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Guias de turismo: oito horas para mostrar cinco séculos da história de Salvador
Por Alessandra Oliveira

Se começarmos a contar somente desde a colonização portuguesa, Salvador tem mais de meio século de história. Para ajudar os visitantes e os nativos (por que não?) a conhecer esse passado, há cerca de 380 guias de turismo credenciados na capital, segundo o sindicato da categoria, Singtur-Ba. A cidade concentra a maioria dos 800 profissionais cadastrados no estado, seguida por Porto Seguro, com quase 300 deles.
“Conhecer um local histórico sem um guia é como entrar em um lugar escuro sem lanterna”, equipara Roberto Pessoa, 61. O professor de história aposentado segue a carreira turística desde 1979, com habilitação para atuar no exterior.
Na última terça, orientou quase 40 pessoas desembarcadas de um navio vindo do Rio. O roteiro contratado foi o Full Day (“dia inteiro”, em português), saindo do Mercado Modelo, passando pelo Farol da Barra, Pelourinho, Basílica do Senhor do Bonfim e terminando no Memorial Irmã Dulce.
Para cumprir todas as paradas são necessárias, no mínimo, oito horas. Além da boina e dos óculos escuros para se proteger do sol, é preciso beber muita água para falar quase ininterruptamente. “Um cafezinho também ajuda”, indica.
Os roteiros menores, de 1h, 2h ou 4h, são chamados de Walking Tour (“passeio a pé”, em português), a exemplo do Romântico, que privilegia praias; Pedagógico ou Educacional, voltado para instituições de ensino; e o Religioso, que prioriza igrejas e tem aumentado desde a canonização da santa Irmã Dulce, em outubro de 2019.
Tudo, claro, pode ser recombinado com os clientes, que, em sua maioria, ainda preferem conhecer o Centro Histórico, cujas ruas de pedras irregulares “nos ensinam a dançar axé”, brinca Roberto.
Para entreter o grupo, ele se vale de cantar Na Baixa do Sapateiro, de Ary Barroso, e até criar uma árvore genealógica com estilos artísticos e arquitetônicos, onde o Barroco é o pai do Neoclassicismo.
Como autônomo, embolsa R$ 250 por meio turno de trabalho e R$ 350 por um turno inteiro.
No Pelourinho, conta com a ajuda do vendedor de acessórios, Alex, 32, que conheceu trabalhando na região há 15 anos e a quem chama de filho. Ele segue ao fundo do grupo guiado por Roberto, atento a detalhes, como o sapato desamarrado de uma turista e um carro que ia passando rente à outra.

A parceria dura o ano inteiro, com cerca de três tours semanais. Para manter a média na baixa estação, o historiador guia passeios com grupos formados por baianos. “São moradores do Horto Florestal, Vilas do Atlântico, que querem conhecer a cidade”.
Ele explica que os brasileiros demoraram a aderir ao serviço de guia, comumente contratado pelos estrangeiros. Agora, apela para “os baianos conhecerem a Bahia”.
A maior demanda de brasileiros pode ser notada pelo grande volume com que chegam na capital em julho, período de férias escolares no sul do país. Por conta do fluxo, o período é considerado alta estação pelos guias de Salvador, segundo a presidente do Singtur-Ba, Rivanete Rodrigues, 66.
À frente do cargo desde o ano passado, ela é credenciada como guia a nível América do Sul há 15 anos. Pedagoga aposentada, prefere organizar passeios escolares, mas também aceita o chamado de hotéis parceiros da região do Litoral Norte, que acabam compensando os períodos de menor movimento em Salvador.
Para 2020, aposta que o novo Centro de Convenções, inaugurado em janeiro, alavanque o fluxo do turismo de negócios. “Quando alguém vem para um evento, um congresso, sempre quer ficar mais um pouco e conhecer a cidade”.
A chegada de visitantes atrai a atenção de vendedores de produtos e serviços diversos. Alguns convivem bem e até ajudam os guias, como faz Alex com Roberto. Outros, de acordo com a presidente, “assediam o turista de maneira abusiva, principalmente quando ele está sozinho, como aquelas ciganas na frente do Mercado Modelo e esses pintores tribais”.
Para tomar nota de irregularidades como assédio a turistas, a Secretaria de Cultura e Turismo (Secult) realizou três edições da Blitz do Turismo em pontos estratégicos da cidade. Mês passado, em um dia de supervisão, foram contabilizadas 30 infrações na Barra.
Além da postura invasiva, Rivanete diz que alguns deles e “muitos motoristas de Uber, táxi, e van fazem guiamento sem estarem habilitados”. “Eles levam os turistas para locais perigosos, que não conhecem porque não estão ali no dia a dia”.
Para se legalizar como guia, é preciso fazer um curso técnico. Em Salvador, o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) oferece a formação por R$ 6 mil, se somadas as mensalidades.
As aulas abarcam desde orientações simples de convivência, como evitar temas polêmicos (política, religião), até técnicas de primeiros socorros. Foi lá que todos os guias que conversaram com o A TARDE se formaram.
Com o diploma em mãos, é preciso manter atualizado um cadastro com validade de cinco anos no Ministério do Turismo, o Cadastur, através da Secretaria de Turismo de cada estado. A habilitação pode ser regional, nacional/América do Sul ou internacional.
É a primeira vez?
A reivindicação pelo reconhecimento como categoria é um discurso constante entre os guias. “Tem coisa mais linda do que ver um colega trabalhando com esse crachá?”, repete Irã Lima, 58, exibindo com orgulho o comprovante do Cadastur que carrega no pescoço.
Ele se formou como guia regional em 2002 e, desde então, já trabalhou em Salvador, Itacaré, Ilhéus e Porto Seguro. Costuma ficar pelo Largo Terreiro de Jesus abordando os turistas com uma apresentação mais ou menos assim: “Bom dia, boa tarde. É a sua primeira vez? Estou aqui para apresentar minha cidade”.
No verão, consegue, em média, dois tours por dia, com duração de 1h30. O preço começa em R$ 150 para casais, mas, se o grupo for de 20 a 30 pessoas, o valor cai para R$ 10 cada. O ganho cresce se os visitantes comprarem nos locais em que recebe comissão.
A intimidade com que desfila no Pelourinho é fruto de uma relação que vem da infância. “Ana, como você está? Na paz?”, cumprimenta a lojista parceira. Poucos metros depois, fala com dois PMs do 18º Batalhão, com quem os guias têm um grupo no WhatsApp.
Aos 12 anos, Irã já orientava turistas pelas ruas de centro. “Sempre foi uma alegria saber e partilhar um pouco da nossa cultura”, conta.
A coisa ganhou cara de trabalho quando, em 1981, entrou para a Associação dos Guias e Monitores de Turismo (Agmtur-Ba), onde permaneceu até 2002, até pegar o diploma no Senac.
A associação surgiu há cerca de 40 anos, antes da regulamentação da profissão de guia de turismo, prevista na lei nº 8.623, de 1993, e da Portaria MTur nº 27/2014, que restringe a atuação de monitores ao limite de “locais de interesse cultural”, como museus, monumentos e prédios históricos.
A Agmtur-Ba, porém, considera que seus monitores podem atuar em todo o Centro Histórico de Salvador, incluindo o desembarque do Ferry Boat e o Moinho Salvador, na saída do túnel Américo Simas. Com base nesse entendimento, calculam que há cerca de 70 desses prestadores de serviço na capital.
Turistas e baianos
Seguindo as determinações legais, há dois anos o Parque Social criou o Programa Jovem Monitor, com financiamento da Prefeitura, para capacitar jovens formandos ou recém-formados do segundo grau em escolas públicas. Desde 2017, 134 deles concluíram o curso, que está com inscrições abertas.
Edvaldo Gomeia, 45, credenciado nível América do Sul desde 2014, é associado ao Singtur e a Agmtur, onde ingressou primeiro. Enquanto não tinha o dinheiro para pagar o curso do Senac, se dividia entre o trabalho monitor e o de “consultor na área de saúde”, segundo seus próprios termos.
Na ocupação, mantida até hoje, leva turistas e baianos para fazer exames clínicos em Salvador. Agora, tem sua própria agência, onde trabalham ele e a esposa. O preço de um passeio de 2h para duas ou três pessoas sai por R$ 150.
O roteiro é montado ao gosto dos clientes, mas, sempre que pode, inclui no percusso uma visita à senzala do Museu da Ordem Terceira do Carmo e ao Museu Afro-Brasileiro.
A paulista Eni Pantalhore, 57, guiada por Edvaldo, veio a Salvador pela terceira vez, justamente, em resposta a um chamado da ancestralidade. “Conhecer essa cidade é como revê-la. Me sinto com os ’pé no chão, como se já tivesse passado por aqui”, se emociona.
Edvaldo garante que Eni é do tipo “Turista 1000” e explica a diferença da categoria para a de “Turista 10”: “O 10 é um qualquer, desinformado, deselegante. O 1000 é o que se envolve, pergunta, que entende a importância do guia”.
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