MUITO
Darci Neves: "Ainda acho aconselhável fugir do mosquito"
Por Bruna Castelo Branco | Foto: Joá Souza | Ag. A TARDE
Em 2016, depois do surto de zika em todo o Brasil, 325 bebês nasceram com a síndrome congênita do zika vírus na Bahia, de acordo com dados da Secretaria da Saúde da Bahia (Sesab). Na época, além do fato de que as crianças estavam nascendo com a cabeça pequenina, pouco se sabia sobre a epidemia e suas consequências. Três anos depois do início do surto, ainda há perguntas sem respostas – mas uma delas pede solução urgente: como acolher e incluir na sociedade essas crianças que logo estarão em idade escolar? A psiquiatra Darci Neves, pesquisadora na área de estudos epidemiológicos em desenvolvimento e saúde mental da infância, atua justamente nessa questão. “Quando apareceu essa epidemia, me senti convocada diante da quantidade de bebês que nasceram com alguma alteração neurológica congênita. O meu trabalho é com o desenvolvimento, garantir a inclusão social desses sujeitos”. Desde dezembro do ano passado, ela coordena o projeto Efeitos das manifestações neurológicas congênitas associadas ao zika vírus sobre o desenvolvimento infantil no contexto da Atenção Básica, tocado com outros 30 pesquisadores do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC-Ufba). A pesquisa, que vai até 2020, observa o desenvolvimento de 166 bebês com alterações neurológicas, comparando esses resultados com os de 100 meninas e meninos nascidos saudáveis. À Muito a estudiosa conta que ainda há bastante o que aprender com essas crianças que, em breve, sairão de casa para as ruas, as escolas, o mundo lá fora. Mas uma certeza já existe: “O contato com a família, o vínculo que se cria, faz toda a diferença nesse crescimento”.
No início do surto, quando pouco se sabia sobre a microcefalia causada pelo vírus da zika, médicos relataram não saber o que dizer para as mães dos bebês com a doença. O que se diz hoje?
Àquela altura, foi uma situação que pegou a todos de surpresa. Principalmente porque o adoecimento era desconhecido. Não era uma epidemia de uma doença já conhecida. Então, havia um pânico. O que é aquilo, o que é que gerava? E o número de crianças nascidas com alguma alteração era muito elevado. E é óbvio que isso pegou a sociedade por inteiro, porque é uma situação que lhe toca emocionalmente. Qualquer indivíduo se sensibiliza diante de uma tragédia que acontece a muitas famílias. Ao lado isso, tinha o fato de não se saber o que era. Tinha quem dizia que era causado por agrotóxico, infecção... Nós ainda temos pouco tempo de conhecimento desse fenômeno. Por isso, muitas famílias não receberam a resposta devida porque não se sabia qual era a resposta. Por outro lado, houve muito esforço para tentar identificar se a doença era infecciosa, como controlar o mosquito... Tinha também muitos sintomas que não eram conhecidos. No meu entendimento, num primeiro momento, toda a preocupação era descobrir exatamente o que era aquilo e como evitar. Porém a consequência maior era a criança nascer da forma que nasceu. Era o dano neurológico. E a minha contribuição começa a partir daí.
Quais respostas já temos para essas famílias?
A zika nos coloca para pensar no conjunto de crianças que têm deficiência. Antes da zika, havia uma preocupação de quem trabalha com a saúde da infância com a idade de 0 a 6 anos. Porque já se descobriu por vários caminhos – a neurociência, a pediatria – que os seis primeiros anos da vida são fundamentais para o alicerce e para a construção do sujeito do ponto de vista somático e psíquico. A neuroplasticidade, que é uma qualidade maravilhosa que o cérebro tem, demonstra que o cérebro tem a capacidade de se regenerar e de responder a estímulos externos. E se esses estímulos não chegam no tempo certo, a potência do desenvolvimento não ocorre. Existe o desenvolvimento pleno, como se chama, se tudo for atendido. A criança pode somaticamente crescer, ganhar altura, peso, mas existe a dimensão psicológica que está também em crescimento e que depende da qualidade do vínculo que esse bebê tem no contexto familiar. Esse princípio que a neurociência descobriu e coloca para nós era mais utilizado para a criança típica. De repente se viu que esse princípio da neuroplasticidade era igualmente válido para a criança que nasceu com alguma alteração no cérebro. Nesse sentido, o período mais sensível é o de 0 a 3 anos. Se a criança, desde o primeiro momento, já na UTI, ou onde estiver, receber a estimulação, ela vai se desenvolver em outra velocidade, independentemente da alteração neurológica que tenha. Se você estimular desde o início, reduz o dano. Então, essa é a resposta, é nisso que as famílias precisam trabalhar.
O que você tem observado no desenvolvimento dessas crianças até agora?
O que está sendo demonstrado é que a microcefalia não é tudo. Algumas crianças tiveram microcefalia, isso foi o chamariz. Muitas outras não tiveram, e se tem percebido que há alterações de outra ordem, menos visíveis. Ainda não sabemos quais. Pode ser na linguagem, pode ser na cognição, pode se manifestar no aprendizado. Essas alterações não foram vistas. Temos que manter a vigilância. Essas crianças vão aparecer, ou nas unidades de saúde, ou nas escolas. Dentro do desconhecido, existe o seguinte: isso é diferente das outras infecções que causam alteração neurológica. A minha primeira preocupação é: como será o desenvolvimento destas crianças? É nesse momento que eu lido com as mães. Você que é mãe dessa criança, o que podemos fazer agora? Essa é uma conversa individual, mas o meu esforço é para criar um tipo de cuidado num lugar público, gratuito, porque eu sou defensora do Sistema Único de Saúde (SUS). O objetivo é chegar a um lugar que, até então, não se cuidava desses problemas da infância. Microcefalia agora é uma palavra que todos sabem o que é, mas já existiam muitas alterações neurológicas congênitas antes da zika. Esta epidemia trouxe o assunto e sacudiu a sociedade, sacudiu os serviços de saúde. Nos desafia porque não estávamos prontos. Não era um tópico a que a saúde pública estava atenta.
Esta epidemia trouxe o assunto e sacudiu a sociedade, os serviços de saúde. Nos desafia porque não estávamos prontos
E como a pesquisa que você coordena lida com essas crianças?
A pesquisa é financiada pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e pelo Ministério da Saúde e foi criada para trabalhar com essas crianças. A minha grande pergunta é: qual o nível de desenvolvimento que as crianças vão ter? E isso vai se traduzir em três aspectos. Estou medindo motricidade, linguagem e cognição. Essas três coisas vão demonstrar como o desenvolvimento neuropsíquico está se realizando. Nosso trabalho significa ir aonde a criança está. Então, nós fizemos nas casas delas uma entrevista com a mãe. Nós nos interessamos pelo nível de saúde mental da mãe, porque é comum acontecerem alterações nela também. A gente também avaliou a qualidade do estímulo doméstico daquela casa. Independentemente de ter microcefalia ou não, o grau de desenvolvimento da criança vai depender da qualidade do estímulo que acontece ali, naquele lugar. Nós fizemos essa medida, porque eu tenho que saber o que significa para aquela criança ter um nível de estimulação doméstica alto ou baixo, como isso altera o desenvolvimento. Estamos fazendo agora uma segunda visita em todas as casas que já fomos para medir a criança. Ver como está esse desenvolvimento. E vamos voltar uma terceira vez para responder a isso. E essas respostas vão ser comparadas aos de 100 crianças que não tiveram problema, não passaram pela zika, para ver qual é a diferença entre esses dois grupos.
Já tem resultados?
Como a pesquisa vai até 2020, são 42 meses, ainda não estamos com os resultados. Mas esse estímulo, ou a falta dele, vai afetar, sim, o desenvolvimento da criança. Há casas que têm diferentes graus de estimulação. E isso também não é só uma questão de rico ou pobre. Você até pode ter bens materiais, mas não tem a relação, não tem alguém ali. O vínculo é importante. Você pode ser uma pessoa que não tenha tantos bens, mas inventa. Inventa uma boneca, brinca, responde, está atento. Mas essa medida não é só a brincadeira, ela examina, por exemplo, a natureza do espaço, a variação. Tem a criança que passa o dia no berço, mas tem aquela que acorda, senta na cadeirinha, toma o café, alguém leva ao parque, aí volta, toma um suco, vai no quintal. Isso é a variação do ambiente, isso é importante. Ter objetos concretamente, que permitam à criança brincar e se divertir, também faz a diferença. E o outro bloco é a relação com quem cuida. Se tiver tudo isso, do ponto de vista físico e ambiental, mas a relação com quem cuida não é de qualidade, compromete. Então quando a gente diz “qualidade do estímulo doméstico” é o conjunto. Às vezes, o cuidador pode não ser a mãe, mas a babá. Mas quem quer que fique ali precisa criar um vínculo.
O grupo de pesquisa também está desenvolvendo ações na comunidade...
Já temos três grupos de apoio em funcionamento nos bairros do Cabula, Brotas e Itapuã. Até fevereiro do ano que vem, vamos abrir um na Boca do Rio. É um tipo de serviço que está perto de onde a pessoa mora. Nós entendemos que a criança que tem deficiência tem momentos que pode precisar ir para o Hospital Sarah, por exemplo, que é o melhor em termos de reabilitação. Mas ela mora em Cajazeiras. Ela tem vizinhos. É ali que a inserção social dela vai se dar, na escola que está ali próximo. Queremos fazer algo para que essa criança ganhe o mínimo de autonomia possível, para que ela tenha uma mobilidade. Todos hoje já concordam que é possível reduzir o dano, não precisa ficar lá aquela criança sentada, que não sai da cadeira, isso não está correto. Por isso, lá embaixo tem que ter atendimento. Nesses lugares que eu falei, nós criamos um grupo de estimulação, com fonoaudiólogo, fisioterapeuta... O que a gente faz lá não é o que o Sarah faz, é uma coisa mais simples, mas não charlatona. Quinzenalmente, o cuidador e criança – não vai só a criança, só pode entrar a dupla para que o cuidador aprenda o que precisa fazer para fazer em casa – entram na unidade para algumas atividades que duram três horas. Também a cada 15 dias, há grupos de apoio psicológico aos familiares. Isso é parte da pesquisa, mas o que pretendemos com isso é criar um modelo de cuidado. Essas crianças estão distribuídas por todos os distritos do município. O único que tem apenas uma é o Centro Histórico. O que tem mais é o subúrbio ferroviário.
Em 2016, foi dito que o surto de microcefalia foi forte porque o vírus da zika era novo e a população não estava imunizada. A razão da queda do número de bebês nascidos com microcefalia por causa do zika diminuiu por conta dessa imunização? [Em 2016, 325 casos foram confirmados e, em 2018, seis].
Sem dúvida nós saímos do surto, a epidemia foi controlada. São mínimos os casos que têm ocorrido depois de 2015.
Na época em que houve o surto, em 2016, as mulheres grávidas ficaram preocupadas com o uso constante de repelentes, fechavam as janelas de casa. Hoje esse risco já passou? Ou ainda é preciso manter todos esses cuidados?
O mosquito não está mais tão atuante porque a epidemia diminuiu. Aquelas medidas foram necessárias, porque a questão é você ser picada. Uma vez picada, os efeitos da infecção nem sempre eram tão visíveis, algumas mães nem notaram que tiveram. Por isso ainda acho aconselhável fugir do mosquito. A depender do agente causador da microcefalia (sífilis, catapora ou rubéola, por exemplo), o cérebro do bebê sofre modificações diferentes.
Há casas com diferentes graus de estimulação. E não é só questão de ser rico ou pobre. Você pode ter bens materiais, mas não tem a relação
Quando a causa é o zika vírus, o que muda? É possível identificar a causa depois do nascimento?
Até o momento, ainda não sabemos se existe um padrão de alteração neurológica nas crianças que foram afetadas pelo zika vírus. Tudo o que se sabe é coisa de um ano para cá. O estudo a longo prazo de desenvolvimento nós é que vamos fazer, os brasileiros. No meu estudo, por exemplo, não tenho certeza se todas as mães tiveram zika. No meu estudo, eu pego todas as crianças que foram notificadas durante a epidemia, por conta de terem nascido alteradas, e que foram confirmadas durante os exames de que tinham alteração neurológica. Do ponto de vista científico, as crianças que estou acompanhando são vítimas da epidemia, porque nasceram de agosto de 2015 a agosto de 2016. Então, nós sabemos quais são as alterações que essas crianças têm agora, mas não o que isso vai fazer lá na frente. Das 186 crianças que acompanhamos, que nasceram no auge da epidemia, 40% têm alterações neurológicas congênitas, mas não microcefalia. Nasceram com o tamanho da cabeça normal. É por isso que a microcefalia não é tudo.
Então se considera que todas as crianças que nasceram com a síndrome no período da epidemia tiveram a alteração neurológica causada pela zika?
Olhe, há um problema de que os nossos registros para as alterações neurológicas congênitas não estavam muito fidedignos. Quando surgiu essa quantidade de bebês, que se fez o cálculo do que aquilo realmente significava, houve um questionamento. E como era antes? Mas a gente não teve como responder. Agora, sim, começou uma preocupação de se registrarem de fato essas alterações neurológicas no nascimento, esses perímetros cefálicos. E há pesquisadores do Maranhão que têm uma noção de que a microcefalia, na verdade, não era tão incomum antes, como se pensa. Essa epidemia trouxe à tona várias questões importantes para a saúde pública brasileira.
Como a senhora avalia o modo como o Brasil atravessou esse surto e também a forma como está atendendo agora as crianças com microcefalia?
Eu acho que a sobrecarga remete à questão do SUS. Ele não é um sistema que está funcionando na velocidade que deve funcionar. Então, houve a sobrecarga e não havia um preparo para aquilo. O que aconteceu é que a causa mexia muito com as pessoas. Se fosse um problema no dedo, teria tido outra repercussão. Aqui em Salvador, o atendimento já está razoável, mas no interior, não. E não é um assunto que some, a criança está aí. Agora, o próximo desafio é a escola, é a inclusão social. É preciso uma preparação dos professores e acréscimo de recursos. Se tem criança com sonda, cadeira de rodas, é preciso uma preparação, uma equipe.
O Brasil está preparado para acolhê-las?
Ainda há dificuldades. Há queixas que as próprias escolas fazem. A rede escolar não está funcionando legal até para as crianças típicas, então os professores também têm suas questões. Agora, essas questões vão duplicar. A gente precisa forçar nesse sentido, porque vai exigir investimento. Pensamos em como assimilar as crianças e familiares num trabalho que repercuta na inclusão social. Ter cuidado de saúde, poder frequentar a escola e poder ser visto no bairro. Havia famílias que não saíam de casa porque os vizinhos ficavam olhando, comentando. As mães não aguentavam encarar o olhar de curiosidade dos vizinhos. A inclusão social precisa ser feita em cada bairro.
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