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MUITO

Direito à cidade dos moradores das antigas ladeiras de Salvador

Por Gilson Jorge

30/01/2022 - 6:00 h

Sentada no lado interno do balcão de seu botequinho, em um dos arcos da Ladeira da Conceição, Ana Silva não desvia os olhos da TV por uns bons minutos, nem mesmo quando o companheiro Evandro Barreto aceita o convite para puxar uma cadeira, juntar-se aos clientes e contar suas histórias no local que o casal ocupa há 34 anos.

Com uma doçura esplêndida, ele fala de momentos amargos, como o dia em que os dois foram ameaçados de despejo, junto aos vizinhos artífices, em 18 de junho de 2014, quando prepostos da Prefeitura de Salvador deram 24 horas para que todo mundo abandonasse os imóveis.

Evandro conta com entusiasmo o processo que levou ao protesto que garantiu a permanência dos artífices no local, ainda que ele e Ana quase tenham sido excluídos.

“A gente morava lá embaixo (no fim da ladeira). Na primeira leva da reforma, o dono (do imóvel) pediu para a gente desocupar o arco e vir para aqui. Mas no projeto da prefeitura, não tinha arco para a gente. Ana não queria ocupar aqui, mas eu disse que a gente não tinha para onde ir nessa idade. Como a lei fala que quem está dentro fica e aqui é da União, a gente ficou”.

A história foi trazida à mesa a pedido de Marcelo Teles, nascido e criado na Preguiça, coordenador do centro cultural Que Ladeira é Essa. Criador do famoso Banho de Mar à Fantasia, que movimentou o bairro no Carnaval, antes da pandemia, ele considera que a rua onde moram seus pais e os amigos é outro alvo de gentrificação. “A gente vai reunir o pessoal do bairro para conversar. O encontro vai se chamar Beber até levantar”.

Dessa vez, a saída dos moradores não se daria por despejo do poder público. Mas por uma junção de fatores, que inclui desde a compra de imóveis por investidores que mantêm essas casas se degradando, até a ausência de áreas de lazer e serviços, como posto de saúde, o que, crê Teles, ajudaria a expulsar da área as novas gerações.

Um censo realizado por alunos de um curso de extensão da Ufba, em 2019, sob a coordenação da professora Urpi Montoya, identificou a existência de 175 famílias na rua. Destas, os estudantes conseguiram conversar com 63 e um dado que chamou a atenção é que em 41 delas as mulheres são responsáveis pelo lar, contra 22 famílias que têm homens à frente.

Outro dado relevante é que mais da metade dos trabalhadores autônomos que moram na Preguiça atuam como vendedores no Centro. “Esse é um dado extremamente importante porque diz respeito à necessidade de continuar morando ali para trabalhar e, portanto, sobreviver”.

Teles e sua namorada, a designer Nilma Santos, levam o assunto muito a sério e até editam juntos a revista trimestral Aglomeradores, Direito à cidade, em que discutem as necessidades de populações em bairros periféricos.

A marmorista Simone Venâncio percebeu a importância de estar conectada aos vizinhos da Preguiça no dia em que os trabalhadores da Conceição foram ameaçados de despejo. Moradora do Cabula, ela tinha uma rotina até então de entrar na oficina para trabalhar com o ofício que aprendeu com o pai e os tios, ficar concentrada nas entregas que tinha que fazer e sair no fim da tarde. A súbita aparição de funcionários da prefeitura, sem que ela soubesse do burburinho de expulsão que já rolava, fez com que ela se aproximasse das pessoas da outra ladeira.

Simone começou a trabalhar como secretária do pai, quando ela tinha 16 anos. Quando atingiu a maioridade, o pai decidiu trocar o seu ofício por um ferro velho e deixou o negócio para a filha.

“Foi difícil aprender, mas a necessidade... eu tive que encarar. Saía torto um dia, melhorzinho no outro, mas hoje graças a Deus eu faço as coisas assim, perfeitas. Hoje, eu não me vejo mais fazendo outra coisa”, declara a marmorista que tem um filho de 17 anos.

Ela descreve o momento da ameaça de despejo como “muito tenso”. Depois que a Sucom deu o prazo de 24 horas para que os trabalhadores deixassem os imóveis, a pressa não ficou clara para Simone. “Eles alegaram que estava tudo degradado, que estava para cair e tal. Tinha um holandês que estava filmando e conversou com a gente. Eu nem sabia que existia um movimento na Preguiça. Às vezes, a coisa chega para o vizinho, mas não chega para a gente”.

As três primeiras ladeiras de Salvador, Conceição, Preguiça e Montanha, saem de pontos diferentes da Cidade Baixa e se encontram num mesmo lugar, a Praça Castro Alves. Através das duas primeiras, os negros escravizados subiam, entre os séculos 17 e 19, com cargas que levavam do porto até os negócios da Cidade Alta.

A exaustiva tarefa de carregar peso em uma ladeira sob altas temperaturas gerava queixas dos trabalhadores escravizados. Daí, o nome Ladeira da Preguiça. A essa época, a parte inferior da Preguiça concentrava o comércio, e os casarões nos trechos internos eram as residências de comerciantes, profissionais liberais e também gente do povo.

Para tornar a subida menos dolorosa, é construída em 1885 a Ladeira da Montanha, que tornou o percurso maior, mas menos íngreme. A proximidade do porto torna a nova e ainda pouco ocupada via um lugar propício para o surgimento de casas de prostituição, atraindo jovens mulheres vindas do interior.

Muitas dessas trabalhadoras sexuais alugavam quartos em cortiços criados nos casarões da Preguiça, depois que os proprietários dos imóveis se mudaram com suas famílias e passaram a locar separadamente as dependências das casas, inclusive os sótãos.

Enquanto a Ladeira da Conceição se tornava um centro de trabalho para ferreiros e marmoristas que atendem clientes da classe média da Barra e da Graça, na Montanha e na Preguiça o perfil de casas de prostituição e residência de trabalhadoras do sexo, respectivamente, formou uma comunidade que, se por um lado sofria com a estigmatização social, por outro criava certos vínculos de solidariedade e respeito entre os moradores.

“Quando havia briga entre os jovens, ninguém ofendia a mãe de ninguém”, relata Teles, que afirma ter sido levado pelo pai a um brega na adolescência “não para ter sexo, mas para conhecer”.

Glamour e decadência

As noitadas da Montanha foram do glamour da boate 63, frequentada por homens ricos e de classe média alta, à decadência total do final do século 20, com casarões em ruína, abandono do poder público, disseminação do crack e uma crescente insegurança.

Mas, de acordo com o levantamento feito pela Ufba, o tráfico de drogas não é a maior preocupação dos moradores. “A resposta majoritária é que o que causa mais danos são as casas abandonadas. Eles têm absoluta consciência e clareza de que as casas abandonadas são especulação imobiliária. Significa que há menos gente morando na Preguiça e que os filhos têm menos oportunidade de continuar morando ali”, afirma Urpi.

O censo mostra ainda que não há mais cortiços na rua, como havia antigamente. Hoje em dia, as unidades familiares são quase todas independentes. “No entanto, há uma minoria que segue compartilhando espaços coletivos, seja cozinha, seja banheiro. Isso mostra como essa população da Preguiça se sujeita ainda a morar nessas condições pela importância de morar no Centro”, explica a antropóloga, que colabora com a revista Aglomeradores.

Para ela, há um vínculo muito forte e prolongado da população da Preguiça com o seu espaço. “Não se trata apenas de continuar ali porque é importante para sobreviver. Há laços afetivos muito importantes. Mais da metade dos que responderam ao censo nasceram no centro da cidade”. Algumas famílias estão na rua há três gerações.

Nos últimos anos, as classes dominantes voltaram a se interessar pela região por questões econômicas. Entre a Rua Chile e a Praça Castro Alves há dois hotéis de luxo, o Palácio Rio Branco está para ser concedido a uma rede hoteleira e no lendário Edifício Sulacap, bem em frente ao ponto de convergência das três ladeiras, devem ser inaugurados um café e uma galeria de arte.

Sem a escravidão dos séculos 17 a 19 e o comércio de sexo do século 20, lideranças da Preguiça temem que a população seja vista como um obstáculo a ser removido a caminho de novos negócios.

“Quando se chamava a Preguiça de Cracolândia, eram os mesmos moradores que estavam aqui. Nada mudou depois do centro cultural Que Ladeira é Essa. Tem os usuários de drogas, mas a gente entende eles como parte da ladeira. Por isso, tem essa acolhida”, declara Teles.

Vida social normal

Durante a conversa gravada com a reportagem, que durou 49 minutos, dois homens sob aparente efeito de drogas se aproximaram para conversar. Um deles tinha um emprego e levava uma vida social normal. “Ele começou a ter problemas depois que o irmão morreu no desabamento de um imóvel”, diz Teles, para quem os usuários de drogas em situação de rua são vítimas da chegada do crack na década de 1990.

“E o crack é muito influenciador nesse plano de urbanização, de como as pessoas são empurradas e o projeto de violência é empurrado para dentro de comunidades. Aqui tem metro quadrado caro, vista privilegiada para a Baía de Todos-os-Santos. Mas é ocupado por pessoas pretas e pobres’.

O ativista, que esteve em Brasília entre 18 e 23 de janeiro para participar de um evento sobre direito à cidade, começou a movimentar a Preguiça ao lado de um grupo de amigos com o projeto Que Ladeira é essa, em 2013. Mas já tinha uma atuação carnavalesca prévia.

“A Ladeira da Preguiça passa por um processo muito punk. Ela é berço do Carnaval na década de 40, alguns blocos carnavalescos surgiram aqui, a Escola de Samba Ritmistas do Samba (1957)”.

Teles afirma que o Que Ladeira é Essa foi uma reação ao que define como ameaça de gentrificação do bairro, termo que começou a ser utilizado com frequência tanto na Preguiça quanto no Largo Dois de Julho quando surgiram os primeiros rumores de que investidores estavam comprando casarões antigos, apostando na mudança de perfil social.

Em 2012, havia surgido a notícia de que a Prefeitura pretendia transformar parte do Dois de Julho em um novo bairro, elitizado, sob o nome de Santa Tereza. Até hoje, circula entre os moradores a informação de que muitos desses imóveis comprados e que permanecem vazios pertencem ao ex-jogador e técnico de futebol Toninho Cerezo, que treinou o Vitória em 1999 e 2012, ano em que surgiu a história do novo bairro. Um dos imóveis imputados ao técnico é um casarão da Ladeira da Montanha, que desabou parcialmente em 2020 e foi posteriormente demolido.

Este ano, pela segunda vez consecutiva, não haverá o banho de mar à fantasia na Ladeira da Preguiça, em função da pandemia. No último ano de realização, em 2020, circularam pela rua 40 mil pessoas, com uma renda gerada para os ambulantes da área de R$ 1,5 milhão, segundo Teles.

Para ele, a abertura do restaurante Mirante da Ladeira contempla a necessidade que a rua tem de oferecer serviços para visitantes que têm poder aquisitivo maior do que os moradores da rua. “O restaurante foi uma contrapartida da Devassa (que patrocinou a festa no último ano). A gente pediu que eles fizessem uma estrutura de bar”.

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