Menu
Pesquisa
Pesquisa
Busca interna do iBahia
HOME > MUITO
Ouvir Compartilhar no Whatsapp Compartilhar no Facebook Compartilhar no X Compartilhar no Email

MUITO

Instituição do século 19, Casa Pia e Colégio de Órfãos de São Joaquim busca novas iniciativas

Por Gilson Jorge

10/01/2021 - 6:00 h
No século 18, prédio abrigou o Colégio do Noviciado dos Jesuítas | Foto: Rafael Martins | Ag. A TARDE
No século 18, prédio abrigou o Colégio do Noviciado dos Jesuítas | Foto: Rafael Martins | Ag. A TARDE -

Às vésperas do Natal de 1962, Almir Francisco de Assis, então um garoto de dez anos, cruzou o imponente portão da Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim, em Água de Meninos, de mãos dadas com a sua mãe, Elenita Sacramento de Assis, uma dona de casa viúva que sustentava a família costurando colchas de retalhos para a vizinhança no Rio Vermelho, à época uma vila de pescadores.

Com dificuldades financeiras, dona Elenita, que já tinha visto seus dois filhos maiores ganharem o mundo, precisou deixar o caçula no internato. Entregou à secretária, de prenome Rosália, uma certidão de nascimento falsificada, em que constava que o menino tinha oito anos (a Casa tinha como regra acolher apenas meninos de sete a nove anos) e o deixou sob os cuidados da instituição. A partir dali, veria o filho quinzenalmente, levaria coco com rapadura para a merenda do menino, e passaria com ele um mês e meio de férias, no recesso de fim de ano.

Era o caminho buscado por muitas famílias da capital e do interior que, por pobreza, impossibilidade de tomar conta das crianças ou simplesmente para garantir precocemente um encaminhamento profissional dos jovens, os levavam para o internato, desde que em 1799 o religioso catarinense Joaquim Francisco do Livramento, Irmão Joaquim, resolveu dar uma utilização escolar ao imponente imóvel construído como mosteiro para noviços jesuítas , mas que estava abandonado havia 40 anos, quando os jesuítas foram expulsos do Brasil por ordem do Marquês de Pombal.

"É a mais antiga escola brasileira em funcionamento contínuo", aponta o historiador Alfredo Eurico Rodrigues Matta, autor do livro Casa Pia Colégio dos Órfãos de São Joaquim, de recolhido a assalariado. Fruto de uma dissertação de mestrado, o livro explica o contexto de surgimento da instituição e traz detalhes administrativos. Como uma tabela de culpas e suas punições, atribuídas aos internos.

Comer demais, por exemplo, era uma culpa leve a que correspondia uma diminuição na oferta de comida. Formal desobediência aos superiores era considerada uma culpa grave, que demandava "quando muito" a privação total do almoço e ceia por três dias, com reclusão solitária. Pelas regras, o aluno tinha direito a apresentar defesa antes de cumprir a pena.

Regras

As regras de conduta do internato proibiam o castigo físico, como açoites e palmadas. Mas, na prática, a violência estava presente, sem chance de defesa, e podia vir de um supervisor irritado com um jovem que não fez a cama depois de acordar ou um interno mais velho, insatisfeito com quem fez xixi na cama de cima do beliche.

"Tinha um supervisor que era policial e batia na gente como batia em marginal", relata Almir. "Alguns meninos não aguentavam e fugiam", relata o ex-interno, que, apesar de ter levado alguma porrada, observava colegas correndo para tomar impulso e pular o muro, sem ter a intenção de segui-los.

"Quem ficava, não dava para ruim", afirma Almir, que durante três anos trabalhou como office boy na extinta Fábrica Nacional de Vagões (FNV), em Campinas de Pirajá, e voltava depois do expediente para dormir no internato.

Aposentado desde meados da década de 1990, Almir trabalhou na Marinha e no Polo Petroquímico depois que deixou a Casa Pia. "Eu só tenho a agradecer. À Casa e a minha mãe, que não tinha condições de me criar e me colocou lá".

Espaço espetacular

A preocupação em dar um direcionamento profissional a crianças surgiu logo que o Irmão Joaquim começou a se ocupar de órfãos que ele encontrava pelas praias da Cidade Baixa.

Quando o religioso pediu apoio à igreja, tomou conhecimento da existência dessa construção abandonada em um terreno de 35 mil metros quadrados entre a Água de Meninos, a encosta da Liberdade, a Calçada e o Largo do Tanque.

Entre 1845 e 1849, a Casa Pia enviou 70 menores profissionalizados para trabalhar na Fábrica de Tecidos de Valença, no Baixo Sul. O trabalho infantil só foi proibido no Brasil com a Constituição Federal de 1988.

Mas a instituição formou também carpinteiros, chapeleiros (artes de ofícios), farmacêuticos, relojoeiros e músicos (ofícios nobres), entre outras atividades.

Uma das maiores referências culturais da Bahia, o escritor e intelectual Manuel Querino deu aulas de desenho industrial em 1922. Ele morreria no ano seguinte.

A ideia de dar educação profissional para crianças órfãs foi prontamente abraçada pela burguesia baiana da época, que passou a contribuir financeiramente para a manutenção da casa.

Em seu livro, o historiador Alfredo Matta aponta que o surgimento da Casa Pia coincide com a criação da Associação Comercial da Bahia, em 1811, quando os comerciantes locais se unem para influenciar os rumos da cidade.

Um misto de influência política e filantropia, que gerava uma imagem positiva à qual a elite queria estar associada. O livro de Matta aponta que, mesmo parte da aristocracia rural baiana, se mobilizou para ajudar financeiramente a Casa Pia, pois isso rendia status em seus municípios.

"O trabalho foi gerando na sociedade um gosto pela filantropia. As pessoas começaram a se aproximar do prédio que muitas nem conheciam", diz o atual diretor executivo da Casa Pia, João Gomes, um gestor ligado ao mundo da comunicação e do entretenimento que desde 2020 assumiu a tarefa de modernizar a instituição.

Ensino

O internato, na verdade, deixou de existir em 2005, quando o Colégio dos Órfãos de São Joaquim passou a integrar a rede municipal de ensino. Hoje, atende cerca de 300 jovens. A nova diretoria pretende voltar a oferecer, como atividades extracurriculares e abertas à sociedade, novos cursos profissionalizantes.

Por enquanto, Gomes está fazendo contas e planos. Com um orçamento anual que gira em torno de R$1,3 milhão, o diretor executivo afirma que nos últimos anos a Casa Pia tem fechado o ano no vermelho.

O dinheiro obtido com doações e com o aluguel de outros imóveis pertencentes à instituição (também frutos de doação), não tem sido suficiente para fazer frente às despesas com manutenção e pagamento de 72 funcionários.

Mas algumas medidas já estão sendo tomadas. Seis grandes quadros de importância histórica e estética relevante serão restaurados pelo ateliê de José Dirson Argolo, o maior nome do restauro de obras de arte na Bahia.

Um dos quadros é o retrato de Dom Pedro II. Seu pai, D. Pedro I, aliás, hospedou-se no imóvel em 1828, quando aprovou as atividades que estavam sendo realizadas. No mesmo ano, os estatutos originais foram aprovados. Os restauros serão feitos através da Lei Aldir Blanc, via Fundação Gregório de Mattos.

Argolo tem uma relação afetiva com o imóvel que frequentava na juventude, quando, recém-chegado de Jaguaquara para estudar na Escola de Belas Artes, costumava apreciar o acervo da Casa Pia: "Há 12 anos, fiz um levantamento do que precisava ser restaurado. Mas não havia recursos"

O estado de conservação dos quadros está muito ruim, segundo avalia, por conta das condições de armazenamento, dos fungos e do calor úmido da cidade. Estima-se que cada obra demorará em torno de um mês para ser restaurada.

Outra iniciativa da Casa Pia, deve ser a recuperação ambiental de uma área de 12 mil metros quadrados, em parceria com Débora Didoné, fundadora do Canteiros Coletivos. Ainda não há definições, mas o objetivo é criar um espaço que sirva como ecoescola, voltado para a educação ambiental da comunidade. "Conversamos com a Coelba sobre a possibilidade de fornecimento de restos de poda triturada", informa Débora.

Até agora, esse descarte das podas de árvores próximas à fiação elétrica ia todo para o aterro sanitário. Esse material vai ser usado na adubação do solo. Um longo processo de nutrição do terreno, para que depois se possa pensar no reflorestamento da área.

Outros projetos

Quando planeja semear novos projetos, a diretoria consulta também a mais antiga funcionária da Casa Pia em atividade, a bibliotecária Solange Alves de Souza, que começou a trabalhar na casa antes de concluir a graduação, a convite de um antigo provedor da Casa Pia, o empresário José Vicente Gonçalves Tourinho.

Solange é responsável por um acervo de cerca de três mil livros, que inclui literatura russa e um exemplar de Os Sertões, autografado por Euclides da Cunha.

Eleita em agosto passado a primeira provedora mulher da Casa Pia, Maria Amélia de Castro Gonçalves Tourinho mantém a tradição familiar de envolvimento com a instituição. Da qual fizeram parte o ex-senador Rodolpho Tourinho, já falecido, dois parentes homônimos, e o diretor do Hospital Aliança, Paulo Sérgio Tourinho.

"Eu tenho uma ligação sentimental com a Casa, pois meus pais se conheceram aqui", revela a provedora, lembrando o momento em que seu pai, José Vicente, convidou a professora Carol Castro para ensinar artes na instituição, em 1954.

Desativada desde 2012, a prática de aluguel das instalações para a realização de casamentos e outros eventos deve ser retomada ainda este ano, a depender da evolução do controle da pandemia.

"Dois casamentos estão agendados para o segundo semestre", informa Pagana Carvalho, que já havia trabalhado com Gomes e foi convidada para atuar como gerente de eventos.

No Conselho Administrativo da casa de origem católica surgiu o trocadilho com seu nome, indicando que ela vai cuidar das festas "paganas". Nada que chegue perto das aventuras do ator Mickey Rourke e Carré Otis no filme Orquídea Selvagem (1989), que teve algumas cenas gravadas no imóvel. Mas que, espera-se, melhore a arrecadação da instituição.

Compartilhe essa notícia com seus amigos

Compartilhar no Email Compartilhar no X Compartilhar no Facebook Compartilhar no Whatsapp

Cidadão Repórter

Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro

ACESSAR

Siga nossas redes

Siga nossas redes

Publicações Relacionadas

A tarde play
No século 18, prédio abrigou o Colégio do Noviciado dos Jesuítas | Foto: Rafael Martins | Ag. A TARDE
Play

Filme sobre o artista visual e cineasta Chico Liberato estreia

No século 18, prédio abrigou o Colégio do Noviciado dos Jesuítas | Foto: Rafael Martins | Ag. A TARDE
Play

A vitrine dos festivais de música para artistas baianos

No século 18, prédio abrigou o Colégio do Noviciado dos Jesuítas | Foto: Rafael Martins | Ag. A TARDE
Play

Estreia do A TARDE Talks dinamiza produções do A TARDE Play

No século 18, prédio abrigou o Colégio do Noviciado dos Jesuítas | Foto: Rafael Martins | Ag. A TARDE
Play

Rir ou não rir: como a pandemia afeta artistas que trabalham com o humor

x

Assine nossa newsletter e receba conteúdos especiais sobre a Bahia

Selecione abaixo temas de sua preferência e receba notificações personalizadas

BAHIA BBB 2024 CULTURA ECONOMIA ENTRETENIMENTO ESPORTES MUNICÍPIOS MÚSICA O CARRASCO POLÍTICA