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Encantador de meninos

Publicado segunda-feira, 03 de abril de 2017 às 11:07 h | Atualizado em 21/01/2021, 00:00 | Autor: Tatiana Mendonça
Adroaldo Ribeiro Costa inaugurou o teatro infantil brasileiro com a opereta "Narizinho", de 1947
Adroaldo Ribeiro Costa inaugurou o teatro infantil brasileiro com a opereta "Narizinho", de 1947 -

O Ministério das Comunicações adverte: a repórter apaixonou-se pelo personagem. Nem foi o caso de ter sido amor à primeira vista, ela que inteiramente o desconhecia, encabula-se de confessar. A coisa tomou corpo à medida que avançavam as páginas de um livrinho que tinha todo jeito de autobiografia. Ali imaginou-se conversando com ele, como numa longa entrevista, e foram desse jeito ficando íntimos. Tanto que numa tarde calorenta, quando esteve de frente àquele grupo de senhoras que ensaiava uma peça para contar sua vida, em homenagem aos 100 anos que completaria no próximo dia 13, se vivo estivesse, achou mesmo que ele andava ocupando uma das cadeiras de resto vazias do teatro que tão profundamente sonhou ter, para mantê-lo sempre cheio de crianças e histórias. Depois desse episódio, pensou a repórter se não seria o caso de declarar-se impedida de escrever esta reportagem – aquele princípio de vetar o exercício do ofício se houver envolvimento de afeto –, mas depois achou que seria burrice afastar-se voluntariamente de tal honra. 

Ato I

No teatro do A Hora da Criança, na Avenida Juracy Magalhães, doze mulheres circundam uma menina. Com uma ajuda dos papéis que carregam, pescam as falas ainda não decoradas. Perguntam se ela sabe quem foi seu pai, e Emília diz que sim, que foi o grande escritor Monteiro Lobato. Mas ela saberia por acaso quem foi o primeiro a dar-lhe vida num palco? Emília deve então fazer uma carinha intrigada e negar com a cabeça, para dar-lhes a chance de explicar para tantos quantos o ignorem. 

Ao longo do espetáculo, irão contar quem foi o baiano Adroaldo Ribeiro Costa, que se multiplicou nas versões professor, compositor, escritor, teatrólogo e jornalista. Criada e encenada por ex-integrantes do A Hora da Criança, projeto a que Adroaldo dedicou a vida, a peça integra as homenagens pelo seu centenário, comemorado no dia 13 de abril de 2017. Quando o conheceram, eram todas meninas como Bruna, que fazia a Emília da história. Ela foi até lá atendendo a um pedido da avó, mas ainda não decidiu se vai participar de verdade. Íris Fróes, a avó em questão, integrou o elenco de Narizinho, de 1947, primeira encenação do teatro infantil brasileiro, realizada, à custa de muita teimosia, por Adroaldo. 

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Ex-integrantes d'A Hora da Criança ensaiam espetáculo em homenagem ao centenário de Adroaldo. Foto: Margarida Neide / Ag. A TARDE

Além da peça, a programação do centenário contará com uma missa na igreja do Rio Vermelho; a apresentação de um vídeo durante o BAxVI do próximo domingo, 9, já que, além de torcedor fervoroso do Esporte Clube Bahia, Adroaldo também compôs o hino do time; um concerto na reitoria da Universidade Federal da Bahia com repertório de sua autoria; a realização do III Salão Infantil Baiano de Artes Plásticas, em parceria com a Escola de Belas Artes da Ufba, lembrando que o primeiro foi feito por ele; a criação de uma página na internet para reunir depoimentos de algumas das centenas de meninos que passaram pelo A Hora da Criança; e a organização de um seminário para discutir com professores a metodologia de educação pela arte utilizada por Adroaldo. Todos esses eventos ainda estão sendo afinados e a maioria não tem data para ocorrer.

Numa rua paralela anda o livro que o médico e poeta Aramis Ribeiro Costa está escrevendo sobre o seu tio e padrinho. Não pretende que seja uma biografia, mas uma crônica familiar que conte esmiuçadamente a vida de Adroaldo, juntando as lembranças da convivência próxima com pesquisas em jornais. “Minha afinidade com ele era total. Era a pessoa mais carismática que já conheci, a mais encantadora. Quando chegava num lugar, tudo se voltava para ele. Não é por outra razão que conseguiu que centenas de pessoas se aglutinassem em torno desse movimento do A Hora da Criança absolutamente de graça. Nunca ninguém ganhou nada”.

Para Aramis, o legado de Adroaldo não é reverenciado como merece. Também por isso está escrevendo o livro, para resgatar sua história. “Ele lidou com milhares de crianças. Sei que essas se lembram dele com muito carinho, têm esse reconhecimento. Mas fora desse círculo, não vejo essa repercussão. Meu tio se dedicou a coisas que se tornam naturalmente efêmeras: a crônica existe enquanto o jornal está circulando; o teatro existe enquanto dura o espetáculo; a própria educação não é vista a não ser por cada um. Não está escrito na cara de ninguém: fui educado por fulano. Então são coisas difíceis de ser permanecidas, principalmente nós que vivemos numa terra que tem tão pouca memória de tudo... É uma lástima”. 

Ato II 

Por uma necessidade médica, Adroaldo Ribeiro Costa nasceu em Salvador e não em Santo Amaro, onde se criou. Fazia teatro em casa com os dois irmãos, cobrando alguns tostões dos vizinhos que iam vê-los, e para dar gosto ao pai tornou-se bacharel em direito. Nunca pensou em trabalhar na área. O que fez foi tornar-se professor de história e português no Ginásio Santo-amarense, que o pai construiu para que ele continuasse os estudos com os irmãos. Em 1939, seguiu o conselho de uma aluna e resolveu montar um espetáculo para que conseguissem dinheiro para comprar os instrumentos da banda de música da escola. 

Naquele momento, como deixou registrado no livro Igarapé – A história de uma teimosia, descobriu que “estava de posse de um poderoso instrumento de educação e resolvi aproveitá-lo ao máximo”. Alguns anos depois, escreveu para Monteiro Lobato perguntando se ele permitia que teatralizasse um conto seu, A Menina do Narizinho Arrebitado. Capaz não esperasse resposta, mas poucos dias se passaram até tê-la em mãos. 

Na carta Lobato dizia que aprovava com “o maior prazer a sua ideia”. “Pela amostra que sua carta me dá de seu espírito, tenho a certeza de que ninguém o fará melhor”. E pedia uma cópia da teatralização, que Adroaldo, a bem da verdade, ainda nem tinha. Tratou de escrevê-la e de compor as músicas para o espetáculo, com ajuda do amigo e maestro Agenor Gomes. Nesse meio-tempo, tornou-se também locutor da Rádio Sociedade, naquela época livre em que não fazia mal encomendar o almoço no ar. Já estava morando em Salvador, para onde se mudou depois da tristeza pela morte da noiva. 

Começou fazendo um programa para universitários – num deles, teve que se transmutar em vários entrevistados, por uma hora e meia, já que nenhum convidado apareceu. Depois, criou um outro programa, A Hora da Criança, e esse sim vingaria por exatos trinta anos. A estreia estava prevista para o dia 4 de julho de 1943, mas não ocorreu porque faltou energia. No outro domingo, a mesma coisa. Até que no dia 25 de julho, resolveu que todos iam esperar ali mesmo, no estúdio do Passeio Público, até que a energia voltasse. E assim estrearam, com uma hora e dez minutos de atraso. No programa, que tinha até direito a auditório, as crianças cantavam, declamavam poemas, participavam de esquetes. Apesar do sucesso da empreitada, Adroaldo não esquecia Narizinho.

Por cinco anos buscou apoio até encontrá-lo no amigo Anísio Teixeira, então secretário de Educação da Bahia. Pediu 50 mil cruzeiros, Anísio ofereceu 70 mil e acabou dando pouco mais de 30. Quando já estava perto da estreia, voltou a escrever para Monteiro Lobato uma carta que era quase uma intimação. Nela dizia que no próximo dia 15 de dezembro de 1947 a Bahia veria Narizinho. “Estou trabalhando com um elenco de mais de cem crianças e tenho certeza de que obterei sucesso. Mas, meu amigo, não haverá sucesso, não haverá contentamento, nada haverá para mim, se eu não o tiver aqui”. E para liquidar a questão, jogava ainda maior cartada: “(...) Creio na sua vinda. Já a anunciei mesmo às crianças e elas ficaram alvoroçadas. Tão alvoroçadas que eu não terei coragem de causar-lhes uma desconcertante decepção. Em nome delas, portanto, venha”. E Lobato veio. 

Nem é preciso miudar a aflição de Adroaldo na noite de estreia. Houve um momento mesmo em que o escritor saiu do calorento Teatro Guarani – a que depois comparou a um ”forno de assar bolos” – para tomar uma fresca e Adroaldo ficou achando que ele tinha ido embora por ter odiado tudo. Não podia estar mais enganado. Lobato gostou tanto do que viu que queria levar o espetáculo a São Paulo e ao resto do mundo, nas mãos de grupos profissionais. Poucos meses depois, porém, o escritor viria a falecer. Talvez por não ter seguido para os palcos do sudeste do país, a opereta não seja referendada como deveria, ou seja, como o marco inicial do teatro infantil brasileiro. Os livros costumam atribuir o feito à O Casaco Encantado, de Lúcia Benedetti, encenada em 1948.

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Dilma Gouveia estreou no teatro tendo o escritor Monteiro Lobato na plateia. Foto: Adilton Venegeroles | Ag. A TARDE

Sentada na sala do seu apartamento na Cidade Baixa, Dilma Gouveia, 82, conta como se transformou na protagonista da primeira Narizinho. Tinha, na época, 13 anos e nem pensou duas vezes antes de aceitar o convite feito por Adroaldo. Ela já estava acostumada a cantar no programa de rádio aos domingos, arrumadinha com sua farda, e também cantava na peça. “Lembro da nossa alegria tão grande naquela noite, das roupas, que eram lindas... É uma pena que não foi gravado em filme”.

Depois da estreia, Lobato escreveu uma carta para ela, a quem chamava de “netinha”, dizendo como estava bonita no teatro “naquele lindo vestido de seda, sentada como uma patinha choca ao lado do príncipe-rei. Não foi só a criançada que se encantou com você naquele dia. Também os marmanjos e os vovôs da minha marca”. Dilma não guarda a cópia da carta nem a foto que tirou naquela noite com o escritor. Ficaram na memória, assim como o apreço que guarda pelo A Hora da Criança e por Adroaldo. “Ele é inesquecível. Foi uma pessoa boníssima, de alma grande”. 

Por muitos anos, os ensaios do A Hora da Criança, que sempre foram gratuitos e não faziam distinção de classe social, aconteceram no Iceia. Quando terminava de dar aulas, Adroaldo ia encontrar os meninos que brincavam no pátio. Parava com a cadeira virada de costas e ficava observando o jeito de cada um, sua maneira de fazer pesquisa de elenco. Aos poucos, sem que precisasse chamar, sua trupe ia se agrupando perto dele. Os ensaios não tinham aulas formais, era como se continuassem brincando. “A tendência ao teatro é inata – o teatro é, em última análise, um brinquedo de faz de conta”, escreveu em Igarapé. 

E conta ainda o caso de um menino que chegou e parecia não ter qualquer talento, de tão tímido e “desentonado”. Pois fez uma esquete em que ele tinha apenas que ficar sentado, recortando uma revista. E aí a irmã vinha e lhe perguntava: “Não é, Janjão?”. O menino, então, arregalava os olhos, “grandes e engraçados”, e acenava que sim. “Foi um dos maiores sucessos do número”.

Com Nair Spinelli Lauria, a Nairzinha, aconteceu algo parecido. Foi acompanhar o pai, o alfaiate Walter Spinelli, na entrega das roupas que costurava voluntariamente para os meninos do A Hora da Criança, quando começou a brincar com as cortinas do teatro, tentando se desvencilhar com as possibilidades dos seus dois anos. Adroaldo viu aquilo e resolveu incorporá-lo à Infância, revista que encenou em 1950. Nos intervalos entre as cenas, Nairzinha distraía o público lutando com a cortina. Ao longo da década de 1950, fez outros sete espetáculos. Quando tinha apresentações à noite, sabia que tinha que dormir de tarde, para não ser vencida pelo cansaço. Os meninos do numeroso elenco eram separados por faixa etária e mães voluntárias ficavam de par nos camarins, para dar conta de arrumar todo mundo. “O curioso é que não tinha estresse. Ninguém ficava tenso no dia do espetáculo, porque era como se a gente ainda estivesse brincando no ensaio... Ele era um professor muito amoroso, embora fosse rigorosíssimo. Não aceitava desafinação”.

Um tio de Nairzinha gostava de pirraçá-la dizendo que não sabia como ela gostava tanto dele, já que era “muito feio, horroroso”. “Ele falava isso e eu me acabava de chorar... Sou até hoje apaixonada por ele. Adroaldo é responsável por tudo que faço na vida. A minha pesquisa sobre o folclore brasileiro eu dedico a ele. Foi quem me deu um olhar diferenciado de educação pela arte”. 

Também na década de 1950, Adroaldo teve problemas com a Justiça de Menores, que tentou suspender a exibição de outra temporada de Narizinho, de 1951, para cumprir a determinação legal de que criança não deveria trabalhar, ainda mais de noite. Por pouco, Adroaldo não foi preso. No rebuliço gerado pelo caso, teve até um psiquiatra que se ofereceu para fazer uma pesquisa científica e descobrir se as encenações causavam prejuízos às crianças. Volta e meia, Adroaldo também ouvia que os meninos e meninas comportavam-se tão bem em cena porque ele os hipnotizava, ou dava-lhes “injeções misteriosas”. 

Advogada de formação como Adroaldo, Fernanda Ayres resolveu estudar sua obra na dissertação de mestrado que defendeu na Faculdade de Educação da Ufba em 2008. Para ela, a experiência do A Hora da Criança foi uma “prova cabal” da importância de “desenvolver o ser humano através da arte, da brincadeira. “Ele atuava no genuíno da criança. É uma filosofia encantadora, que deveria ser mais reverenciada”. 

Diretora do grupo infantil Stripulia, Fernanda saiu da pesquisa com a certeza de que os ex-integrantes do projeto carregam uma “outra estrutura mental”. “Todos eles são sensíveis ao belo. E quem é assim busca o belo em tudo, na vida pessoal, no trabalho... Qualquer desarmonia as incomoda. Isso inclui brigas, violência. São pessoas mais construtivas, mais agregadoras, que buscam um mundo melhor”. 

Ato III

Vanguardista, o projeto do A Hora da Criança já funcionava numa estratégia multiplataforma: além do programa de rádio e dos espetáculos de teatro, o grupo participou de programas de televisão, shows em escolas e estendeu sua filosofia para o jornal impresso. Por 25 anos, Adroaldo encabeçou a página A TARDE infantil, ele que também era um popular cronista e editorialista do A TARDE (leia uma das crônicas aqui).

Quando Adroaldo morreu, em 27 de fevereiro de 1984, A Hora da Criança já tinha um terreno onde ergueria sua sede, doado pela prefeitura. Aramis foi o primeiro presidente da organização, que depois passou a ter à frente Josélia Almeida dos Santos, mais conhecida como Joca. A inauguração da sede e do teatro só ocorreu uma década depois, em 1994. 

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Josélia dos Santos assumiu a direção da Hora da Criança após a morte de Adroaldo. Foto: Mila Cordeiro | Ag. A TARDE

Não dá para dizer que o lugar funcione baseado na metodologia de Adroaldo. Ao invés dos ensaios livres, sem amarras, hoje as atividades se organizam como aulas formais de artes (música, teatro, dança, artes visuais), que atendem cerca de 200 crianças por meio de convênios com a prefeitura e o estado. Aqueles que estudam em escolas particulares pagam uma taxa anual de R$ 300, e quem estuda em escola pública não paga nada. “Nossa missão não é formar artistas, mas cidadãos sensíveis”, diz Josélia.

O publicitário Fernando Passos, que foi um menino do A Hora da Criança, tem para si que Adroaldo não queria verdadeiramente que seu projeto fosse levado adiante depois que morresse. “Acho que teve essa fragilidade única. Não tinha interesse que continuasse. Isso é evidente. O nível de vaidade fez com que ele fosse essa figura extraordinária. Era um cara autocrata, não era um democrata, e aí, quando ele morreu, acabou. Hoje não existe mais A Hora da Criança. É um nome em um prédio”. Fernando defende que o local seja reformulado a partir da atualização da metodologia utilizada por Adroaldo até se transformar no “grande projeto de educação transversal da Bahia”. “A gente precisa tirar A Hora da Criança desse lugar de uma simples escola para ser um movimento”. 

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