MUITO
Herança do sabor: o lugar das memórias e receitas de família
Por Bruna Castelo Branco

"Almoço de Dia das Mães é como voltar aos peitos da velha. Foi dali que veio a nossa primeira alimentação”, diz o historiador e antropólogo Jaime Sodré, 74 anos, sobre o tradicional segundo domingo de maio. Filho de mil mulheres, como Iemanjá, mãe Stella de Oxóssi e a mãe que lhe deu à luz, dona Hilda, ele sustenta que essa data só faz sentido se for celebrada em casa. “Antigamente, a mãe ia para a beira do fogão e chamava a filha para ficar apreciando. Esse era o único patrimônio que a gente herdava, enquanto pobre, na nossa família: como aproveitar integralmente cada alimento e permanecer naquela receita que vem lá da bisavó”.
Para ele, que aprendeu a cozinhar assistindo a dona Hilda, hoje com 92 anos, o banquete de domingo é como uma volta aos tempos em que éramos amamentados e guardados pela mãe. Por isso, nem pensa em levar a genitora para almoçar fora. “No dia, a mãe geralmente faz uma comida para abrigar os filhos e aqueles que vão sendo adquiridos, como a nora, cunhada, netos. Ela prepara um prato que geralmente já faz há muito tempo, se dá ao luxo de sair dos seus cuidados pessoais para cozinhar para aquele povo. Quem não tem mãe vai comemorar com a sogra, quem não tem sogra, com a madrinha, sempre homenageando o ato de se alimentar com afeto”.
Na família Sodré, como em muitos lares baianos, a preparação do prato de cada dia é ritualística. “Como tudo na Bahia é negociado na mesa”, diz ele, o cardápio semanal era planejado com cuidado, começando pelos domingos. “É o dia em que fazemos comida para atender a multidão que vai comer na casa de mamãe. Normalmente, é o feijão da criatura”.

Avançando para a quinta, o prato principal da infância de Sodré era o cozido. “É o dia de Oxóssi, o rei da culinária de cozidos, verduras, quiabo”. Na sexta, todo mundo já sabe: na Bahia, não falta o azeite de dendê, especialmente nas sextas-feiras santas. “Enquanto a igreja apela que se faça o jejum, nós fazemos um exibicionismo alimentar”.
Bolachinhas
As sobremesas, em particular as bolachinhas de goma, eram outro ponto forte da matriarca Sodré e geravam burburinho entre os pequenos. “A briga lá em casa era para ver quem ficaria com o que sobra na panela. A gente nem fazia questão da bolachinha, fazia questão do resto”. Segundo o antropólogo, as origens desse hábito vão além da simples competição entre irmãos. “O sabor muda depois que assa. E também é uma herança da escravidão. Os filhos dos escravos só podiam comer o que sobrava da casa-grande. As mães, vendo os filhos passando vontade, faziam sobrar um pouco mais nas panelas”.
Há gostos, texturas, cores e aromas que só encontramos na casa da nossa mãe. Mabel Velloso, 84 anos, filha de dona Canô, volta a Santo Amaro toda vez que planeja preparar um prato especial. “Não tem jeito, tudo de lá é mais gostoso. O azeite de dendê e o camarão não tem outro igual. Farinha, eu só compro lá”, revela. Quando possível, volta à casa da infância para eventos festivos, como aniversários, Natal e outros feriados santos, sempre regados a muita comida. “A comida nos une como família. Pelo menos nesses momentos tentamos sentar todos juntos, conversar, comer. Na correria do dia a dia, não conseguimos fazer isso sempre, almoçar em família”.
Na culinária dos Velloso, as invenções gastronômicas de dona Canô ainda são as protagonistas dos encontros. Nos domingos de Dia das Mães, ela quase sempre servia feijoada e maniçoba, pratos pesados e fartos para a quantidade de gente que fazia questão de passar a data com ela. “Tinha que se fazer comida gostosa e em quantidade grande. Hoje, continuamos assim. Herdamos isso de minha mãe”.
Preocupada em perder a herança gastronômica da matriarca, que cozinhava apenas com os sentidos, Mabel decidiu resgatar suas receitas num livro, O Sal é um Dom: Receitas de Mãe Canô, lançado em 2015. Graças aos incansáveis ensinamentos da mãe, a filha garante que sabe fazer vários pratos iguaizinhos aos dela, sem tirar nem pôr. “Minha maniçoba é igual à dela. Graças a Deus, porque é muito boa”.
Durante a conversa, Mabel me oferece uma geleia de araçá-mirim, outra especialidade da mãe que só pode ser feita com produtos santo-amarenses. Pergunto se tem alguma comida que ela faz quando está com saudade de dona Canô e quer se sentir mais próxima. “Nem precisa, porque tudo me lembra a minha mãe. A gente lembra com saudade do que passou, mas quer viver o presente. Eu sou uma velha que gosta muito do presente”, ri.
Mamma mia!
Na Itália, a tradição da comilança de Dia das Mães lembra a nossa. “O mês todo é dedicado à mãe, com muito macarrão, nhoque, lasanha e irmãos reunidos. Lá temos aquela cultura de comer entrada, prato principal, assados e sobremesa”, conta o chef Alessandro Narduzzi (La Lupa Cucina Mediterrânea), 46, nascido na província de Viterbo, a 70 km de Roma.

Nos tempos festivos, os italianos cozinham no forno a lenha. Na infância de Narduzzi, quem não tinha um em casa usava o dos vizinhos ou pedia uns minutinhos emprestados aos donos de padaria, que cediam o fogo sem problemas. “Hoje já não está mais assim, as cidades cresceram, a cultura mudou. Esperávamos o mês das mães o ano inteiro. Comida feita a lenha tem outro gosto, lembra festa”.
Mãe de oito filhos e com uma vida atribulada, dona Marisa, mãe de Narduzzi, evitava cozinhar por hobby. “Era mais uma obrigação, parte do trabalho diário dela”. Quando começou a trabalhar com gastronomia, o chef levou novos sabores para casa, livrando a mãe, que morreu há oito anos, de cozinhar sozinha nos encontros de família. Hoje, longe dos irmãos e da cidade onde cresceu, o chef, assim como fez com a sua própria, alimenta outras mães no Dia das Mães. “É a época em que o restaurante fica mais cheio. Não tem procura igual em qualquer outro dia do ano”.
Alimento para o espírito
De origem italiana, a família Gattai tem como regra comer com fartura. “A memória dos sabores é tão forte quanto a memória auditiva”, diz Maria João Amado, 45 anos, neta de Zélia e de Jorge Amado.

No lado dos Gattai, a herança alimentar não veio da matriarca Angelina, que fugia do fogão sempre que podia, e sim de uma tia paterna. “Vô Ernesto não se conformava com a falta de dotes culinários de sua esposa. Chamou para morar com eles uma irmã mais nova, a tia Dina, exímia cozinheira. Tia Dina passou então a ser a responsável pela cozinha”, escreve Paloma Amado, filha de Zélia e Jorge, no livro Sabor de Família, organizado por Luana Davidsohn John.
Esse espólio de tia Dina não formou o paladar apenas de Zélia, uma amante da cozinha italiana, mas de gerações da mesma família que a perpetua até hoje. “Quando comemos algo que nos lembra a infância, uma comfort food (comida confortável), vem um sentimento de conforto. São alimentos que nos acolhem quando estamos tristes. A comida é um alimento para o espírito”, lembra Maria João.
Entre os tantos pratos deliciosos dos seus tempos de menina, Maria João não tem dúvidas sobre qual deles lhe traz mais conforto. “A beterraba que a minha avó fazia. Comi hoje, a minha mãe quem fez”. Nascida no Recife e criada em Salvador, a mãe de Maria João, dona Maria, aprendeu essa receita com a nora, que ensinava com gosto. “Aqui a gente nunca teve isso de esconder receita. Eu acho tão legal dividir o que é bom. Como minha avó sempre dizia, quem ama alimenta, não é?”.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Siga nossas redes