agulha apropriada aos efeitos pretendidos, inexistente no mercado.
Dessa maneira, o “jardim” criado por Dôra surge como um refúgio, um lugar especial, lugar de felicidade como alternativa à realidade catastrófica em que vivemos, causada por nosso trato degradador da natureza. Provoca a reflexão sobre as razões que nos levam a querer esse refúgio, tornando a visão desse paraíso artificial antagônica. Engaja-se, portanto, na maior luta do século 21, aquela que decidirá o presente e o futuro da vida humana na terra.
Outro projeto similar ao Jardim da Cañizares foi selecionado pela Secult/BA, para acontecer na Cidade do México e em Oaxaca (México, 2017), juntamente com oficinas de arte têxtil. A convite do Grupo 8, o Conselho de Calheta, Ilha da Madeira, Portugal (2023) promoveu uma exposição individual e oficinas com idosas, cujos resultados foram integrados à exposição. Coordenou o projeto Bordaduras contemporâneas (@bordadurascontemporaneas) e Let’s Boro (@lets.boro).
Das muitas influências recebidas, a artista enfatizou a obra de Bispo do Rosário e Louise Burgeois, destacando neles as “incursões no reino têxtil transcendem fronteiras disciplinares, explorando temas que tangenciam as complexidades da condição humana”. Declarou que sua prática também é inspirada por “artistas como El Anatsui, cujas esculturas ressoam com um eco poético sobre a transformação, Maria Lai, cujas abordagens colaborativas e narrativas tecidas em têxteis e bordado evocam um diálogo fecundo entre arte, natureza e comunidade, e Chiharu Shiota, cujas instalações monumentais exploram as interconexões entre memória, identidade e ambiente, frequentemente incorporando elementos têxteis em suas obras”.
Concebeu um objeto-manto como altar, exposto na trezena de Santo Antônio 2024 da Escola de Belas Artes da Ufba, constituído de bordados escritos feitos coletivamente e que são pedidos de graças dirigidos ao santo.
Em 2017, conduziu em Juazeiro da Bahia, cidade natal que deixou aos 4 anos de idade, e onde seu pai Artur Ribeiro de Araújo foi delegado de polícia por alguns anos, uma oficina de arte têxtil, na Univasf, baseada na investigação de técnicas ancestrais adotadas na intervenção em matéria eliminada pela própria natureza na vegetação à beira do Rio São Francisco (galhos secos) gerando expressivas esculturas que foram instaladas nas margens do rio.
Viver de arte continua sendo um desafio e para prover sua existência vai fazendo tudo que aprendeu, e o faz com grande perfeição. Seu atelier é muito organizado, com alguns dos objetos têxteis expostos, inclusive parte da instalação Eu vou criar um jardim para viver..., montada em um dos cômodos. A artista pensa como Maria Lai: “Tecer é ser”.
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
*Doutor em História da Arte, professor da Escola de Belas Artes (Ufba) e museólogo
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