ABRE ASPAS
Haroldo Borges: "Encaramos o prêmio como reconhecimento"
Confira o Abre Aspas da revista Muito deste fim de semana
Por Gilson Jorge
No próximo domingo, 19, acontece o segundo turno da eleição presidencial argentina, entre o peronista Sérgio Massa e o candidato de extrema-direita Javier Milei. E esse é um dado muito relevante para o cineasta baiano Haroldo Borges, integrante do coletivo Plano 3 Filmes, responsável pela nova sensação do cinema nacional, o filme Saudade fez morada aqui dentro. A obra, que conta a história de um adolescente portador de doença degenerativa que o cega gradualmente, é uma metáfora ao apoio popular a Jair Bolsonaro, aliado político de Milei. Borges está na Argentina, onde encerra hoje sua participação no júri do Festival Internacional de Cine de Mar del Plata, onde Saudade... começou o sucesso no ano passado e que, no último dia 1º de novembro, no encerramento da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, venceu a primeira edição do Prêmio Netflix. A plataforma vai disponibilizar o filme no catálogo de mais de 180 países. Em inglês, o longa se chama Bittersweet Rain. Borges integra o coletivo Plano 3 Filmes, um grupo de amigos formado durante a graduação em Comunicação Social pela Universidade Católica do Salvador, que se associou para trabalhar no audiovisual. De Mar del Plata, Borges conversou com A TARDE sobre o sucesso do filme, o trabalho com os amigos da Plano 3 Filmes (Ernesto Molinero, Marcos Bautista e Paula Gomes) e a dinâmica das gravações.
Um aspecto fundamental de Saudade fez morada aqui dentro é o roteiro ser aberto a mudanças. Uma coisa de deixar fluir a narrativa. Como vocês chegaram a esse modelo?
Sim, o filme tem essa característica que chama a atenção, que é a construção do roteiro. Tanto é assim que nós fomos convidados a participar do Frapa, o Festival de Roteiro Audiovisual, que acontece agora em novembro. Eles ficaram muito curiosos com a maneira como a gente construiu o roteiro do filme. O filme teve essa etapa do roteiro literário que a gente conhece. Mas como trabalhamos com atores não-profissionais, os garotos que são todos ali da região onde filmamos, não demos o roteiro para eles lerem. Nem para eles, nem para os profissionais. Ninguém leu o roteiro. A gente ia apontando para eles, cena a cena, o que ia acontecer. Isso para trabalhar improvisação, para trabalhar o vocabulário deles, e um pouco da tradição de oralidade do Nordeste, que é muito forte. A gente trouxe isso para o filme. E depois, na montagem, reconstruímos o filme, tínhamos filmado bastante, horas e horas. É uma ficção, mas a montagem foi feita como um documentário. Muita coisa que acontecia nas filmagens íamos incorporando à história. Os dois atores que interpretam irmãos não se conheciam, se conheceram ali na filmagem. Mas tem uma química ótima entre os dois, todo mundo acredita que eles são realmente irmãos. E eles não sabiam absolutamente nada do que ia acontecer e isso fazia com que eles estivessem mais presentes em cena. E íamos filmando o máximo que a gente conseguia na ordem do roteiro. Bruno sabia que ia ficar cego, mas não sabia o que aconteceria no final. Nenhum deles sabia. A experiência é como se a gente realmente estivesse fazendo um documentário. E a produção do roteiro se dá realmente nas três etapas de criação do filme.
Você está na Argentina, que tem uma tradição de bons roteiros. O filme foi premiado em Mar del Plata no ano passado e este ano você participa do júri do mesmo festival. Conte sobre a recepção que o filme teve por aí. O que considera que são os pontos altos do filme?
Sim, eu estou no júri da competição de filmes argentinos. A estreia mundial de Saudade foi aqui em Mar del Plata. E foi uma estreia extraordinária, tivemos a alegria de ganhar o festival. Foi sensacional, uma maravilha. Ganhamos o Prêmio do Júri, que é o mais cobiçado; o Prêmio Astor Piazzolla de melhor longa-metragem e o Prêmio de Melhor Filme pelo voto do público. O que é difícil em um mesmo festival. Foi uma estreia maravilhosa, é um festival incrível, com um público ativo, que ama o festival e é apaixonado por cinema. Um público muito variado na faixa-etária. Nós ficamos encantados. Foi uma grande première. Depois, nós circulamos muito com o filme. Estivemos no Festival de Málaga, na Espanha, onde ganhamos o prêmio de montagem. Fomos para a China, Índia, Países Baixos. Conseguimos estrear comercialmente no México, onde o filme está na sexta semana em cartaz. Aqui no Brasil ganhamos a mostra Novos Rumos do Festival do Rio. E agora, na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, ganhamos os prêmios Netflix e Paradiso. Sobre o ponto alto do filme, a gente viu uma coisa aqui na Argentina. Apesar de o elenco ser adolescente, o filme conversa com o público adulto. Porque apesar de tratar das dificuldades adolescentes, como as paixões fulminantes, fala de esperança. Mesmo com a questão da cegueira do protagonista, o filme aponta uma luz. É um filme que nasceu para falar desses anos terríveis que a gente viveu de obscuridade. Uma das coisas mais terríveis que a gente viveu, que eu pelo menos vivi, foi ver familiares e amigos torcendo por um governo fascista. Era como se tivesse ocorrido uma epidemia de cegueira. A gente tinha essa possibilidade de usar a cegueira do personagem como uma metáfora. Acho que essa metáfora foi bem recebida. E por sorte conseguimos superar esse processo. Mas a Argentina está nos momentos finais de tomar essa decisão, uma coisa muito parecida com o que vivemos.
O ator Bruno Jefferson está muito empolgado com sua carreira no cinema. O que fazer para que sua carreira tenha continuidade? Jovens que fizeram sucesso em filmes como Pixote e Cidade de Deus acabaram no ostracismo. Há essa preocupação com o futuro dele?
Esse é o segundo filme de Bruno, que participou também de Filho de Boi, que nós filmamos também em Poço de Fora (Distrito de Curaçá), com outros meninos. Ele era um garoto que se destacava muito. A gente o guardou na memória e quando voltamos e o entrevistamos novamente, ele tinha muita vontade de fazer o filme. Durante as oficinas que fizemos, ele se colocava primeiro para se apresentar, se colocava à frente. E foi assim durante todo o processo, é um garoto muito lúcido. Sobre o futuro dos atores que trabalham conosco, essa é uma preocupação grande que temos desde Jonas Laborda, que fez Filho de Boi. Ele era apaixonado por circo e depois se apaixonou por cinema. Ele trabalhou com a gente nos dois filmes, como ator e também na equipe de câmera. Em Saudade, ele está na equipe de fotografia. João (João Pedro Dias) não tinha interesse, a gente chegou a oferecer alguns cursos de teatro, mas ele não quis. Acontece. Outro menino queria fazer Saudade, mas agora é jogador de bola. E o Bruno sempre se mostrou interessado. Deixamos muito claro o que é o filme, o que a gente está fazendo, para não criar uma expectativa do que vai ser. O cinema pode ser muito perigoso nesse sentido, de criar uma ilusão. É uma atividade que é uma aventura, a gente não sabe muito bem o que vai acontecer. E eu acho que é legal encarar isso. Tentamos trazer isso para todo mundo. Tem que ser bom ali, naquele momento que estamos fazendo, pela existência do próprio filme. O que isso traz de bom para a nossa vida, em termos de autoconhecimento, de conhecer outras pessoas, de ter novas experiências, de fazer o filme e depois vê-lo. Fizemos uma exposição de Filho de Boi em Poço de Fora e foi maravilhoso. Tentamos fazer com que as expectativas sejam atendidas na própria realização do filme.
Como funciona o cinema coletivo da Plano 3 Filmes? A gente tem sempre presente a ideia do cinema autoral ou da grande indústria, que segue fórmulas de sucesso. Como surgiu essa ideia de trabalho em grupo e como vocês se inserem na cinematografia?
A Plano 3 Filmes é essa trupe. Esse coletivo de cineastas. Nós fomos colegas de faculdade e naquela época fizemos os nossos primeiros curtas. Fomos fazendo filmes, viajando, estudando cinema, buscando os caminhos possíveis para fazer filmes. Ainda na época do negativo, era muito mais difícil fazer cinema. E a possibilidade de uma arte coletiva, você precisa de uma equipe para fazer um filme. A gente foi ficando junto e deu certo. Somos muito amigos, muito próximos, e essa amizade é importante para a feitura do filme. Tentamos estender essa amizade ao restante da equipe, ao elenco, a toda equipe que trabalha na filmagem e na pós-filmagem. Acreditamos muito nesse modelo de equipe pequena, na aventura de não saber muito bem onde vai terminar a história.
O contrato com a Netflix deve abrir portas. Quais são os projetos que vocês têm em mente e como manter essa prática do roteiro em aberto no mercado de streaming?
A Netflix foi uma grande surpresa, uma alegria. É a primeira edição desse prêmio na Mostra de São Paulo e a gente ficou numa felicidade enorme porque é uma mostra riquíssima, com os melhores filmes do mundo e a gente teve esse prêmio. É um prêmio que encaramos como reconhecimento, como a possibilidade de compartilhar esse filme com muito mais gente. Ficamos felizes porque é um filme nosso, da Bahia. Tem nosso vocabulário, nosso jeito de ser. O filme traz um retrato do sertão um pouco diferente. Um sertão contemporâneo, das relações afetivas. E a gente não vê muito isso na tela. Acho importante estar em uma plataforma como a Netflix. Sobre as expectativas, não sei. A gente tem que tomar cuidado. Não sabemos o que vai acontecer. Estamos felizes agora. Planejamos lançar o filme, vai haver uma ajuda para a distribuição nos cinemas.
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