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Frio, Carnaval, vodka e injustiças: russa que mora na Bahia conta como é a vida no país da Copa

Por Elena Stetsurina*

11/06/2018 - 12:16 h | Atualizada em 21/01/2021 - 0:00
Praça Vermelha, em Moscou, um dos principais pontos turísticos da Rússia
Praça Vermelha, em Moscou, um dos principais pontos turísticos da Rússia -

A curiosidade dos baianos em relação a um estrangeiro é ilimitada. Há quase cinco anos por aqui e uma situação já se tornou rotineira. Bebo água de coco numa barraca. A freguesa examina a estrangeira. Um mais impaciente proclama: “Argentina!”. “Não sou”, respondo. “Pela cor dos olhos é alemã”, outro entra na conversa. Respondo: “Não”. “É americana”, supõe um terceiro. Meneio a cabeça que não. Os três juntos: “Você vem de onde?”. “Vim do maior país do mundo”. Ficam embaraçados alguns segundos e julgo que continuem com bastante dúvidas. “Estados Unidos?”. “Já falei que não”. “China?”. “Não”, respondo esbugalhando meus olhos azuis. Depois segue um brado: “Suíça!”.

Até agora ninguém tinha me explicado por que lógica a Suíça vence todas as apostas. Tem alguma lógica, definitivamente. Neste caso, Suíça é um termo, um conceito abstrato, que significa “lá, eles”, os de fora, do outro lado da fronteira, onde tudo é certinho, democrático, organizado e seguro.

Já sei quais serão as perguntas seguintes: “Quanto tempo no Brasil? O que lhe trouxe aqui? Tá gostando?”. Esta última é uma introdução, e nesse instante chega o tempo de revelar à gringa como está a realidade: muita corrupção, pobreza, miséria, todos são ladrões e há muito racismo. Ô, queridos baianos, vocês não vão me revelar coisas desconhecidas. Infelizmente, nessa competição, o Brasil não vai ganhar do meu Maior do Mundo.

No último ano apareceu nova pergunta na lista: “Vai pra Copa?”. E acabou a conversa. Interlocutores não têm mais o que perguntar sobre a Rússia. Ouviram falar quase nada, apenas notícias escassas do Jornal Nacional. É verdade, os dois países parecem ser tão afastados, totalmente opostos, antípodas. Mas temos muito em comum.

No início deste século, o então presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, falou em entrevista ao jornal russo Izvestia: “O Brasil é a Rússia tropical”. Juro que, sem saber da declaração, já utilizava quase a mesma definição. Evidentemente, há analogia ao se considerar o tamanho, os recursos, a história de desbravamento das terras. Mas como é o povo? O presidente disse que foi várias vezes à Rússia, onde aliás tem parentes, e que os dois povos têm vários traços em comum: “O caráter alegre, são românticos, espontâneos e não muito organizados”. Concordo e, primeiramente, tenho que destronar um estereótipo.

Aparência

Acham que os russos são todos loiros, branquinhos, de olhos azuis, altos e fortes. Destaco: o país se chama Federação Russa e apresenta um conjunto enorme de povos. Mais do que 190 deles vivem dentro das fronteiras, a maioria é de nativos (com pessoas que não têm ascendência de imigração). A nacionalidade russa domina e compõe 80% da população. Impossível definir uma pessoa russa pela cor dos olhos ou tipo de cabelo. Somos bem diferentes: com tipos de corpos diferentes, alturas variáveis e a tonalidade da pele muda bastante. O que nos reúne e define: nossa grande língua e nossa mentalidade, formada pelo clima rigoroso, vastidão das terras e os séculos de luta e sofrimento do povo. Para se ter uma ideia de quem nós, russos, somos, é preciso considerar nossa história. Então, vamos mergulhar um pouco pelos séculos.

O clima

O frio da Rússia tem fama mundial. Mas o que é o frio para um baiano? Quinze graus, né? Pegando os graus baixos na Chapada Diamantina ou no Sul do Brasil, as pessoas contam isso como uma das grandes experiências na vida. Tenho certeza de que vou chocar a maioria dos leitores. As temperaturas invernais na parte central oscilam de -10°C até -35°C; na Sibéria, até -50°C; no Ártico, até -60°C.

No verão, as temperaturas variam de 0°C até 40°C, dependendo da região e de tendências meteorológicas. Uma semana do inverno pode começar com -30°C acabando com 0°C. É bem cruel para um ser humano se adaptar permanentemente a mudanças climáticas bruscas.

O que não muda nunca na Rússia é a brevidade do verão. O degelo das neves começa em abril, seguindo uma primavera curta e bem intensa e agitada. Temos três meses inteiros para plantar, cultivar, colher e conservar a safra para consumir até o próximo verão. Porque em setembro chega o outono. Provavelmente até o fim de outubro a neve vai aparecer.

Não, eu não quero assustar os baianos. Falo isso para dar noção sobre o caráter russo, formado para usar sua força inteira nos períodos de urgência. Somos bem retados, perspicazes, decididos, resistentes e audazes. Por outro lado, somos muito à toa, à sorte, ao deus-dará.

Imagem ilustrativa da imagem Frio, Carnaval, vodka e injustiças: russa que mora na Bahia conta como é a vida no país da Copa
| Foto: Xando Pereira / Ag. A TARDE
Arco do Triunfo de Moscou, na Rússia. Foto: Xando Pereira / Ag. A TARDE

Servos-escravos

Meus tataravós também eram escravos. Quando falo isso, acontece uma confusão na cabeça dos baianos. Pessoas examinam meus olhos claros, a pele branca e ficam sem palavras. Mas, sim, o sistema escravocrático da Rússia é mais antigo do que o brasileiro. No tempo medieval, a Rússia tinha uma forma própria que se diferenciava do feudalismo europeu. Tanto a vida dos plebeus quanto a dos nobres pertenciam à pátria. A terra também.

Durante os séculos, a forma de dependência entre camponeses e senhores de terra passou por mudanças que, passo a passo, tanto liberaram os nobres do serviço e aumentaram seus direitos quanto diminuíram os direitos dos camponeses para tornarem-se servos. No século 19, o servo se tornou escravo; o senhor de terra possuía o direito de mandar na vida dele sem limites. Esse período foi de sofrimento do povo e ferocidade dos senhores, que torturaram e executaram as pessoas, e foi descrito nas obras-primas de Pushkin, Tolstoi, Nekrasov e Gogol. A reforma emancipatória que liberou os servos foi anunciada em 1861 – 27 anos antes de Abolição da Escravidão no Brasil, e 56 anos da Revolução Russa de 1917.

Os construtores do socialismo

Em geral, os latino-americanos idolatram a Revolução Russa. Países colonizados até agora sofrem de desigualdade e as discussões sobre injustiça não param. Infelizmente, a vitória dos oprimidos sobre os exploradores, por si mesma, não traz a vida de paraíso. É preciso construir o novo mundo.

A revolução fez o que não faziam os exércitos dos inimigos. Sem liberar o país da Primeira Guerra Mundial, abriu as portas para uma guerra civil – racharam-se as ligações fundamentais. Não existia mais nem família, nem amizade, nem honra: a ideia de sociedade ideal colocou filho contra pai, irmão contra irmão, mulher contra marido. O mundo novo precisava de muito mais. Inspirados pelas ideias de uma sociedade justa, os construtores do socialismo trabalharam sem descanso, sem folga, sem salário. Em 20 anos, o país superou o atraso industrial, o analfabetismo e foi inteiramente eletrificado. Mas tudo tem seu custo. A luta pela obtenção de igualdade e justiça substituiu totalmente a liberdade pessoal. Começou a época das repressões. A razão? Falam da paranoia de Stalin. Não, meu bem, a causa é muito mais pragmática. Criar recurso humano sob o controle total, trabalhando de graça, sem folga e sem direitos.

A fé

A história da Rússia é inseparavelmente conectada com a religião de fé ortodoxa. Em 988, o duque de Kiev, Vladimir, admitiu a fé cristã em Constantinopla. Na época de Pedro, O Grande, a igreja foi subordinada ao domínio do imperador e tornou-se parte do aparato estatal. Os padres prestaram juramento como militares. Depois da revolução, a igreja separou-se do Estado oficial, perdendo os bens. Começou a perseguição aos sacerdotes e a propaganda do ateísmo.

Hoje em dia, a Rússia é país de vários credos. A fé ortodoxa predomina. Os ex-ateístas se batizaram na fé, mas temos poucos que abriram a Bíblia ou o Corão. Entramos na igreja para colocar vela, sentir algo superior, dar descanso para a cabeça.

Comida, cozinha

A peculiaridade da cozinha russa é ser determinada não só pelo clima, mas também pela fé ortodoxa. Além dos limites do clima, necessidade de conservar os produtos, acumular e guardar por meses, existia a necessidade de jejuns (provavelmente por causa dessas razões), quando era proibido consumir qualquer forma de proteína.

Assim, nossa cozinha é muito rica com as receitas à base dos grãos, cereais, raízes, cogumelos e itens da floresta. Temos a forma certa para conservar legumes em xarope e folhas com sal, que ainda melhora o gosto e aumenta os benefícios do produto básico.

Caráter e entretenimento

Vocês vão dizer: “Aha! Agora vejo por que os russos são tão sérios, frios, fechados. Todos complicados e ainda são proibidos de comer carne!”. Eu vou responder: não, sem clichês, por favor! Parecemos carrancudos e sombrios para os outros, mas somos o povo mais quente do mundo! Sim, uma coisa é fazer festa, esquecendo todos os problemas, com calor tropical. E quando se tem -20°C, -30°C, que tal fazer festa na rua? Nós, russos, fazemos.

O tempo das feiras russas começa em novembro. Os contatos por terra passam por dificuldades. Com a cobertura da neve, nossos ancestrais criaram uma rede com numerosos roteiros de trenó. Isso significava a liberdade verdadeira, o que a alma russa sempre desejou! Atravessar as amplidões de neve com uma troika (um trenó de três cavalos) em alta velocidade, encher os pulmões com ar frio, o corpo com força irresistível e a cabeça com uma alegria insuportável.

O frio era amado pelo povo, pois dava um tempo livre e várias diversões. O inverno era a estação de caça, de pesca sob o gelo e de muita diversão para crianças e adultos: descida de ladeira de gelo com trenó, luta de bolas de neve, passeios de esqui.

Nas feiras das cidades passavam performances de circo, de teatro folclórico, competições e, claro, as festas. Por que falo do tempo passado? Para dar sensação do que está no nosso sangue. Era, é, será. Toda vez que sinto as bochechas picadas no frio, os olhos refletidos em milhares de diamantes de neve, brilhando no sol, o coração bate e, no fundo dele, surge o desejo de cantar e gritar de felicidade.

Nossas danças, nosso canto coral, trajes, artesanato, igrejas são fenômenos da expressão de criatividade coletiva. Nada se compara ao pitoresco e à diversidade de nosso folclore. E como é a festa folclórica russa? Vou instigar os baianos dando umas indicações: Festa de Santa Bárbara, Festa de Iemanjá, Lavagem do Bonfim...

É surpreendente a semelhança entre as indumentárias russa/baiana. As cabeças das belas russas e a dos orixás usam coroas de forma bem especial. As formas, as cores, a definição dos elementos seguem a mesma lógica, indissoluvelmente ligadas a rituais antigos. Em russo se chama kokoshnik, por seu emprego sagrado representar a crista de um galo. As formas, enfeites e ornatos de kokoshnik são infinitos, pois encarna tradições de várias regiões. Trajes russos têm inspirado estilistas durante séculos.

Imagem ilustrativa da imagem Frio, Carnaval, vodka e injustiças: russa que mora na Bahia conta como é a vida no país da Copa
| Foto: Foto: David Tolley
Retrato feito à mão de uma menina usando um Kokoshnik. Ilustração: Leon Bakst

Em fevereiro, tem carnaval

Tem Carnaval na Rússia? Tem! Tem maslenitsa. As raízes semelhantes aos carnavais europeus (transferidas mais tarde à América Latina) descendem do tempo pagão. Maslenitsa era um desvio das regras cruéis de fé ortodoxa, entre dois jejuns longos e rígidos. Personifica a chegada da primavera, mas sempre cai na semana mais fria.

A semana inteira a gente come crepes, acompanhados e recheados de formas incontáveis. Lembre-se: os crepes têm que ser comidos sem prato e sem colheres. Por quê? Fixe a vista, meu bem: é um pequeno sol na sua mão que vai deleitar sua barriga e trazer calor em sua vida! O dia culminante é o “domingo do perdão”. Todos pedem desculpas mutuamente. A queima de um espantalho de inverno finaliza a festa.

Vodka

Agora, alguém falará: “Certo, o russo é maluco. Muita vodka!”. Respondo: a consumação dessa bebida durante os séculos era bem limitada, proibida por alguns períodos. O abuso da bebida começou depois da Segunda Guerra Mundial. Foram quatro anos e 26,6 milhões de vidas tombadas. Quem teve a sorte de ficar vivo bebia muito para escapar das lembranças pavorosas de milhares e milhares de companheiros mortos durante os dias, as semanas, os meses de batalhas sem fim.

Sofrimentos e injustiça

Qual é a medida do sofrimento de um povo? O volume das lágrimas? Quantidade de mortos? As contas russas são milhões e milhões e milhões de vidas. Antes de Hitler entrar na Rússia, milhões de pessoas na Europa de vários grupos étnicos, políticos e sociais foram vítimas do genocídio nazista, presos e assassinados em massa no tempo da existência do Terceiro Reich. Inacreditável, mas o mundo aceitou e ocultou-se por quase três anos quando meu povo lutou nos campos de batalha e em retaguarda contra o exército nazista com falta total de armas, de equipamento, de técnica.

Hoje em dia, assistindo ao filme sobre o heroísmo do bancário Schindler, eu digo como a neta dos avós que sobreviveram àquele inferno: nessa guerra absurda, quem resgatou a humanidade foram os soldados russos, com custo de 26,6 milhões de vidas. E eu digo sem qualquer sentido político: salve os milhões de soldados russos que sacrificaram a vida para a vitória do humanismo no planeta Terra! Como os brasileiros, os americanos, os suíços, eles queriam viver, amar, ter crianças. Mas a vida deles foi um preço bem caro para que outros sobrevivessem.

A alma russa

Com séculos de exploração, guerras numerosas, trocas dos regimes e sistemas econômicos, as crises, as perdas-perdas-e-perdas, será que meu povo ainda tem força? Viajei a Moscou em fevereiro na semana que fazia um frio de -25°C. O povo trabalha na rua, vende passagens, chips, ingressos, comida. São bem marcantes os que vendiam sorvete para comer na rua. Assim, eu sei, definitivamente: não se esgota a paciência do meu povo, nem o entusiasmo com a fé em um futuro luminoso.

*Elena Stetsurina, nascida em Kaliningrado, é especialista em Comércio Exterior

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