OLHARES
Há fogo, há ferro, há Zé Adário
José Adário dos Santos é ferreiro e fabrica esculturas destinadas aos ritos do candomblé
Por Luiz Freire*
Considerável avanço tecnológico aconteceu na história da humanidade com o domínio do ferro, metal mais duro que o bronze. Encontrado com maior abundância na natureza, prestou-se ao fabrico de inúmeras ferramentas, como o arado, facilitando a agricultura e o corte de vegetais de todo porte. Através da forja, o ferro é submetido a altas temperaturas ganhando maleabilidade e tomando as formas intencionais dadas pelos profissionais especializados: ferreiros e serralheiros, através de sucessivas marteladas. Fogo, calor, força, suor e riscos compreendem essa indústria.
Se os povos originários viviam muito bem nessa terra, sem o domínio do ferro, os colonizadores portugueses e, principalmente, os povos africanos, já conheciam e se beneficiavam dessa indústria, sendo indispensável às atividades cotidianas e demais fábricas.
Entre os povos de língua Iorubá, “Ogum é o Deus do ferro, dos ferreiros e de todos aqueles que utilizam esse metal: agricultores, caçadores, açougueiros, barbeiros, marceneiros, carpinteiros, escultores [...]” (Verger, 1981, p. 87).
“Ogum dá aos homens o segredo do ferro. Em Ifé, o aumento da população impôs o alargamento da área agriculturada. Para tanto, os demais Orixás tentaram derrubar as árvores com seus instrumentos de pedra, madeira ou metal mole. Quando todos os orixás tinham fracassado, Ogum pegou seu facão de ferro, foi até a mata e limpou o terreno. Os Orixás admirados procuraram saber de Ogum de que material se tratava. Ogum respondeu que era ferro, um segredo recebido de Orunmilá. Os Orixás invejavam Ogum pelos benefícios que o ferro trazia, não só à agricultura, como à caça e até mesmo à guerra. Por muito tempo os Orixás importunaram Ogum para saber os segredos do ferro, mas ele não cedia. Ofereceram-lhe em troca o reinado, e só então a forja passou a ser do domínio de Orixás e humanos. Mesmo tendo aceitado a liderança dos Orixás, Ogum era caçador e ausentou-se muitos dias para caçar, retornando sujo e maltrapilho, contrariando os Orixás, que o destituíram do reinado. Decepcionado, Ogum banhou-se, vestiu-se com folhas de palmeiras desfiadas, pegou suas armas e partiu. Em Irê, construiu sua casa embaixo da árvore de acocó e lá permaneceu. Os humanos que receberam de Ogum o segredo do ferro não o esqueceram. Todo mês de dezembro, celebram a festa de Indê-Ogum. Caçadores, guerreiros, ferreiros e muitos outros fazem sacrifícios em memória de Ogum. Ogum é o senhor do ferro para sempre.” (Prandi, 2001, p. 86-88).
José Adário dos Santos é herdeiro direto dessa tradição, neto da Ialorixá Bárbara do Sacramento e bisneto de Antônio, de quem recebeu a filiação a Ogum. Em 1958, aos 11 anos de idade, seu tio materno o conduziu à oficina do mestre Maximiano Prates, no arco 18 da Ladeira da Conceição. Aí se profissionalizou no ofício de ferreiro e serralheiro fabricando portões, grades, agogôs e esculturas destinadas aos ritos do candomblé. Recebeu a alcunha de “Zé Diabo” ao levar esculturas de Exu para abastecer o Mercado Modelo.
Decerto que na faina diária concebeu e executou muitas obras de arte em forma de gradis de ferro, pois desde o século XIX a demanda por essas peças cresceu bastante, fomentada pela abertura dos portos em 1808 e a imposição mercadológica da metalurgia inglesa. Balcões, balaustradas, antes de jacarandá, foram substituídas, ou feitas de ferro forjado pelos inúmeros serralheiros estabelecidos na Bahia, não esquecendo de outras peças como aldrabas, espelhos de fechadura, puxadores e acessórios vários para o mobiliário. Peças tradicionalmente elaboradas a partir de modelos tradicionais, sujeitas as variações estilísticas e soluções criativas. Dilberto Assis estudou O gradil de ferro em Salvador no século XIX (2003) e constatou a grande quantidade de negros dedicados aos ofícios ainda no século XX e nos remanescentes do século XXI.
Não se conhece essa produção de Zé Adário, ou pelo menos não houve interesse em conhecê-la. O artista se notabilizou pelas ferramentas produzidas para fins religiosos, destinadas aos assentamentos dos Orixás, imprescindíveis aos cultos afro-brasileiros. Um conjunto representativo dessa obra está exposto na Caixa Cultural Salvador até o dia 3 de dezembro, com o título Alágbedé - Retrospectiva José Adário dos Santos, sob a curadoria da produtora cultural Alana Silveira.
Nessa retrospectiva, o visitante é conduzido a penetrar no mundo laboral do artista através de seus equipamentos de trabalho e de fotografias assinadas por artistas da grandeza de Adenor Gondim, Pierre Verger, Arlete Soares, Voltaire Fraga, entre outros, cujas imagens remetem à presença do artista, ao seu local de trabalho e aos demais cenários de seu cotidiano.
As esculturas distribuem-se em blocos nas salas seguintes, apresentadas sobre bases cobertas com elementos condizentes com o domínio dos orixás: folhas, pedras, barro, areia. Cada peça consubstancia elementos e seres próprios de cada orixá, representados em linhas econômicas, retas ou sinuosas, em absoluta simetria.
Para os iniciados, a decodificação flui, compreendendo o significado de cada estrutura compositiva e de cada elemento que as compõem, relacionando-as às divindades do panteão afro-brasileiro, dispensando a leitura dos títulos. Entretanto, a ausência do conhecimento religioso não impede a apreensão da forma, das composições, do equilíbrio, das recorrências, do ritmo, das repetições, dos movimentos, das direções e dos componentes reconhecíveis, indicativos do complexo universo simbólico ancestral e do sentido de ordem.
Constitui-se em linguagens universais de comunicação direta em que a leveza das estruturas contrapõe-se ao peso do material em um virtuosismo técnico e estético. Formas funcionais como as lanças atuam em uma codificação de diferenças e similaridades, nas armas, nos gradis, nas ferramentas dos Orixás. Os títulos dão pistas acerca dos fundamentos das deidades e das funções rituais motivadoras das concepções em que as tradições do coletivo são conjugadas às variações criativas da expressividade particular.
Figurações de Exu, que lhe valeram a alcunha de “Zé Diabo” demonstram a intensidade do “religare”, da energia intercessora encetada pelo tridente erguido para cima e pelo falo riste dirigido ao observador. Tridente, lança, espada, pontas são ferros representando ferros, toda força e poder proporcionado por esse domínio tecnológico.
Anos atrás, projeto insensato da gestão pública municipal pretendia reformar os arcos da Ladeira da Conceição para que neles fossem instalados oficinas de residência artística. Parte da comunidade protestou, afirmando que nesses arcos sempre houve oficinas, arte e artistas, afinal é de lá que Zé Adário fala em ferro para o mundo.
*Doutor em História a Arte, professor da Escola de Belas Artes (Ufba) e museólogo | [email protected]
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa necessariamente a opinião de A TARDE
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