MUITO
Djamila Ribeiro: "Não dá para tratar as opressões de forma isolada"
Por Tatiana Mendonça

Djamila Ribeiro costumava ficar sozinha na hora do recreio. Também não tinha par para dançar nas festas juninas. Cresceu sentindo-se “estranha e inadequada”, como conta na introdução do livro Quem tem medo do feminismo negro?, lançado no ano passado pela Companhia das Letras. No curso de filosofia, era a única mulher negra e, quando se tornou secretária de Direitos Humanos de São Paulo, na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad, viveu incontáveis episódios de estranhamento dentro e fora dos espaços de poder. Hoje, ainda sente o que chama de solidão institucional, embora esteja cada vez mais acompanhada. Suas postagens nas redes sociais são seguidas por centenas de milhares de pessoas e os eventos de que participa, em todo o país, costumam ficar lotados de mulheres ávidas por escutá-la. No começo do ano, foi a única brasileira escolhida no programa Personalidade do Amanhã, do governo francês. Também as marcas buscam aproximar-se dela, seguindo a onda crescente dos movimentos feministas e das lutas pela diversidade. Djamila conta que costuma negar muitos desses convites, mas aceitou a parceria da empresa britânica de cosméticos The Body Shop pela oportunidade de conhecer as mulheres de uma comunidade rural de Gana que produzem a manteiga de karité utilizada nos produtos da marca. No começo do mês, ela esteve em Salvador para participar de um evento promovido pela empresa e conversou com a Muito sobre política, racismo e feminismo. Ou, dito de outro modo, sobre como tudo isso caminha inevitavelmente junto.
O músico Edvaldo Rosa foi morto por militares do Exército no Rio de Janeiro. O carro onde estava com a família foi alvejado por mais de 80 tiros. Esses casos se repetem no Brasil. Você acredita que há uma resposta à altura por parte da sociedade ou a gente ainda está distante de uma reação?
A gente está distante ainda, porque a morte negra ainda é muito naturalizada no Brasil, infelizmente. Como é que pode existir uma coisa dessa e não haver um levante neste país? É porque é um corpo negro. E que morava numa área que é uma área de favela. Existe todo um processo de criminalização da pobreza no Brasil. Então, geralmente o resto da população pensa: ‘Ah, deve ter sido um bandido’. E mesmo que fosse, sabe? É como as pessoas justificam isso. Faz parte de um processo histórico, de um projeto de extermínio da população negra. Quando a gente fala isso, as pessoas dizem: ‘Ah, mas vocês estão exagerando’. Mas se a gente olhar desde a escravidão, o pós-abolição, todos os mecanismos que foram sendo criados... E esse extermínio não é só físico. É um extermínio cultural, se a gente pensar na invisibilidade das produções intelectuais negras dentro da academia, na invisibilidade negra na política, na mídia, em todos os espaços. Esse processo causa várias mortes simbólicas durante toda nossa vida. Abdias do Nascimento, em O Genocídio do Negro Brasileiro, vai explicar que genocídio é todo aniquilamento de um povo, seja ele físico, moral, intelectual, político. E é esse projeto que, infelizmente, a gente vive. As pessoas naturalizam isso.
Você acredita que a aprovação do pacote anticrime, proposto pelo ministro Sérgio Moro, pode aumentar essa naturalização?
É, no geral, se a gente parar para pensar, os policiais já não são punidos. Os policiais, por exemplo, que mataram e arrastaram a Cláudia Ferreira da Silva no Rio de Janeiro uns anos atrás estão em liberdade. Se a gente for pegar todos os casos de jovens negros que são assassinados todos os dias no Brasil... A própria chacina do Cabula, aqui em Salvador, não houve responsabilização desses policiais. Então, acho que vai ser só, na verdade, uma maneira de tentar normatizar o que já está normalizado.
Perguntaram numa entrevista como você enxergava o Brasil após as eleições e você respondeu que preferia “nem pensar”. Como você está vendo o Brasil agora, neste início de governo Bolsonaro?
Às vezes é muito difícil até acompanhar o que está acontecendo. Mas, de fato, é… Gente, é um presidente extremamente despreparado. Tenho ido muito ao exterior este ano e as pessoas estão muito curiosas para saber como está a vida aqui, especialmente de ativistas dos direitos humanos. Estive na França recentemente, numa agenda com alguns órgãos do governo, e em todos esses espaços me perguntavam: ‘Ah, mas como é que está a vida no Brasil’?, ‘Você está sendo ameaçada’? As pessoas estão muito preocupadas com a figura que ele representa, com o discurso que ele naturaliza. É o avanço do discurso neoliberal, o avanço do discurso que precariza a vida da população. Não sei quanto tempo a gente vai demorar para se recuperar dessa precarização. Reforma da Previdência, reforma trabalhista, os cortes de orçamento para universidades federais... Porque, por mais que esses discursos dele, o que ele representa, sejam coisas absurdas, às vezes a gente perde muito tempo rebatendo coisas que ele está falando, e não está percebendo o que ele está fazendo na política econômica, na política internacional, em relação à educação, e como isso é precarizar absurdamente a vida da população, sobretudo a vida da população negra. Então, têm sido dias tristes.
Feminicídio é uma prática presente neste país desde sempre. Talvez agora esteja sendo noticiado mais
E como é que você costuma responder a essa pergunta que lhe fazem? Está se sentindo ameaçada?
Olha, eu respondo que ameaças diretas não recebo. Mas gostaria de lembrar que Marielle [Franco, vereadora executada no Rio] também não estava sendo ameaçada. Às vezes tenho medo? Não vou negar, mas continuo fazendo meu trabalho. Acho importante a gente resistir nesse momento. Claro que se eu tivesse recebendo ameaças muito sérias… Eu sou mãe. Não quero ser mártir.
É um tanto frustrante assistir a esse crescimento do movimento feminista e ao mesmo tempo ver o crescimento dos casos de feminicídio. Como tornar realidade o ‘Parem de nos Matar’?
Penso que, na verdade, feminicídio é uma prática presente neste país desde sempre. Talvez agora esteja sendo noticiado mais, justamente porque o movimento feminista ganha mais força e cobra a visibilidade desses temas. A gente está vivendo um momento difícil em que sabe que essas políticas de enfrentamento à violência contra a mulher serão sucateadas, infelizmente. Mas também acho que é importante mencionar que nem tudo é só desgraça, né? Ao mesmo tempo que a gente tem um presidente como esse, a gente tem um avanço muito grande de pautas feministas, de movimentos tanto de mulheres como de pessoas negras, LGBT, e acho que isso também é algo que a gente tem que reconhecer. Muito desse discurso forte conservador tem a ver com esse crescimento. É uma resposta a isso. A gente não tem outra opção a não ser seguir resistindo, mobilizando. Existem deputadas feministas que levam a pauta, e é importante fortalecer essas parlamentares que lá estão, nas assembleias e no Congresso Nacional. O assassinato da Marielle foi chocante para todas nós – e para mim, que a conhecia, foi algo profundamente devastador –, mas ao mesmo tempo você tem uma resposta. Nunca se teve tantas mulheres negras no Congresso. Acho que isso também tem que ser visto. E, para além disso, é importante ressaltar as mulheres que vêm fazendo política fora do espectro institucional. Conhecer as mulheres da Via Campesina, as promotoras legais populares, que dão cursos para outras mulheres das periferias sobre direito, feminismo... A gente não pode perder a perspectiva histórica. ‘Ah, porque a gente está vivendo um momento difícil…’. E quando foi fácil? Nunca foi.
Na discussão sobre feminicídio, a gente acaba falando muito de como por trás dessas mortes está uma ideia de superioridade do homem em relação à mulher. Ao mesmo tempo, fala-se pouco do quanto a construção da masculinidade pesa nisso. Não é à toa que esses crimes eram chamados de crimes de honra. É como se os homens nunca pudessem ser decepcionados, frustrados ou traídos.
Se a gente for parar para pensar, é muito recente um homem poder matar a mulher em defesa da honra. Um homem poder devolver a mulher porque ela não era virgem. Isso é recente em termos de história. E o quanto isso está impregnado no inconsciente coletivo. Porque os homens são criados, infelizmente, para se sentirem proprietários de mulheres e não para verem mulheres como sujeitos, como pessoas. Claro que, às vezes, parte do movimento feminista só foca muito na questão da punição. E eu sou contrária a isso, porque só com o viés punitivista num país que encarcera em massa… De fato, a gente precisa pensar para além disso. A questão da educação é fundamental. A questão de a gente pensar em redes de apoio às mulheres para além da questão legal, também. Por exemplo, quando fui secretária – eu trabalhei na gestão de Haddad na prefeitura de São Paulo – existia o aluguel que a prefeitura pagava para mulheres vítimas de violência doméstica. Porque é uma questão econômica, também. Para onde essa mulher vai? Porque só dizer denuncie e ponto… Num país como o nosso, em que a gente sabe que isso não funciona para a maioria das mulheres? Então, a gente precisa pensar em como a gente vai ampliar essa rede de enfrentamento, pensando em políticas públicas para além da questão da punição. E nessas políticas públicas, pensar necessariamente na educação. Porque não adianta só punir se aquele homem não mudar a mentalidade dele de que aquilo não é correto. E é um trabalho muito mais a longo prazo e que de fato precisa ser mais o nosso foco nessas estratégias.
O grande problema é que dentro do movimento feminista durante muitos anos as mulheres brancas não discutiram raça, e no movimento negro não discutiram gênero
Você veio a Salvador para um evento promovido por uma empresa de cosméticos. Como analisa essa aproximação das marcas com os discursos do feminismo, da diversidade?
Vejo com muito cuidado. Existem muitas empresas que vendem uma ideia de empoderamento esvaziada. Mas quando você chega àquela empresa, não tem mulheres nos cargos de chefia, não tem pessoas negras trabalhando, uma série de coisas. Nego muitos convites. Esse da The Body Shop eu aceitei porque fui até Gana conhecer a comunidade de mulheres que produzem a manteiga de karité. E não é uma relação de caridade. Elas vendem, e não só para The Body Shop. Essas mulheres passaram a ter dinheiro, e isso contribuiu para que pudessem mandar as meninas para a escola, por exemplo. Antes, só os meninos iam. É uma comunidade rural no norte de Gana. E as pessoas falaram: ‘Ah, mas você foi lá, porque é capitalismo…’. Olha, infelizmente a gente está no capitalismo. Eu também não gosto. As pessoas ficam às vezes numa visão meio alucinada das coisas... Acho sim que a gente tem que ter muito cuidado com alguns discursos que são vendidos e que esvaziam lutas. Colocam como se fosse uma coisa girl power e só, quando o feminismo é um movimento político. Ao mesmo tempo, acho fundamental que a gente saia da bolha. Às vezes, parte do movimento feminista falha nisso. ‘Ah, não pode porque é empresa’. Depende, claro que a gente tem que analisar, mas o poder de comunicação dessas marcas é muito grande, pode alcançar muitas mulheres. Não dá também para a gente ficar convertendo convertidas, falando para as mesmas. Então, é preciso ter estratégias de hackear para poder comunicar.
Você acredita que as outras pautas trazidas pelo feminismo negro para os movimentos negros, como a da solidão da mulher negra, já foram incorporadas, de fato, ou ainda há resistências?
O grande problema é que dentro do movimento feminista durante muitos anos as mulheres brancas não discutiram raça, e no movimento negro não discutiram gênero. As feministas negras pensam a sociedade numa perspectiva anticapitalista, antissexista e antirracista. Isso significa que todos os assuntos nos dizem respeito. Saúde, educação, segurança pública, genocídio dos jovens negros. E a gente também está dizendo que não dá para continuar tratando as opressões de forma isolada. Raça indica classe, gênero informa classe também. Se nós somos mulheres negras, não tem como a gente escolher contra qual opressão a gente vai lutar. Porque todas essas opressões nos colocam no lugar mais vulnerabilizado. A gente é a base da sociedade. O grande ensinamento que essas mulheres vêm trazendo – que eu acho que é uma perspectiva política que não dá para se pensar mais fora dela, da interseccionalidade – é que todos os assuntos nos dizem respeito. Não dá para ser feminista e ser a favor da redução da maioridade penal. Não dá para ser feminista e apoiar políticas conservadoras. Então, nem toda mulher nos representa. A gente está pensando num novo projeto. E mesmo dentro dos movimentos sociais ainda há dificuldades, de só pensar no seu grupo e acabar reproduzindo a opressão com outros grupos.
Perguntei isso porque há um tempo procurei lideranças dos movimentos negros daqui de Salvador para falar sobre a solidão das mulheres negras, para uma reportagem que estava fazendo, e nenhum homem quis falar.
Isso é um tabu. Os homens não querem discutir esse tema. E a solidão da mulher negra é um tema importantíssimo. Não é só a solidão no campo afetivo, é uma solidão institucional. As mulheres que perdem seus filhos ficam sozinhas. Uma das mães dos jovens da chacina em Costa Barros [no Rio] morreu de tristeza. O que é morrer de tristeza? Essas mulheres adoecem psiquicamente, sem que o Estado se responsabilize. Isso é solidão da mulher negra também. Chegar dentro de alguns espaços, quando você consegue furar alguns bloqueios, e ser a única mulher negra. Eu tenho ampliado um pouco esse assunto, porque às vezes a internet… esvazia tudo. Fica só ali no campo afetivo, e a gente não pensa que é uma solidão institucional e institucionalizada. Discordo da narrativa de que estamos sozinhas porque não fomos escolhidas. As mais velhas têm um pouco de ranço desse debate. Algumas delas dizem: ‘Que solidão da mulher negra, eu tô sozinha porque eu quero!’ (risos). Conversando com algumas delas, ouvi uma frase que me marcou muito: a gente não quer negociar nossa humanidade estando em relacionamentos que não nos representam. A gente tem que discutir esse modelo de relacionamento heteronormativo. Ficar ali só num olhar de ‘ah, não nos querem’, acho que não resolve e não me contempla.
Mas você sente essa solidão institucional?
Sempre, né? Na própria universidade, eu era a única mulher negra no curso de filosofia. Para mim, era totalmente solitário. As pessoas perguntavam se eu cursava mesmo filosofia, me olhavam como se eu não pertencesse àquele espaço, as mulheres como eu estavam limpando aquele espaço… Isso é algo que nos acompanha numa sociedade como a nossa, extremamente racista. As pessoas falam para mim: ‘Ah, mas você hoje é escritora…’. Mas eu não deixei de ser uma mulher negra. Não deixei de ter uma filha negra que vai à escola. Em espaços em que as pessoas me conheçam, aí pode ser que elas me tratem mais ou menos. Mas eu ando na rua normalmente. Às vezes, chego a espaços em que as pessoas me olham com uma cara de ‘quem deixou esse povo entrar?’. A gente passa por isso cotidianamente, na forma como eu sou atacada na internet, porque as pessoas se incomodam de ter uma mulher negra que fala o que pensa.
Como foi sua experiência à frente da Secretaria de Direitos Humanos em São Paulo, com essa possibilidade de atuar mais diretamente na implementação de políticas públicas?
Foi uma experiência boa, mas também solitária, porque são pouquíssimas mulheres negras dentro desses espaços. O quanto que as pessoas estranhavam a minha presença… Tanto para fora quanto para dentro. Mas, para mim, foi importante porque eu saí do lugar da que reivindicava para o lugar daquela que estava lá, dentro daquele espaço. E, às vezes, as pessoas não entendem que você tem um orçamento, que não pode fazer todas as coisas. Não é fácil lidar com a máquina pública, com a burocracia. Mas o que eu tentei fazer nesses poucos meses, foram oito meses, foi não ficar na política de gabinete. Andei em muitas periferias de São Paulo. A gente criou a Caravana Juventude Viva, em que a gente ia conversar com a comunidade e depois levava os serviços. Foi uma experiência interessante, mas ao mesmo tempo difícil. Uma vez tive uma reunião com um procurador e aí cheguei à recepção, a recepcionista olhou para minha cara, eu dei meu RG... E ela ligou, ligou, ligou, e depois falou: ‘Não, mas agora ele tem uma reunião com a secretária de Direitos Humanos’. E aí eu dizer: então, sou eu. Esse tipo de coisa eu passava.
Você está escrevendo um livro novo?
Estou escrevendo um livro novo para a Companhia das Letras, mas não posso falar (risos). Mas continuo organizando a Coleção Feminismos Plurais. A gente está com uma parceria com uma editora nova e estamos reeditando todos os livros. Foram seis publicados em um ano. Isso é… Ó, a gente se mata, fazendo as coisas na raça. A gente é uma grande equipe de três pessoas. A partir de junho, começam a sair os novos títulos. E continuam com linguagem didática, acessível, custando R$ 19,90. Num momento em que o mercado editorial está em crise, a gente segue vendendo bem.
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