Menu
Pesquisa
Pesquisa
Busca interna do iBahia
HOME > MUITO
Ouvir Compartilhar no Whatsapp Compartilhar no Facebook Compartilhar no X Compartilhar no Email

MUITO

Homem não presta

Por Franklin Carvalho

18/10/2020 - 14:59 h
Arte: Túlio Carapiá
Arte: Túlio Carapiá -

Acordo sem me lembrar de nada. Percebo que estou numa cama, o que significa que alguém cuida de mim na terra e no céu.

Uma janela escancarada, as cortinas esvoaçando, é de manhã e logo me vem à memória a farra de ontem. Recordo gargalhadas e o movimento num bar, cenas mal iluminadas.

Parece que nenhum lençol me cobriu durante toda a noite, a pele ressente a brisa fria, é por isso que acordo. Bem, esta cama fica na casa de Janice, minha namorada, mas não é a cama dela, de casal, no quarto dela. É a estreita e dura cama de solteiro, no cômodo reservado a hóspedes.

Tento levantar e recebo a conta da ressaca, alguma tontura. Espere! A coisa é grave, eu me lembro claramente: ontem fui sozinho ao bar, depois do trabalho, e cheguei aqui num estado lastimável. Janice me recebeu na entrada do prédio, como se tivesse adivinhado a hora exata do meu aparecimento na rua. Faltou luz aqui no centro da cidade, ela tinha uma lanterna na mão e subiu comigo as escadas até o 4º andar. Teve pena de mim, não fez cena, não reclamou, apenas me acompanhou ao quarto de hóspedes e esperou que eu desabasse na cama de solteiro.

A luz do dia me maltrata. Pobre do hóspede que encontrar uma cama dessas em suas viagens. Ainda bem que nunca vim aqui nesta condição. Durmo na cama de casal já faz uns três meses, desde que comecei a namorar a dona, cócegas no umbigo, farelo de chocolate no travesseiro, selfies de nossos abraços. Janice me disse que, antes de me conhecer, vivia desgostosa, pedia comida de aplicativo só para alguém cozinhar para ela, e varria a casa mais vezes para enxotar a solidão.

Barulho na cozinha, alguém mexe no escorredor, derruba uma tampa de panela, lava pratos com a torneira aberta no máximo, a fúria de cachoeira. Finalmente uma xícara quebra. Janice deve estar possessa ao pé da pia. Eu a conheço. Hoje não canta, como sempre. Logo ela, que suaviza o trabalho de casa berrando Alcione ou Didn't We Almost Have It All, de Whitney Houston, a única canção em inglês que sabe. Às vezes, põe outras mulheres para tocar no celular, mas hoje está muda.

Hoje há uma entidade na cozinha, uma embalsamadora do antigo Egito munida de estiletes para destrinchar um corpo humano, eviscerá-lo, amarrar os ossos com ataduras e esperar séculos até que tudo seque. A ausência de música sugere uma médica monstra predadora do futuro extraterrestre bacteriológica que montou uma maca para me estripar. Dessa cama não levanto.

Se eu apenas tivesse saído sem Janice, isso não seria assunto, mas tudo é a forma com que se faz as coisas. Eu não avisei, não preparei terreno, apenas emendei do expediente para a farra. Janice também não é mulher de ficar telefonando, apelar que homem volte, nem tem esses paranoias de quem assiste telejornais violentos do começo da noite e faz reféns em casa.

Se arrependimento matasse, estavam liquidados os meus colegas da loja, o vendedor de cerveja do isopor da passarela, os dois times que jogaram ontem, as mulheres no boteco e a luz que caiu escondendo tudo. O nome do bar era “Pirâmide”, e no intervalo apareceram umas donas que se diziam Cleópatra. No segundo tempo, ficou tudo escuro. Beijo é traição?

Do resto não sei, nem ninguém testemunha, faltou luz. Sobrevivi, não foi? Não está aqui o homem?

Vida que segue.

Janice, quando está com raiva, dá piti, reclama. Quando tem ódio, é a dona do calundu, calada como uma múmia, uma esfinge, um deserto. Agora na cozinha caiu uma colher, mas não vai chegar mulher, até a superstição está suspensa hoje, entalada na garganta da namorada.

Ouço um chaveiro tilintar, Janice saiu, bateu a porta da rua. Nem veio saber como estou. Nem se importa? Quando será que volta? Por que me adia tanto?

E quando é que acordo do pesadelo? E por que essa cama se dilata assim, Saara, areia movediça?

Compartilhe essa notícia com seus amigos

Compartilhar no Email Compartilhar no X Compartilhar no Facebook Compartilhar no Whatsapp

Siga nossas redes

Siga nossas redes

Publicações Relacionadas

A tarde play
Arte: Túlio Carapiá
Play

Filme sobre o artista visual e cineasta Chico Liberato estreia

Arte: Túlio Carapiá
Play

A vitrine dos festivais de música para artistas baianos

Arte: Túlio Carapiá
Play

Estreia do A TARDE Talks dinamiza produções do A TARDE Play

Arte: Túlio Carapiá
Play

Rir ou não rir: como a pandemia afeta artistas que trabalham com o humor

x