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23/07/2023 às 6:00 - há XX semanas | Autor: Marcos Dias

MUITO

“É preciso que a gente conte outras histórias”

Lilian Schwarcz fala sobre exposição Brasil Futuro, a democracia e o racismo brasileiro

Lilian é professora da USP e autora de livros premiados
Lilian é professora da USP e autora de livros premiados -

A exposição Brasil futuro: as formas da democracia, inaugurada no dia 1º de janeiro no Museu Nacional da República, em Brasília, dia da posse do presidente Lula, foi aberta no último dia 15 de julho em Salvador, no Centro Cultural Solar Ferrão (Pelourinho) e ficará em cartaz até 15 de novembro.

Com destaque para a produção contemporânea de artistas negros e negras, de mulheres, pessoas LGBTQIAPN+ e indígenas, a mostra é dividida em três núcleos: Retomar Símbolos, Decolonialidade e Somos Nós. A curadora nacional do projeto, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, que é professora da USP e autora de livros premiados, fala nesta entrevista sobre a importância do momento atual para a democracia, a inclusão de obras baianas na exposição, a repercussão nacional do 2 de julho e o racismo brasileiro.

Qual seu maior desejo em relação à exposição Brasil futuro: as formas da democracia?

De forma geral, que as pessoas entrem em contato com a arte. Os artistas tiveram e têm um papel muito importante na luta pelo fortalecimento da democracia, por um Brasil mais republicano, mais inclusivo. A primeira questão é essa. E a cada vez que a exposição viaja, ela incorpora artistas e curadores do estado. Nessa versão, já estão incorporados o pessoal do Acervo da Laje e o Arquivo Zumvi.

A utopia grande é que a população elabore, discuta, goste, critique, mas reflita um pouco sobre quais são os impasses e os desafios da democracia com arte, e não com aqueles textos retóricos, ao contrário, porque diante da arte cada um se emociona com uma obra e não com outra, então, é um pouco isso, a gente afetar, no sentido de afeto e no sentido de produzir uma comunidade que imagina junto.

Para a senhora, qual a contribuição das obras daqui que foram incorporadas à exposição original?

Aqui em Salvador a exposição foi muito ampliada. Fiz uma visita prévia e fiquei muito encantada com o Acervo da Laje e Arquivo Zumvi, no sentido de incluir uma historiografia negra, os subúrbios com outro tipo de arte e eles também participaram da montagem da exposição, isso foi muito bonito. Criamos um núcleo no terceiro andar, o Tudo é Dádiva, que também dialoga com acervos que já existiam no Solar do Ferrão.

Essa é um pouco a vocação de Brasil Futuro, que ela vá se ampliando e produzindo um diálogo e uma tensão também com o tipo de arte produzida em cada estado. A Bahia sempre foi vanguarda, sempre teve uma vanguarda artística em todos os sentidos, no cinema, no teatro, na dança e nas artes, então, a exposição está muitíssimo acrescida. Queríamos muito ter inaugurado a exposição no 2 de julho, mas entendemos que não era possível porque a programação estava lotadíssima, mas queríamos muito inaugurar em julho e saudar os 200 anos de independência na Bahia como os 200 anos nosso. Até porque nós não celebramos em 2022, porque tivemos um governo muito retrógrado que sequestrou a pauta democrática e transformou o 7 de setembro num anúncio de golpe.

Eu entendo que os 200 anos de Independência na Bahia não são só da Bahia, mas, sudestina que sou, entendo que a nossa história ainda é muito branca, colonial, palaciana, masculina, sudestina, e é preciso que a gente conte outras histórias.

A senhora mesma celebrou o Bicentenário do 2 de julho, na sua conta do Instagram, em que escreveu: “Viva o 2 de julho! Hora de celebrar o 2 de julho como o dia nacional da independência”. Acredita que essa perspectiva vai prevalecer algum dia?

Sempre digo que sou otimista no atacado e pessimista no varejo. Penso que cabe a nós, cada um do seu lugar – a cidadania é uma franquia da democracia – lutar por ela. Você citou meu texto no Instagram, agradeço a generosidade, mas tenho colegas historiadores aqui na Bahia de uma excelência e reconhecimento internacional imensos. Mas pensei: uma historiadora do Sudeste tem que falar disso. Então, esse movimento, eu posso falar da minha parte, da USP, dos lugares que frequento, isso está acontecendo, das pessoas reconhecerem que durante muito tempo a gente falava de escravidão, veja só, a partir das imagens de Debret do Rio de Janeiro, e apenas, como se valessem para o Brasil; falávamos apenas e tão somente dos eventos que acontecerem na Corte [Rio de Janeiro], e deixávamos de ver uma parte do Brasil da maior relevância.

Minha questão é assim: eu não quero tirar nada da ementa de História, quero acrescentar, e muito. Para que as pessoas possam, democraticamente, avaliar a importância desses eventos. Escrevi um livro, O sequestro da Independência [Companhia das Letras, 2022], que mostra como mesmo em 1822 houve um sequestro. Não é de agora, começou em 1822 mesmo, quando foi construída a mística do 7 de setembro, de um Dom Pedro valente, isso foi uma construção do Império, uma tentativa do filho recuperar a imagem do pai. Esses sequestros foram sendo dados em 1822, em 1922 no Centenário, quando, de novo, Rio de Janeiro e São Paulo sequestraram a pauta; em 1972, quando o exército, em plena ditadura militar, transformou a festa cívica numa festa militar, e foi sequestrada de novo em 2022.

Então, isso é um movimento recorrente que cabe a nós, cidadãos e cidadãs brasileiras, alterar essa agenda, disputar essa agenda. As pessoas me perguntam: ‘Então, não teve o 7 de setembro?’. Teve, claro que teve, mas não teve apenas e tão somente o 7 de setembro. O que a gente precisa entender é por que a memória – digo sempre que a memória é feita de lembrar só um pouco e esquecer muito – por que a nossa memória nacional guarda tão pouco? Essa é a questão. E o que é que guarda e o que é que esquece.

Um dos núcleos da exposição, o Descolonizar, pretende questionar o passado autoritário, de colonização europeia e a escravidão. O que a senhora pensa daquela frase de Joaquim Nabuco, que Caetano Veloso musicou [Noites do Norte]: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil"?

Ele fala isso em Minha formação, um texto de sua memória afetiva, retrospectivo, de início de século, o texto de um Joaquim Nabuco já saudosista do Império. É interessante pensar nessa questão como o abolicionismo oficial não se opõe ao Império, ao contrário, quer trabalhar junto, faz parte dessa construção da Isabel, aquela que nos ‘deu’ a liberdade, e eu pergunto, como é que alguém pode dar aquilo que é um direito de todos, ninguém tem esse direito. E o que faz Joaquim Nabuco? Ele toca na ferida nacional. A questão da escravidão é a grande contradição da sociedade brasileira. Quem disse isso foi Sergio Buarque de Holanda. A escravidão é o grande trauma nacional. Nós trabalhamos com o conceito de trauma mais na perspectiva individual, mas é preciso pensar em trauma na perspectiva coletiva. Porque trauma, se não for tratado, explorado, mencionado, vira um silêncio ensurdecer.

A escravidão é um silêncio ensurdecedor no Brasil. O Brasil foi o país que mais recebeu mão de obra africana escravizada. Dos 12 milhões de africanos e africanas que deixaram seu continente, 10 milhões chegaram e, desses, 4,8 milhões tiveram como destino o Brasil. É uma ferida aberta. Esse foi o maior genocídio, o maior êxodo forçado da modernidade. E durante muito tempo, esse era um não tema no Brasil. E até o contrário: a historiografia oficial tratou a escravidão no Brasil como se fosse benévola, porque uma segunda parte desse texto do Joaquim Nabuco é um texto do aleitamento da mãe negra, que fala só do afeto, que eu não nego que existiu, mas não fala da violência sofrida por essa mãe negra que amamentou seu filho branco mas não amamentou o seu filho negro.

É desse silenciamento que estamos falando. A historiografia da Bahia tem um papel fundamental nos estudos sobre escravidão porque mostra como houve violência, sim, mas mostra muito a agência dos escravizados. E essa questão da agência, da insurreição, da insubmissão, é também um lado que a historiografia oficial negou durante muito tempo. Tratou os escravizados só como passivos – mas desde que existiu escravidão existiu rebelião. Resumindo e voltando dessa longa viagem porque esse é o meu tema de pesquisa: nós precisamos tratar da escravidão, e não com lentes românticas, tentando entender esse pesado legado da escravidão.

O pós-abolição não pensou em políticas de inclusão e o legado é esse país que, até hoje, é o sexto país mais desigual do mundo e que pratica racismo estrutural. E como diz o professor Kabengele Munanga, no Brasil o racismo é o crime perfeito, porque as pessoas praticam e acham que não praticaram, quer dizer, acham que estão fazendo o bem. Então, essa é uma questão urgente. Acho que sobre essa questão o Brasil está mudando, as políticas de cotas são o maior programa de reparação já visto, é um programa de reparação histórica, social, cultural e política da maior importância e que os frutos já vão aparecendo. Essa exposição trata disso, eminentemente no núcleo Descolonizar, mas esse tema perpassa a exposição inteira.

É muito recente, de certa forma, uma perspectiva antirracista e decolonial no campo cultural. A USP só adotou o sistema de cotas em 2017. Outras instituições só agora estão se dando conta. A que a senhora atribui essa mudança?

É muito recente aqui no Brasil. Sempre digo que não há forma de você adquirir e lutar por direitos. Na agenda norte-americana, a questão dos direitos civis entrou muito cedo. Na agenda brasileira entrou muito tarde, apenas agora, na década de 1970. É muito recente. Até então, como disse, é como se fosse uma falsa questão, um tema que não se pode tratar. Quando publiquei O Espetáculo das Raças, na década de 90, fui acusada de promover o racismo, porque eu dizia que estávamos a um passo do apartheid racial e nos inventamos como democracia racial nos anos 1930. E eu lembro que brinquei: eu, branca desse jeito, mulher, devo ser muito poderosa para poder inventar o racismo no Brasil.

A exposição Histórias mestiças, que já igualava artistas bancos, negros, indígenas, é de 2014, que fiz com Adriano Pedrosa, foi um escândalo. Histórias afro-atlânticas é de 2018, no Masp. No começo, as pessoas diziam que estávamos acabando com o Masp. Lembro quando entrei lá e falaram: ‘Esse é o maior museu de arte europeia na América Latina’. E eu provoquei: Isso é bom ou ruim? A história da arte é um braço do imperialismo.

Então, durante muito tempo se usava esse tipo de termo, arte para a arte europeia, artesanato para as outras artes; arte naïf para outras artes. Você nomeava artistas de expressão ocidental e todas as outras artes eram coletivas. Isso demorou, mas penso que esse é um movimento sem retorno. Infelizmente, foi preciso a morte George Floyd nos EUA, e, no Brasil, o assassinato de João Alberto Freitas, no Carrefour, em Porto Alegre, em pleno dia da Consciência Negra, para que o Brasil tocasse o despertador da sua cidadania.

O que percebo – eu me considero uma aliada, não sei se sou mas assim me penso – é que demorou demais para essa pauta entrar, mas agora não tem volta. E isso é muito importante para o Brasil e essa é a hora de alterarmos nossos livros didáticos, que se não for a minha geração e a sua, será a próxima. É hora de entrarmos com a pauta LGBTQIAPN+, o Brasil ainda é campeão de transfeminicídio e de feminicídio também. No Brasil, os indígenas são basicamente esquecidos, são tratoreados, invadidos...

E têm, igualmente, um pensamento e arte incríveis...

Nossa, eu venho da antropologia também, então, o que é o perspectivismo, porque filosofia é um conceito ocidental, mas eu chamaria de filosofias ameríndias, cosmologias ameríndias da maior relevância e que nós, simplesmente, pretendemos que os bons indígenas são indígenas aculturados, ou seja, mortos culturalmente. Então, nós temos que aproveitar esse momento, temos que explorar, e é disso que a exposição trata.

Por falar em aproveitar o momento, como conseguiram evitar que a exposição Brasil Futuro, em Brasília, fosse alvo de extremistas no dia 8 de janeiro?

Olha... A minha neta sempre fala assim, ‘Vovó, não é que eu queira me ‘gambá’, em vez de gabar, mas brinco que a única coisa que posso me gambá, junto com a equipe do museu, é que nós soubemos pela segurança que no dia 8 de janeiro de manhã começaram a entrar grupos querendo tocar nas obras, diziam que pagavam impostos e tinham o direito de tocar nas obras. Até então, a exposição ficou cheíssima, mas a segurança não tinha sofrido qualquer problema. Então, nós, em conjunto, resolvemos fechar a exposição, isso às 11h da manhã. Achamos que não valia a pena, estava muito tumulto, e logo no começo da tarde nós ouvimos sobre invasões aos três palácios dos poderes. Teria sido um desastre. Ainda bem que não aconteceu e que foi possível – não imaginar a barbárie que estava para acontecer, o golpismo que estava por acontecer – mas foi possível imaginar que não era um bom dia para a democracia.

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