Menu
Pesquisa
Pesquisa
Busca interna do iBahia
HOME > MUITO
Ouvir Compartilhar no Whatsapp Compartilhar no Facebook Compartilhar no X Compartilhar no Email

MUITO

Gringo Cardia: "O museu, hoje em dia, precisa ser interativo"

Por Luis Fernando Lisboa

19/02/2018 - 10:32 h | Atualizada em 21/01/2021 - 0:00
Gringo Cardia coordenou o projeto da recém-inaugurada Casa do Carnaval
Gringo Cardia coordenou o projeto da recém-inaugurada Casa do Carnaval -

É difícil carimbar Gringo Cardia, 60, com uma definição burocrática. Desde que começou a trabalhar com capas de disco na adolescência, quando ainda morava na cidade gaúcha de Uruguaiana, mantém como foco a liberdade criativa. Assina como cenógrafo, artista gráfico, diretor artístico e traz múltiplas linguagens: dirigiu espetáculos e videoclipes, responde pela imagem de artistas consagrados e foi um dos responsáveis pela reestruturação do Museu da Cruz Vermelha, em Genebra. É essa a mesma abordagem que levou para seu mais recente projeto como curador: a Casa do Carnaval. Planejado e executado em menos de seis meses, o lugar tenta abordar séculos de história da festa. Essa é a segunda vez que Cardia mergulha na cultura baiana: em 2014, foi o responsável pelo projeto da Casa do Rio Vermelho. Sobre a importância desses trabalhos, diz que “é importante ter em mente que estamos contando a história de um povo”. Em conversa com a Muito, ele fala sobre seu processo criativo.

A Casa do Carnaval foi inaugurada poucos meses depois que a iniciativa foi anunciada. Como foi dar conta de um projeto amplo num tempo tão curto?

Quando recebi o convite, falei para o prefeito: “É impossível fazer um museu em três meses”. Pensei bastante e me perguntei: será que vou ter forças para fazer isso? Já fiz vários museus e sei o tamanho do trabalho envolvido num projeto desse. Só que ele me deu um check-mate e disse: “Para mim, só interessa se for assim”. Pensei que ia ter que chamar a Liga da Justiça para resolver a questão [risos], mas decidi fazer e embarcar no sonho. Vivemos tempos tão sem perspectiva no país que ter esse museu é uma luz. Acho que é bacana para todos os estados, vai contagiar muitos lugares. Moro no Rio de Janeiro e vejo como a cultura é tão pouco incentivada ali na cidade. Nesses dois últimos anos, estamos numa espécie de buraco.

O projeto consegue dar conta de que contexto do Carnaval da Bahia?

Esse projeto juntou duas coisas: primeiro, o conteúdo histórico, que é maravilhoso. E, segundo, a explosão visual que é o Carnaval, e é minha área. Na verdade, é um presente ser o tradutor de uma festa que, para mim, é a principal do Brasil. E, na Bahia, é o Carnaval de rua mais visceral, vem da alma das pessoas, digamos assim. Para mim, foi um prazer porque mistura visual, alegria, alto-astral o tempo todo. São só coisas para cima e que gosto mais. Prefiro mostrar esse lado luminoso das pessoas e da sociedade. Aqui, é o museu da alegria brasileira, já que tenta expressar a essência do Carnaval de Salvador. Começamos do desenvolvimento do Carnaval desde o Brasil Colônia até hoje em dia. O visitante vê conquistas, mudanças. É uma festa do povo que acentua as diferenças sociais de uma cidade ou país.

E você já conhecia o Carnaval de Salvador?

Esse vai ser o primeiro ano [risos]. Na verdade, sempre vim à Bahia quando comecei a ser convidado para trabalhar aqui. Todo mundo me chamava para pular. Já fiz trio para Carlinhos Brown, Daniela Mercury, vários camarotes, um monte de coisa, mas nunca vim no Carnaval. Fazia de longe. Tinha até medo do Carnaval da Bahia. Me diziam que engole você, tritura em pedaços. Sempre ficava meio em dúvida [risos]. Mas, agora, não tem jeito. Foi legal mergulhar na festa através da história, conhecimento. Sempre gostei dessa coisa autêntica da rua. Aqui, é uma vibração da rua virar o palco de cada cidadão. Aqui, é um Carnaval efervescente que fica mudando toda hora.

Imagem ilustrativa da imagem Gringo Cardia: "O museu, hoje em dia, precisa ser interativo"

O ingresso para o museu custará R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia). Foto: Adilton Venegeroles / Ag. A TARDE

Sem essa vivência, foi muito importante pensar nos nomes da equipe que assinam a curadoria com você?

A primeira coisa foi juntar o time. Pensei logo em Paulo Miguez [professor da Universidade Federal da Bahia e pesquisador da festa], com quem fiz a Casa de Jorge Amado. Sempre gosto de formar um grupo acadêmico forte para manter ao lado o embasamento de pessoas que conhecem bem aquele conteúdo. Paulo é um cara ligado à questão histórica da festa, numa abordagem humanística, além da paixão genuína pelo Carnaval. [O produtor e músico] Jonga Cunha é outra figura muito importante, mas já no desenvolvimento deste Carnaval contemporâneo: dos tempos do axé até agora. A gente precisava ter um panorama geral de todos esses artistas, apresentando o máximo de pessoas, mas não dá para contemplar todo mundo. Por fim, Bete Capinan é parceria minha de muitos anos, também apaixonada pelo Carnaval. Dos curadores, encabecei a coisa toda, mas os quatro traçaram o esqueletão do que deveria ter.

Você assina a curadoria de museus sobre pilares da história cultural baiana: o escritor Jorge Amado e o Carnaval de Salvador. Qual é a responsabilidade desses projetos?

É uma super-responsabilidade agregar essas questões. Juntar tudo e pensar como vou dar o balanço de cada coisa para que todo mundo se sinta presente. As importâncias devem ser equilibradas. O olhar externo ajuda porque todo lugar que chego sou o gringo [risos]. Como sou estrangeiro em qualquer lugar, essa abordagem me ajuda a ver as coisas de fora. Quando você já está dentro, tem amigos, escolhas internas. Isso não significa afirmar que o olhar externo diz qual é o melhor modo de ser feito. O que faço é reunir as coisas e balanceá-las. Para mim, funciona demais. Não posso ser parcial. O que conta são os elementos da própria história, o desenvolvimento das sociedades, além dos valores éticos e de luta. É importante ter em mente que estamos contando a história de um povo. O Carnaval, por exemplo, foi inventado pelas ruas. Os artistas são tradutores de uma coisa muito maior. Por isso, nesses projetos, é também preciso se associar a pessoas que também tenham visão humanística. Uma visão global de sociedade e transformação. Cada museu, cada história que você faz é uma maravilha porque aprende tudo. E vê as ligações entre os acontecimentos. Meu papel de curador é apresentar: “Olha esse negócio aqui, veja como o Brasil mudou depois do Ilê Aiyê”.

Numa sociedade rodeada por redes sociais, como os museus se manterão relevantes?

O papel de museu é mostrar que cultura pode ser diversão. Quando você faz um museu, precisa pensar que caminho seguirá para fazer com que ele seja divertido para as pessoas, seja lúdico. Esse até que era mais fácil. No caso do Carnaval, só colocar uma sala com música que todo mundo vai dançar [risos]. O museu, hoje em dia, precisa ser interativo. Sempre penso com foco no adolescente. O museu é para todo mundo, mas os adolescentes têm que adorar. Se gostarem, temos aí o legado perpetuado. O jovem vai ficar com aquilo na cabeça, enquanto os mais velhos já estão indo, entendeu? Eles fizeram seu papel, é importante que gostem, só que o mais significativo é que quem vai continuar leve esse conhecimento. Qualquer museu tem que agradar uma criança, ali na faixa dos 13 anos. Às vezes, ela vai acompanhando o irmão maior, e os pais acham a experiência legal porque os filhos gostaram. Claro que também vai ter conteúdo legal para os adultos, mas a linguagem tem que ser para o jovem.

Sua trajetória incorpora múltiplas linguagens artísticas, principalmente a partir do boom audiovisual nos anos 1980. Como essas mudanças tecnológicas foram vividas por você?

Quando eu estava me formando na universidade, aconteceu essa explosão visual no mundo, com computadores e vídeos. Por sorte, vivi esse momento sendo um artista visual. Na época, eu cursava arquitetura, mas também desenhava, criava capa de discos, fazia cenário de teatro. Aí, o pessoal falava: “Você é multimídia”. Hoje em dia essa palavra nem existe mais, já que todo mundo é multimídia. Mas era o começo da coexistência de várias linguagens visuais. Comecei a trabalhar com tesoura e cola, de repente, tinha um computador. Tive que largar aquilo para começar a recortar e montar digitalmente. Nos anos 1980, nasce a vontade de experimentar linguagens novas. Então, fui fazendo vídeo, editando, dirigindo coisas, trabalhando em várias coisas diferentes. Fui abrindo vários ramos da minha profissão audiovisual. A partir dos anos 2000, começa a história dos museus porque mistura cenário, com os vídeos, a parte gráfica, com direção. É legal porque virou uma síntese de tudo que fiz desde os anos 1980 até agora.

Você já criou projetos para artistas dos mais diversos nichos: desde a Companhia de Dança Deborah Colker até Xuxa e Maria Bethânia, de espetáculos teatrais até Daniela Mercury, Marcelo D2 e Skank. Como é trabalhar com perspectivas tão distintas?

Se encontro com a Xuxa de manhã, e, de tarde, com Maria Bethânia, as pessoas perguntam: “Como é que você consegue?”. O mais importante, na verdade, é respeitar as pessoas. O artista é a expressão de um público, ele representa alguém. Aprendi isso e que, na verdade, você não pode ter preconceito. Tenho preconceito com coisas desonestas, corruptas e ilegais. Tem gente que sai dizendo “isso é brega” ou “isso é comercial”. É? Não sei, vamos ver. É claro que, no início, fazia todo tipo de coisa porque estava no começo. Mas quando já estava estabelecido, em 1998, quando o Leandro morreu, Miguel Falabella me chamou para criar, junto com ele, o show solo de Leonardo. Meus amigos me perguntaram: “Você vai fazer sertanejo?”. Pode ser brega para alguns pessoas, mas o artista tem o valor e a verdade dele.

Nessa diversidade, é possível manter sua assinatura como artista e designer gráfico?

Me deixo incorporar pela história da pessoa para que eu possa traduzir de uma maneira que agregue algo contemporâneo àquilo. Meu papel é de comunicador. Trabalho com vários artistas expressando a imagem deles. É como eles vão se apresentar para o público. Então, é preciso parceria, amizade e não ter preconceitos. No começo da carreira, quando ninguém sabe quem você é, tem que engolir pedregulho para fazer seu trabalho. Quando ganhei reconhecimento, comecei a pensar minha participação em projetos de pessoas que confiam em mim. Não vou mudar o artista, dar uma roupagem totalmente diferente. Na verdade, trago todos os elementos que aquela pessoa tem na essência, só que agrego meu olhar. Faço um enquadramento. É psicanalítico, sabe? Escuto bastante antes de apresentar um projeto. Faço uma versão, não gostou, proponho a segunda. A terceira não existe. É porque não há sintonia. Graças a Deus, hoje em dia, fico sempre na primeira. Sou amigo de mãe Stella de Oxóssi e, numa conversa, ela me disse: “Sua profissão é igual à minha. Somos dois feiticeiros”.

Já pensou em trabalhar com publicidade?

Nunca gostei. Não por uma questão de ética. É porque não tem a ver comigo mesmo. Já tentei, me chamaram várias vezes, mas não dá. Sou muito ligado à parte artística, que é algo onde vejo mais liberdade. Para mim, essa palavra é fundamental. Se você tem liberdade de expressão, pode fazer qualquer coisa. Quando vou trabalhar com alguém, pergunto: vai me dar liberdade? Porque quando alguém fica dizendo “faça assim”, “faço assado”, é melhor fazer por conta própria. Me chamou por quê? Tem muita gente que só quer a assinatura num trabalho já pronto.

A escola técnica de artes com Marisa Orth veio para atender a alguma inquietação pessoal?

No Brasil, nossa revolução virá pela educação das pessoas de uma maneira consistente, com qualidade e profundidade. Os museus ajudam muito. Lançam uma fagulha do conhecimento. Como é a gente pode contribuir? Não adianta ter sorte, você tem que dividir. É preciso fazer alguma ação aqui. Viajando pela Índia, eu e Marisa tivemos a ideia de montar a escola numa área em que temos influência porque podemos abrir caminhos para muita gente. Escola, hoje em dia, tem que ser alguma coisa ligada a trabalho. O jovem é cobrado para ser produtivo e, rapidamente, ter dinheiro. A família pobre já quer que o garoto traga dinheiro amanhã, então, não faz faculdade e vai trabalhar em qualquer coisa. Os jovens me procuram sempre porque veem como uma referência visual, mas quero que essa referência funcione como um atrativo para ele se educar. Hoje em dia, o mundo quer profissionais múltiplos. Profissionais que saibam fazer muitas coisas. A gente pensou a escola para dar uma iniciação na arte, uma profissão técnica e, rapidamente, colocar ele trabalhando. Já passaram mais de dois mil alunos por lá.

Eles aprendem que é possível viver, profissionalmente, de arte no país?

É bem difícil viver artisticamente, seja no Brasil ou em qualquer lugar do mundo. É uma coisa difícil porque apenas alguns são escolhidos, entendeu? Então, na verdade, você tem que diversificar. Pode trabalhar com arte, mas tem que ter um guarda-chuva maior. Como vim de família pobre, nunca quis ter apenas uma profissão. Queria ter umas cinco. Eu pensava assim: se essa aqui der ruim, pulo para outra.

Sua parceria com grupos que trabalham com inclusão social de jovens, como Afro-reggae e Central Única das Favelas (Cufa), também indica essa preocupação com a educação?

Minha vontade de participar sempre foi grande. Através da influência visual que tenho, procurei dar voz a coisas que não estão sendo ouvidas. É o que mais me motiva: trabalhar com grupos que, às vezes, não sabem se representar de uma maneira forte. Por isso, me juntei ao Afro-reggae, pensando em como íamos apresentar aquelas ideias nos shows. E também estive dez anos com a Cufa, fazendo a imagem das periferias com essa força importante. É o tipo de trabalho delicioso de fazer porque você aprende. A gente fica mais velho e só faz o tipo de coisa que dizem: “Ah, você é especialista nisso”. Não quero ser especialista em nada, quero aprender enquanto estiver vivo.

Casa do Carnaval | Praça Ramos de Queiroz, s/nº, Pelourinho, Salvador - Bahia. Aberto de terça a domingo, das 11 às 19h. O espaço vai funcionar gratuitamente até o final do mês. Para visitar, é preciso agendar pelo telefone 71 3324-6760.

Compartilhe essa notícia com seus amigos

Compartilhar no Email Compartilhar no X Compartilhar no Facebook Compartilhar no Whatsapp

Siga nossas redes

Siga nossas redes

Publicações Relacionadas

A tarde play
Gringo Cardia coordenou o projeto da recém-inaugurada Casa do Carnaval
Play

Filme sobre o artista visual e cineasta Chico Liberato estreia

Gringo Cardia coordenou o projeto da recém-inaugurada Casa do Carnaval
Play

A vitrine dos festivais de música para artistas baianos

Gringo Cardia coordenou o projeto da recém-inaugurada Casa do Carnaval
Play

Estreia do A TARDE Talks dinamiza produções do A TARDE Play

Gringo Cardia coordenou o projeto da recém-inaugurada Casa do Carnaval
Play

Rir ou não rir: como a pandemia afeta artistas que trabalham com o humor

x