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“Inteligência artificial substituirá o homem em muitas coisas"

Presidente da Rede Embrapii de Inteligência Artificial acredita que a tecnologia veio para ficar

Publicado domingo, 09 de janeiro de 2022 às 06:00 h | Autor: Bruna Castelo Branco

Sabe quando você procura um liquidificador para comprar na internet e, de repente, todas as suas redes sociais começam a lhe mostrar anúncios de produtos para casa? Ou quando você, só por curiosidade, olha o preço da passagem para um lugar qualquer e, de repente, começam a brotar sugestões de hotel em toda página que você abre na internet? A tecnologia que é usada para isso é a Inteligência Artificial. O mestre em computação Adhvan Furtado, coordenador da área de computação do Senai Cimatec e presidente da Rede Embrapii de Inteligência Artificial, a maior da América Latina, acredita que a inteligência artificial veio para ficar e se consolidar – tanto na indústria, quanto na nossa rotina, seja com o próprio celular ou até outros tipos de aparelhos, como a Alexa, a assistente virtual da Amazon. “O que a Alexa e tantos outros aparelhos habilitados por IA fazem é justamente utilizar essa informação histórica para tentar oferecer um serviço mais personalizado. Então, acho que a gente não tem muita alternativa”. De acordo com o pesquisador, já há evidências de que, em alguns casos, as máquinas podem tomar decisões melhor e mais rapidamente do que a gente, especialmente em um ambiente industrial. “Você consegue ter olhos em todos os lugares, ouvidos em todos os lugares, sensores em todos os lugares”. Nesta entrevista, falamos sobre proteção e coleta de dados pessoais por empresas, o uso de tecnologias de inteligência artificial na indústria, e a substituição da mão de obra humana pelas máquinas em algumas profissões.

Você acabou de assumir a presidência da Rede Embrapii de Inteligência Artificial. Qual é a principal função da Rede?

A Embrapii é um programa do governo brasileiro para apoiar a indústria. É um modelo parecido com o alemão, criaram um fundo grande, de alguns bilhões, e a Embrapii gere esse fundo rodando projetos de pesquisa em institutos ao redor do país. Então, por exemplo, se uma indústria quer inovar, ela pode procurar qualquer um dos institutos credenciados, que são muitos, mais de 50 institutos. E aí, a empresa procura o instituto e já desenvolve o projeto sem nenhuma burocracia. A Embrapii é um fundo que aporta recursos para os institutos rodarem projetos com as empresas. É um recurso que não é reembolsável, é um dinheiro a mais para as empresas, não é um empréstimo. E a Embrapii tem R$ 2,5 bilhões para investir em inovação, então, é bastante dinheiro. E tem uma rede específica, que é a Rede de Inovação de Inteligência Artificial, que é a maior da América Latina, com 19 unidades e mais de 250 especialistas. E a função dessa rede é justamente fomentar o desenvolvimento desses projetos com as indústrias para utilizar a inteligência artificial e aumentar a competitividade e produtividade das empresas.

O Brasil é um país conhecido por produzir commodities, e não tecnologia. Quais são as consequências disso?

É verdade. Se você olhar nossa balança comercial, a gente exporta bastante matéria-prima e importa os produtos com maior valor agregado. Teve até um ex-ministro, eu acho, que falou assim: “Quanto custa exportar um quilo de soja, e quanto custa importar um quilo de eletrônicos?”. Hoje, um Iphone custa o que? R$ 10 mil. E você olha um quilo de feijão, quanto é que está custando? Então, assim, o valor agregado que está nesses produtos não é o peso, é o quanto de propriedade intelectual você tem ali, o quanto de conhecimento foi agregado àquele produto. E a gente está caminhando para uma indústria focada em conhecimento. O importante não é aquilo o que você está produzindo, mas o quanto aquilo gera de valor. É importante que a nossa indústria também esteja atenta a essa questão. Quando a gente compara a competitividade da indústria brasileira com a de outros países, a gente percebe que a nossa é menos competitiva. Mas isso quer dizer que o nosso trabalhador é menos eficiente? Não necessariamente. Isso quer dizer que os instrumentos que a gente utiliza nos torna menos competitivos. E é justamente aí que a Rede Embrapii de IA [Inteligência Artificial] quer atuar. Levar para a indústria brasileira um nível de tecnologia que permita a auxiliar o desenvolvimento dessa indústria com novos produtos, novos processos, para agregar valor à operação da empresa.

 Como isso funciona?

Imagine que, hoje, com a inteligência artificial, a gente consegue, por exemplo, olhando para o histórico de dados, ter uma perspectiva de como vai ser o comportamento daquela empresa. Então, a gente consegue, olhando para uma máquina, o funcionamento dela, o histórico, e todas as vezes que ela falhou ao longo do tempo, predizer quando será a próxima falha. Aquele conhecimento que estava antes na cabeça de um engenheiro muito especializado, que ouvia o som e dizia: “Poxa, essa máquina está vibrando estranho, isso aqui vai ter um problema”, a gente consegue, com base na inteligência artificial, ter uma precisão muito maior. E aí conseguimos fazer uma manutenção preventiva e inteligente, por exemplo. Esse é um exemplo, mas tem muitos outros. A tecnologia traz muitos benefícios, tanto do ponto de vista de eficiência, mas também o benefício de tornar a sua operação menos arriscada, de levar o humano para além de onde ele poderia ir. Você consegue ter olhos em todos os lugares, ouvidos em todos os lugares, sensores em todos os lugares. Hoje, um equipamento é capaz de analisar uma imagem até com mais qualidade do que as pessoas. Em algumas áreas específicas, o próprio equipamento começa a ter uma capacidade de tomada de decisão melhor do que a nossa.

Algumas empresas têm lançado produtos que usam tecnologias de inteligência artificial, como a Alexa, a assistente virtual da Amazon, por exemplo. Você acha que esses objetos devem passar a fazer cada vez mais parte das nossas vidas?

Acho que é inevitável. Todo mundo posta nas redes sociais, todo mundo tem e-mail. Tem uma grande quantidade de informações disponível por aí, desde a vida pessoal das pessoas até os equipamentos de uma fábrica. E o que a inteligência artificial faz é justamente se utilizar desse conhecimento que existe por aí e tomar decisões a partir deles. Se a gente sabe que aquela pessoa, a vida inteira, ouviu um determinado tipo de música, é bem provável que ela continue gostando daquele tipo de música porque o histórico dela diz isso. O que a Alexa e tantos outros aparelhos habilitados por IA fazem é utilizar essa informação histórica para tentar oferecer um serviço mais personalizado. Então, acho que a gente não tem muita alternativa. Vamos ter, cada vez mais, equipamentos desse tipo. Isso, de um lado, é legal, porque ajuda direcionar melhor os produtos, resolver problemas. Mas, por outro lado, abre toda uma discussão sobre qual vai ser o impacto disso na nossa sociedade. No momento em que você tem uma máquina direcionando aquilo que vai ouvir, comprar, interagir, isso acaba trazendo questões éticas importantes a serem discutidas. E se a máquina, olhando para o passado, se tornar uma máquina racista, que perpetue certos paradigmas que não cabem mais?

E isso traz riscos para os nossos dados e privacidade? Até que ponto dá para confiar que não estamos sendo gravados, por exemplo?

Esse é um ponto bem importante, porque a maneira como a inteligência artificial está operacionalizada hoje, depende de dados. Se você não tiver muitos dados, você não vai conseguir fazer uma recomendação correta. Então, essas empresas que vendem esses serviços precisam dessa informação. E, muitas vezes, elas acabam indo além de onde deveriam para coletar esses dados. De fato, a atenção com a privacidade é importante porque é justamente essa informação que vai direcionar e vai indicar para as empresas que trabalham com esse tipo de coisa o seu comportamento. Se alguém não quer ter essa relação com as empresas, é importante que ela tenha o direito de não disponibilizar essas informações. A privacidade é essencial.

As pessoas falam muito também sobre os algoritmos de propaganda no celular. Tem aquela história que alguém estava falando sobre algum objeto e, pouco tempo depois, uma propaganda desse objeto apareceu do nada nas redes sociais. Esses equipamentos ficam gravando a gente mesmo? O que podemos fazer para nos proteger disso?

Essa capacidade de gravar existe, os equipamentos têm essa capacidade e estão fazendo isso o tempo inteiro. Para a Alexa, por exemplo, ou o Google Home, serem capazes de responder quando você chama, é sinal de que eles estão ouvindo o tempo inteiro. E, em algum momento, se você olhar com atenção aqueles termos que aparecem logo quando você usa o produto pela primeira vez, ele vai informar lá: “Olha, eu posso estar coletando informações de áudio das suas conversas”. E, muitas vezes, a gente nem percebe e dá um "ok''. Naquele momento, você autorizou a empresa a coletar aquelas informações. E as informações são, sim, utilizadas. Houve muito avanço recentemente nessa área que a gente chama de “processamento de linguagem natural”, que é essa capacidade que a máquina tem de entender aquilo que a gente fala, tanto do ponto de vista do áudio, quanto da parte escrita, e, a partir dali, interpretar e tomar decisões. Respondendo objetivamente, esses equipamentos, como a Alexa, são capazes, sim, de coletar informações, e muitas vezes coletam com a autorização do usuário. Não é que seja algo ilegal. Eles pedem autorização, e a gente dá sem perceber.

Mas, às vezes, a gente não tem nem opção, não é? Se para usar um celular, por exemplo, precisamos dar essa autorização, não tem como não dar. Muita gente usa o celular e as redes sociais para trabalhar… se não usar, a pessoa pode perder a fonte de renda, ficar para trás. Às vezes, o usuário não tem saída.

Exatamente. Daí que vem a importância de ter uma regulamentação, de ter uma discussão fora do âmbito da relação empresa e pessoa. Acho que precisa ter uma atenção dos agentes de regulação, do governo sobre isso, porque, senão, acaba sendo meio que empurrada a tecnologia e você não tem muito o que fazer. Vai ficar fora do Facebook? Vai ficar fora do Instagram? Ou vai aceitar aquele termo? É importante ter essa discussão. Até porque, isso chega em um nível de detalhe, um nível de conhecimento que se obtém das pessoas, que você é capaz de influenciar até decisões bem importantes da vida da pessoa, inclusive em quem ela vai votar, onde ela vai passar as próximas férias, o que ela vai comprar. Se não houver um controle mais forte sobre isso, a gente vai ficar à mercê do mercado, de quem vai oferecer o maior valor pelos nossos dados. Primeiro, é importante saber disso, e depois descobrir o que quer fazer com essa informação. Se quer autorizar, ou se não quer usufruir daquele serviço. E há uma discussão muito grande dentro da Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial sobre esse tema, como isso deve ser tratado. Mas nem tudo é negativo, tem um lado bem positivo da IA como, por exemplo, a tradução de textos de forma mais rápida e automática, a utilização de equipamentos de IA na área de saúde… acho que há mais benefícios do que perdas quando pensamos em inteligência artificial. Muito se fala também na perda dos empregos, que a IA vai substituir o homem em muitas coisas, e é verdade. Em muitas áreas, isso vai gerar um impacto grande.

Quais áreas?

Por exemplo, a área de call center. Hoje, você vê cada vez mais um robô te ligando, conversando contigo. Você não fala mais com um atendente. Vai ser uma profissão que, provavelmente, no futuro, vai deixar de existir. Mas, por outro lado, outras profissões aparecem. Temos que preparar a sociedade para utilizar a inteligência artificial, preparar nossos estudantes para aprender programação, porque, a partir daí, vamos estar prontos para os novos empregos que surgirão.

Como preparar a sociedade?

Se a gente está pensando em utilizar em escala uma tecnologia tão transformadora quanto a IA nas nossas empresas, no nosso dia a dia, a gente tem que ser capaz de entender a tecnologia. Então, precisamos de mais pessoas bem formadas nessas áreas. Tem países, como a Índia, que ensinam inteligência artificial desde o fundamental. E, pensando do ponto de vista do usuário, acho que precisamos tornar mais público tanto os benefícios, quanto os riscos associados à disponibilização dos nossos dados. Existem situações ruins, como, por exemplo, sistemas automáticos de indicações de emprego. Ocorreu um caso na Amazon em que eles começaram a usar inteligência artificial para fazer recrutamento de pessoas, e em algum momento, eles perceberam que, para cargos de gestão, as mulheres estavam sendo preteridas. Mas, mesmo com essas tomadas de decisões erradas que a gente citou, é mais provável que a IA tome mais decisões certas do que erradas. Ela vai se aprimorando, ela tem uma capacidade de tomada de decisão que é super-humana. Um computador é capaz de analisar milhares de documentos simultaneamente, e é natural que, em algum momento, ele tenha uma capacidade de tomar decisão melhor do que um ser humano. Então, se a gente cuidar direitinho dessas distorções, acho que é uma tecnologia que vem para ajudar. Na área de TI, tem um time que acha que a IA vem para o bem, e o dos que acham que a IA vai destruir o mundo. E é gente grande, né? Stephen Hawking já alertou contra os perigos da IA, Elon Musk… que vai revolucionar, todo mundo concorda, mas se a gente vai ser capaz de utilizá-la para o bem, ou se vai acabar mais gerando problemas do que soluções, ainda há controvérsias.

E você, acha o quê?

Eu sou daqueles que acham que é para o bem. Os benefícios para a sociedade vão ser maiores do que os problemas que ela venha a causar.

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