CRÔNICA
E o que você fez?
Marcelo Torres
Por Marcelo Torres*
Desde 1995, todos os finais de ano – não no dia 31, mas entre 20 e 25 de dezembro – lá vem nossa bela baiana Simone cantando aquela música Então é Natal, e o que você fez?. Pois é, Simone, não vou mentir para você, dizer que não fiz nada, pois fiz tudo que é trem este ano – Deus estava vendo. Fiz cavalos de batalha, fiz moinhos de vento, fiz cada arte do cão. Fiz as pazes, fiz piada sem graça, fiz cena – tanta cena! Fiz chacota para cachorro. Fiz cerimônia – e põe cerimônia nisso. Fiz cafuné, como é bom fazer cafuné! – não é dando que se recebe? É verdade que fiz a caveira de uns e de outros, mas quem mandou mexerem com quem estava quieto? Não me fiz de santo, fiz foi das minhas – e pelas caladas. Fiz gente de gato e sapato, me fiz de idiota, de desentendido, me fiz até de morto – veja só que coisa! Não é para me gabar, não, mas eu fiz chover, eu fiz relampear, mas mesmo assim o céu ficava azul. Fiz muita cara feia, bem mais que essa que Deus me deu. Fiz festa, fiz velório, fiz uns e outros de cristo, mas, de boa, não me venha fazer sermão por causa disso, pela benção do Senhor do Bonfim. Fiz as armas de Santo Antônio e, de quebra, fiz aquele gesto de Einstein com a língua. Fiz caveira para um enxame de gente. Fiz beicinho, fiz vaquinha, fiz ousadia – vá me desculpando a falta de fineza, mas você não perguntou? Então! Fiz do limão umas caipirinhas sem sal e sem açúcar. Fiz média com uns e outros, a torto e a direito, plantando verde para colher de vez. Fiz cortesia com o chapéu dos outros. Fiz o bem, mas olhando a quem. Fiz contas que só o diabo, mas as contas não batiam, as contas não fechavam. Fiz uns contos também, mas meus três leitores disseram que os contos não valiam dois tostões rasgados. Fiz da noite dia, fiz do dia noite. Fiz do céu uma cebola. Fiz de alhos uns bugalhos. Fiz amigos em pé de balcão, que são os melhores. Fiz também uma pá de inimigos – pois estes não podiam faltar na lista. Fiz muita gente de besta, sem fazer força alguma. Fiz exame de fezes, exame de vista, fiz exame de próstata, fiz dívidas, fiz acordos, fiz barba, cabelo e bigode. Fiz crônicas (como esta) que ninguém leu, graças a Deus. Fiz comida, fiz careta, fiz corpo mole. Fiz coraçãozinho juntando os dedos fura-bolos e mata-piolhos. Fiz a ema gemer no tronco do juremá. Fiz tempestades em copo de cerveja. Fiz o Imposto de Renda do jeito que pude. Fiz declaração de amor a quem eu queria mandar tomar banho. Fiz favor e desfavor, fiz vista curta e grossa, fiz o pelo-sinal, fiz graça, fiz desgraça. Fiz grosserias, fiz uns dramas, fiz docinho, fiz umas fezinhas. Fiz pergunta a Deus e ao mundo, mas nenhum dos dois me respondeu necas de nada. Fiz careta, fiz raiva a muita gente, fiz amor de madrugada, em cima da cama, debaixo da escada. Fiz promessa que nem lembro mais para que foi mesmo. Fiz a cama de muita gente. Enfim, fiz (e deixei de fazer) tanta coisa nesses trezentos e tantos dias! Nem queira saber. Mas quando é agora, esses dias, fiz um presépio (talvez para pagar as presepadas). Fiz uma resposta-padrão automática para retribuir cada uma das setecentas e setenta e sete mensagens recebidas via listas eletrônicas de distribuição. Agora, Simone, me tire uma dúvida: por que diacho é que você, minha querida, desde 1995 só faz essa pergunta no Natal, e não em 31 de dezembro, que é o dia exato da retrospectiva? Pergunto isso porque ainda não fiz aniversário, que é agora em 28/12, de sorte que ainda não posso fazer os noves fora, o resumo da ópera, a gloriosa retrospectiva. Tudo bem que, para mim, não foi boa coisa vir ao mundo justo nessa bola dividida (três dias depois do Natal, três dias antes do Ano Novo), mas balanço é balanço, essa menina! – tem que ser feito é no último dia!
*Marcelo Torres, cronista, autor de “Beijos nessa bela inculta”, “Chuva que faz o mar” e “O dia em que achei Drummond caído na rua”, livro finalista do Prêmio Jabuti 2020.
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