MUITO
Família cria série de animação para ajudar filho com autismo
Por Bruna Castelo Branco | Foto: Felipe Iruatã | Ag. A TARDE

Artur, 13, está dentro do espectro autista, um transtorno que prejudica as habilidades de comunicação e interação social. Por isso, até os 6 anos de idade, ele não falava muitas palavras. Também não dizia frases, mesmo que as entendesse. Gostava muito dos Teletubbies, de desenhar e imaginar histórias, coisa que fazia sempre que dava. Um dia, decidiu transformar um quadro do programa, aquele em que crianças de verdade aparecem falando sobre algum assunto, em desenho. Desenhou tudinho, parte por parte. Era sobre pão de mel. A empresária Fernanda Arraz, mãe dele, explica: “A nossa janela de comunicação sempre foi com os desenhos”.
“Ele desenhou toda a história, que é contada quadro a quadro. E ele ficava tentando falar, mas ainda não conseguia verbalizar”, conta Fernanda. Nessa época, a escola anunciou que faria um show de talentos, o que a levou, junto com o marido, o diretor de animação Renato Barreto, a ter uma ideia: transformar os desenhos de Artur numa animação e incentivá-lo a falar, palavra por palavra, narrando a história com a voz dele. “A gente queria mostrar o talento dele, que é desenhar, e foi bacana. A escola botou no cineminha”, lembra Fernanda.
Assim, dessa primeira experiência, nasceu Auts. Quando a família viu o quanto dar voz a uma história fez Artur feliz, resolveu continuar. O que começou como um projeto familiar acabou se expandindo. Auts, animada por Renato, é uma série de 26 episódios, cada um com um minuto e meio, que tem como protagonista um personagem autista. “Como o público é primeira infância, optamos fazer episódios curtos para manter mais a atenção”, diz Renato. A produção é da Takapy Digital Art, com coprodução da Griot Filmes.
“A gente quis levar isso para outras famílias. Se ele pode, qualquer outra criança pode”, comenta Fernanda. Em 2014, Renato, que já tinha trabalhado com a Griot Filmes, apresentou o projeto a João Guerra, que se tornou produtor-executivo da série. “A partir daí, a Takapy Digital Art entrou num processo de produção para que pudéssemos formatar um projeto para ter um alcance maior”, diz Renato.

Quando foi apresentado ao projeto, João logo percebeu a força e impacto que teria. Começaram a trabalhar de pronto. “Vem de uma convivência, parte de uma verdade muito forte ali, uma relação de família. Ele trouxe o projeto para ver se caberia, e aí a gente rapidamente abraçou e começou a desenvolver”.
Nasce uma voz
Foi Artur quem dublou Auts, num processo que durou mais ou menos quatro meses, conta Fernanda. “Renato começou a fazer os desenhos e levar Artur todo dia para gravar. A gente dublava palavrinha por palavrinha. Quando Renato juntou tudo e ele [Artur] se viu falando o texto inteiro, acho que deu um estalo. Foi o pulo do gato para ele começar a desenvolver mais a fala”, diz Fernanda. Tinha dias, lembra ela, que só conseguiam gravar um episódio. Foi como se a voz de Artur, antes relutante, nascesse dentro de Auts. E não foi mais embora.
Cada membro da família dubla um dos quatro personagens da animação. Fernanda é Ana, Renato é o cachorro e David, 17, irmão mais velho de Artur, entra como David mesmo. “Dublamos para deixar Artur mais confortável, para ele ouvir a nossa voz. Os personagens têm a personalidade parecida com a nossa. Ana é a que une todo mundo, chama todo mundo para a brincadeira. David é mais impaciente”, conta ela.
Até a escolha de Renato para dublar o cachorro, comenta ele, foi bem pensada. “Artur tinha muito medo de cachorro, uma fobia, e a gente queria ajudá-lo a superar isso. Quando ele me viu, uma pessoa que ele confia, dublando o cachorro, já o deixou mais curioso”. Agora a família tem um cãozinho, o Caneco – e Artur passa longe de ter medo dele. Caneco, adotado há dois anos, tem um problema nas articulações das patas da frente e anda meio troncho. Um cuida do outro.
Evolução
Se a série cresce, a equipe cresce. Na fase de escrever os roteiros, a produção firmou uma parceria com o Instituto Viva Infância, da psicóloga Cláudia Mascarenhas, que acompanha Artur desde pequeno. A instituição dá assistência a crianças e famílias no âmbito da saúde mental. “Ela nos ajudou muito com o conteúdo que permeia esse universo do autismo. Tem coisas particulares que Artur tem, mas que outras crianças não têm, e a gente estava querendo se comunicar com o maior número de pessoas possível”, comenta Renato.
Mas a parte difícil mesmo, explica João Guerra, foi o dinheiro – como sempre é na arte, aliás. O projeto ganhou um edital da Fundação Gregório de Mattos, órgão vinculado à prefeitura de Salvador, além do Governo do Estado e patrocínio privado. “O financiamento foi o que mais demorou de tudo, ainda mais neste momento em que a arte está sendo cada vez mais desvalorizada. Conseguir financiadores privados também é difícil. A produção foi rápida comparada a esse tempo para captar recursos”. Mas, finalmente, conseguiram espalhar Auts pelo Brasil.
A série estreou na TVE Bahia no dia 2 de abril, Dia Mundial de Conscientização para o Autismo. Ela é exibida durante a Hora da Criança, que vai das 7h30 às 12h e das 13h às 17h. Também está disponível na plataforma Playkids, uma espécie de Netflix para os pequenos, e no aplicativo do projeto o Auts é acessível para todo tipo de celular.

No app, os três primeiros episódios são gratuitos. A plataforma também vem com um jogo de desenhar, o preferido de Artur. Com a ajuda dos personagens, podem-se decalcar formas geométricas ou criar o que vier à cabeça. “Ele também sempre gostou de formas geométricas, desde pequenininho, por isso os personagens são formas geométricas. Auts é azul porque Artur gosta mais de azul”, diz Fernanda.
Além disso, Auts também tem site, que apresenta os personagens, o conceito do projeto e tem uma área kids, com aqueles três primeiros episódios gratuitos, desenhos para colorir e máscaras que podem ser impressas e usadas nas brincadeiras do mundo físico. A ideia é transformá-lo também num site de notícias, com reportagens sobre como é viver no espectro.
O plano, é claro, é continuar. Esperar a resposta das crianças – todas as crianças, não só as autistas – sobre a série e voltar numa segunda temporada. “É importante também para as crianças típicas, a gente ajuda a criar um mundo mais inclusivo. Ela assiste e pergunta, ‘mãe, por que esse personagem fala assim?’, e a família conversa”, opina Fernanda. Em nenhum dos episódios se diz o diagnóstico de Auts. “Já está no nome da série, não achamos que precisa falar de novo, deixa a criança ir entendendo e descobrindo”. Tudo se resume a isso: criar e deixar criar.
O site do projeto é www.eusouauts.com
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