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“É preciso pensar na escola com respeito e dignidade”, diz educadora

Por Yumi Kuwano

30/08/2020 - 13:51 h | Atualizada em 30/08/2020 - 15:01
As lacunas da educação no Brasil são muitas, e o ensino público reflete bem o cenário da precariedade
As lacunas da educação no Brasil são muitas, e o ensino público reflete bem o cenário da precariedade -

As lacunas da educação no Brasil são muitas, e o ensino público reflete bem o cenário da precariedade. Escolas sem estrutura, sem orçamento, e crianças e adolescentes que não são levados em consideração na hora de montar um planejamento de ensino e avaliação.

A educadora e coordenadora pedagógica da Escola Estadual de Seabra, Janaína Barros, acredita que para existir um ensino efetivo é preciso conhecer bem os seus alunos. Para isso, ela desenvolveu a prática de analisar e interpretar escritos espalhados nas carteiras, paredes, portas e banheiros das escolas em que trabalha, história retratada no documentário Prova Escrita, lançado em julho deste ano, vencedor do 10º Doc Futura, que pode ser assistido no canal Futura. Com seu olhar atento e pessoas que classifica como generosas encontradas em sua trajetória, Janaína também conseguiu reduzir o índice de evasão escolar na Escola Municipal Ivani Oliveira de 40% para 2% e elevou o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) de 2,9 para 5,9.

Quais foram os primeiros passos quando começou, 20 anos atrás?

Desde muito pequena a escola estava no meu cotidiano. A minha madrinha era professora, minha mãe foi professora leiga, então a gente falava muito de educação. Minha mãe sabia que a educação e a leitura podiam levar muito longe. Então, primeiro, eu sempre fui uma menina que tive acesso a livros, e a outra coisa foi a qualidade na minha educação. Mesmo minha mãe não tendo concluído os estudos, vivendo ora como costureira, ora como cabeleireira, ela escolheu as melhores escolas para mim. Em Seabra, as pessoas sabiam que a escola era pública e tinha a melhor equipe, então, era ali que eu estudava. Quando fui para São Paulo, meu pai também pagou aquele que era o melhor cursinho para mim. Meu pai ganhava R$ 630 e pagava

R$ 600 de cursinho. Quando entrei na educação, lembro de levar revistas e livros para comunidades quilombolas. Com os primeiros salários, viajei para conhecer as melhores escolas, saber como elas faziam para ter a melhor qualidade para levar para Seabra. Então, minha expectativa era ter na escola onde eu trabalhava aquilo que eu compreendia como qualidade, a partir das experiências que tive e que estava adquirindo.

De onde surgiu a ideia de observar os escritos dos alunos?

A minha relação com a leitura de produções dos alunos vem com o Instituto Chapada, logo que comecei a trabalhar na escola, em 2000. O instituto nasce aqui na Chapada Diamantina formando formadores de professores. Foi ali a primeira vez que tive contato com as escritas, os desenhos que contavam o que os alunos faziam. Isso, para mim, foi formidável, e fui me aprofundando cada vez mais, mas estava muito relacionado aos primeiros anos da educação básica. Só que durante o percurso acabei sendo convidada a ficar em outros espaços com alunos maiores, principalmente do fundamental 2. Então, quais são as dificuldades, o que eles escrevem, o que eles demonstram não saber, aquelas perguntas estavam lá em toda minha pesquisa. Um dia, cheguei numa sala do 6º ano e vi uma menina muito tímida, e a professora disse que ela ia todos os dias para a aula, mas não conseguia aprender, e ao olhar o caderno dela me deparei não só com os saberes – eu já tinha ideia dos conhecimentos que ela não tinha –, mas também me deparei com um monte de versinhos, e quando comecei a ler me dei conta de que eles falavam de infelicidade com a vida, relações, sentimentos, sua aparência física. E entendi, naquele momento, que o adolescente não escreve para me contar sobre o que a escola está ensinando, mas conta coisa da alma, o que está sentindo. Lembro de ter fotografado o caderno dela para que pudesse começar a estudar sobre isso. Quando fui para a Escola Ivani, era a primeira vez que estava trabalhando na sede com aqueles adolescentes e eu não sabia nada sobre eles. Depois de duas semanas de aula, o banheiro estava cheio de escritos de todos os tipos: tinha denúncias, desabafos. Aquelas escritas começavam a me contar, de forma mais genuína, quem eram os alunos. Comecei a fotografar esses escritos e comparar com as produções de texto. Isso foi me ajudando na formação de professores, para discutir temáticas mais relevantes que tinham relação mais direta com os alunos, discutir projetos, estratégias.

Quais foram as histórias mais marcantes de alunos que conheceu?

Ainda sei muito pouco sobre a real relação de meninos e escolas, a minha sensação é que nós ainda não compreendemos muito sobre os alunos, estudantes do sexo masculino, e ainda temos questões de gênero para resolver na escola. Quando digo isso é que quando a gente vai olhar o índice de reprovação e os faltosos, são mais os meninos, então, essa percepção de que nós, muitas vezes, não estamos conseguindo fazer escola para menino sempre me chamou a atenção. Por isso, as minhas histórias estão muito atreladas aos meninos. Lá no fundamental 2, eu tinha um aluno extremamente desacreditado, que cometia alguns delitos na escola, como furtar celular, e eu e o diretor entendemos que tínhamos que nos aproximar dele. Em uma conversa particular, a gente disse o quanto acreditávamos no potencial dele e que poderíamos ajudá-lo a estudar no Instituto Federal da Bahia, e lembro do sorriso dele. A gente conseguiu acompanhá-lo por dois anos e nesses dois anos ele fez o vestibular para o Ifba e foi aprovado. Ao chegar lá, acabou não conseguindo permanecer. E por que que essa história chama a atenção? Porque a gente tem pressa de adultizar o adolescente, de achar que, porque ele namora, já tem uma vida sexual ativa ou porque ele comete um delito, já virou adulto. Acredito que, nesse caso, a permanência ou a evasão, com certeza, tem relação direta com o afeto, do verbo afetar, que envolve dar ou criar as condições para que o aprendiz se sinta acolhido. Outra história: três meninos disseram ao professor de física que queriam participar das olimpíadas de astronomia. Essa olimpíada é muito cara, o custo para enviar os alunos era de R$ 20 mil. E eu brinquei que, se eles conseguissem quebrar o recorde anual da olimpíada, iria vender o meu carro para que eles pudessem participar da competição no Rio de Janeiro. E não é que os danados conseguiram? Mas, para ir, eu disse a eles que tinham que saber me explicar todos os fenômenos do foguete cientificamente e, para minha surpresa, no outro dia cheguei à escola e eles tinham feito o cálculo enorme. O foguete, naquele momento, era a resposta para participar daquela olimpíada que era tão cara para nós. E eles foram, a única escola pública da Bahia e do Nordeste que participou, e saíram com medalha de ouro.

E você vendeu o carro?

Não precisei vender o carro. Eu fui para uma palestra em São Paulo e nela uma pessoa me perguntou assim: se existem profissionais tão bons, por que a gente tem escolas públicas de qualidade tão baixa no Brasil? Aquilo me tomou de um jeito e falei que era por causa da falta de oportunidade de mostrar o talento. E contei a história dos meninos, três craques que precisavam de R$ 20 mil para viajar e a escola não tinha. A gente fez uma vaquinha virtual que, até então, só tinha R$ 1,3 mil. Naquele momento, eram umas 600 pessoas na palestra, começaram a aparecer nota de R$ 50 e de R$ 100 e saí de lá com dinheiro para viajar. Chorei muito, e, quando voltei para cá, a gente tinha o dinheiro das passagens, milhas e na palestra um ser humano incrível, o João, ficou sabendo e nos ofereceu sua casa para ficarmos hospedados, e eu não vendi meu carro.

O que os prêmios que ganhou (Educador Nota 10, em 2013, e Espírito Público, em 2018) significam para você?

Todos os prêmios significam, para mim, oportunidade para seguir estudando. Venho de uma família muito humilde, não tenho, por exemplo, nenhum parente que mora em Salvador que eu possa ir quando quero fazer um curso, participar de um seminário e não posso ir a menos que eu tenha o dinheiro da passagem, que eu possa pagar hospedagem. Então, isso sempre gera um custo muito alto e, com o salário que tenho, não consigo bancar dois ou três seminários bons durante o ano. Quando me inscrevo em um prêmio e ganho, ou pelo menos fico entre os finalistas, as pessoas me dão oportunidade de seguir estudando. A partir do prêmio, pude conhecer Londres, fui para Cingapura e conheci as melhores escolas do mundo. Ganhar prêmios é ter acesso às oportunidades que, por enquanto, como educadora de redes públicas, eu não consigo bancar.

Quais são os maiores desafios do ensino público no Brasil?

Acho que o desafio é fazer uma escola que possa trazer expectativas de futuro mais concretas para os estudantes. Li um estudo que dizia que apenas 20% dos alunos que fazem ensino médio em escola pública têm vaga na universidade. Então, se hoje eu fizesse o melhor ensino público da Bahia, os meus alunos prestariam o vestibular e não teriam acesso a uma vaga. Isso significa que 80% de bons alunos não teriam acesso às universidades. Se eles são bons e não têm acesso à universidade, que outras oportunidades a escola pode trazer como possibilidade? Então, para mim, o grande desafio é fazer uma educação que permita aos alunos ter projetos de vida e que dê a eles repertório para concretizar esses projetos, e isso inclui saber de matemática, produzir um texto, saber argumentar para trazer as ideias, isso significa autorizar os alunos a sonharem. Acho que o maior dilema é construir um processo de formação de professores que deem repertório a esses sujeitos que estão na escola a seguir ajudando esses meninos da escola pública a levar adiante suas expectativas, seus sonhos, que não estão centrados unicamente na universidade.

E é comum os alunos acharem que aquilo que estudam não é útil para a vida real, não é?

Isso. Essa é a grande questão. E será que é? Como formar professor para fazer essa abordagem de relação de conhecimento e projeto de futuro? Quando eu fui para Cingapura, lá tem escola para quem não gosta de estudar. Eles entendem que quem não gosta de estudar não necessariamente não gosta de aprender, eles chamam estudar esse estudo mais teórico. É uma escola técnica com a mesma qualidade de uma universidade aqui no Brasil, tem um avião de guerra, drone, um navio, eles compram coisas que vão envelhecendo, mas tem uma tecnologia bacana, e esses meninos vão para lá construir equipamentos maravilhosos. Quando saem dali todos já estão com empregos. Acho que estamos precisando entender que os meninos que não gostam necessariamente de sentar e ouvir o professor geralmente são os meninos que montam e desmontam coisas, como aqueles três meninos das olimpíadas. Acho que a gente precisa mudar um pouquinho a compreensão do que é gostar de estudar e a diferença entre estudar e aprender, estudar e ver sentido do que aprendeu para projetos de escolhas no futuro.

Com a pandemia, como ficou a educação?

O isolamento já existia no Brasil. Os índices de reprovação e evasão tão gritantes já mostram um isolamento. Quando a gente fala de isolamento na relação com a internet, por exemplo, uma das meninas do filme Prova Escrita passou 15 dias para ver o documentário depois que ele tinha sido lançado na TV porque a gente não conseguiu entregar para ela uma forma que a comunidade dela podia acolher. Na primeira vez, levei no pen drive e ela não tinha nenhuma entrada USB; depois eu gravei de um jeito que não rodava no aparelho dela, que era muito antigo, e acabei recorrendo a um profissional para gravar pensando no aparelho que ela tinha. Eu acho que a pandemia só vem gritar bem alto o que já existia e era invisibilizado nas escolas públicas. Quando a gente fala em voltar com os protocolos sanitários, será que dá para voltar com segurança? A minha pergunta é: já deu para fazer educação de qualidade com as estruturas físicas que temos nas escolas? Na maioria das escolas, não temos espaço para comer, quantas e quais escolas têm refeitório? Também não temos espaço para fazer fila da merenda. Para mim, o isolamento trouxe questões muito negativas, mas também trouxe luz para problemáticas que, se a gente não tiver cuidado, quando tudo passar, vamos fechar a porta de novo e fazer de conta que isso não aconteceu. É preciso repensar não para a pandemia, mas pensar na escola com respeito e dignidade. Essa é a minha opinião.

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