MUITO
"Irmã Dulce era um ser político em função do evangelho", diz Valber Carvalho
Por Gilson Jorge
A religiosidade tem um papel muito importante na vida do jornalista Valber Carvalho, filho de Jane Carneiro Carvalho, uma espírita que vaticinou em sua infância que ele seria escritor. Quis o destino que ela morresse às vésperas de completar 100 anos, um dia depois que um caminhão carregado com os exemplares do primeiro livro de seu filho deixasse a gráfica no Rio de Janeiro com destino a Salvador. Em Além da Fé, Valber mostra como a fantástica história de Irmã Dulce, primeira santa brasileira, a Santa Dulce dos Pobres, foi influenciada por homens caridosos da sociedade baiana, como seu pai Augusto Lopes Pontes e Bernardo Martins Catharino. E também por uma decisão do Vaticano de que as ordens religiosas deveriam evangelizar os trabalhadores. O livro, com 642 páginas, que seria parte de uma coleção da Assembleia Legislativa da Bahia, acabou saindo como obra independente e pode ser adquirido no site www.alemdafe.com.br
Você se considera religioso?
Sim, mas não de frequentar uma instituição, no sentido de que entendo a importância de nos conectarmos com o sagrado. Religião quer dizer religare, você se ligar ao sagrado. Essa conexão com o sagrado que ela tinha. Irmã Dulce contava que ao conversar com um empresário pedindo dinheiro, ela estava orando. Às vezes, a pessoa estava negando e ela olhando para ele sem ele saber que ela estava orando.
Em que momento você decidiu escrever sobre Irmã Dulce?
A minha carreira é muito plural, eu fiz documentários sobre comida natural, O grão de arroz, que vai para o cinema ainda. Fui de cultura, fui de esportes, fiz esporte amador em A TARDE. O que o Bahia Rural tinha de fantástico é que eu só precisava trabalhar um dia na semana, então, tinha autonomia para viajar, fazer documentários. Fiz documentários para a Odebrecht em Angola, República Dominicana, Peru. Viajava, fazia três dias de entrevistas e voltava. Eu entrevistei Irmã Dulce na década de 1980, como fundador da TVE. Em 1987, teve uma grande ampliação no hospital. Tinha sempre pauta lá. E eu ficava atraído pela pessoa dela, pelo apostolado. Comprei uma máquina fotográfica profissional usada pensando que um dia eu seria pautado lá e queria fotografá-la. Fiz uma foto bem feinha, eu não entendia de fotografia, não tinha flash. Mas não me senti à vontade de tirá-la do local onde cuidava das pessoas para produzir uma foto. Em 2011, filmei a beatificação já pensando em fazer um documentário sobre ela. Em 2013, fui convidado pela Assembleia Legislativa para fazer um livro sobre um personagem baiano. Escolhi ela.
Mas por que ela?
Minha irmã Carmen Schmidt, 14 anos mais velha do que eu, me disse: “Se eu fosse você, escolheria Irmã Dulce”. Quando eu era criança, ela viu muitas coisas fantásticas de Irmã Dulce. Um dia, gravei uma entrevista de duas horas com Oswaldo Gouveia, chefe do Memorial Irmã Dulce, e descobri que o que eu sabia de Irmã Dulce era muito pouco. Veio um clique e eu disse: é ela a personagem que eu quero. Fui vendo que, para entendê-la, eu deveria manter a narrativa da grande história, mas seriam as pequenas histórias que dariam os fatos até então desconhecidos. Quem teria as pequenas histórias? Centenas de anônimos. Irmã Dulce convivia com todas as pessoas possíveis. Eu teria que falar com taxistas, pois muitos davam carona a ela acreditando que o pagamento (das corridas) estava no céu. Os feirantes, os homens mais ricos, os homens mais pobres, os beneficiados, os filhos sociais, ela teve cerca de mil. Eu dividi as fontes de informação em 23 categorias de relacionamento. Além de pessoas muito representativas da história dela, como o ex-banqueiro Ângelo Calmon e a sobrinha Maria Rita, presidente da Osid.
Pode contar uma dessas pequenas histórias?
Essa história vai estar no livro dois. Circulou uma informação de que ela estava sendo preterida na visita do papa (João Paulo II, em 1980). Ela não comentou isso com ninguém. E o guarda de trânsito que atravessava ela 20 vezes por dia? Será que ela comentou com ele? Ele me contou algo que ela comentou com ele durante uma travessia.
Ela seria, de fato, preterida?
Ela estava sendo preterida. Mas é muito importante dizer que dom Avelar Brandão Vilella, então arcebispo primaz do Brasil, foi muito importante para o retorno dela para a congregação. Ele teve uma atuação pessoal. Eu acredito que o fato de ele ser autoridade eclesiástica máxima da Bahia e ela ser a autoridade do povo gerou um certo mal-estar. Mas houve uma pressão popular e da própria mídia e o nome dela foi incluído.
Isso vai estar no segundo volume. E como desenvolveu o primeiro?
Depois de quatro ou cinco anos de pesquisa, decidi que estava na hora de escrever. Mas faltavam os porquês. Por que Irmã Dulce se tornou Irmã Dulce? Eu passei nove meses indo à Biblioteca Central (dos Barris), diariamente. Pesquisei os pais e os avós dela para entender se ela era uma geração espontânea ou já vinha de uma família com tradição de caridade. Descobri que o avô paterno já fazia caridade e que o pai dela, o dentista Augusto Pontes Lopes, é o grande herói, o exemplo dela, um homem muito especial. A ele deve-se a criação da Faculdade de Odontologia, que era uma escola, e ele tem uma participação intensa na criação da Universidade da Bahia, que se tornaria a Ufba. Designado pelo reitor Edgard Santos, ele ficava dois meses no Rio (então Capital Federal) para a liberação de verbas para a criação da Ufba. Ele tinha uma facilidade muito grande para desembaraçar verbas. E o livro conta o papel dele na caridade. Eu fui atrás de outros homens que praticavam a caridade e que o inspiraram. Um homem que precisa ser destacado é Raimundo Frexeira, um mascate que veio trabalhar com o industrial e empresário Bernardo Martins Catharino e era cobrador das casas onde moravam os operários das fábricas têxteis de Bernardo, que era o maior capitalista da Bahia, mas era também um filantropo. E ele descobriu que havia centenas de crianças que viviam na lama, em um lugar onde não chegava transporte na Liberdade. Ele decide construir o Abrigo dos Filhos do Povo, em 1918, e mobiliza a sociedade baiana. O pai de Irmã Dulce vê aquilo e se interessa. Em 1925, cria um posto odontológico para oferecer assistência gratuita às crianças mais pobres de Salvador. O atendimento era 95% obturação, quase não tinha extração. Não era um negócio de arrancar dente de pobre. E ele compra um calhambeque com projetor cinematográfico para ensinar medicina preventiva nos bairros carentes. Só que ele sabia pedir, ele pedia doações a todo mundo. Em 1930, com a morte do engenheiro Teodoro Sampaio, Augusto Lopes Pontes assume a presidência do Abrigo Filhos do Povo, expande sua atuação e cria os cursos profissionalizantes que Frexeira idealizou.
O que você descobriu sobre a família dela?
Irmã Dulce não era de uma família rica, era uma família que tinha network. Seu pai era o dentista do governador, do arcebispo, das pessoas mais influentes. Quando Irmã Dulce decide entrar para a vida religiosa, que seu pai era contra, conhece o frei Hildebrando Kruthraup, um homem extremamente realizador que dizia que uma obra social deve ser sustentável. Ele era tão avançado que investiu em cinemas. Criou uma rede de cinemas católicos, começou com a Casa de Santo Antônio, uma casa quadrada na Ladeira de São Francisco, depois ele fez o Cine Pax, que era o maior do Norte e Nordeste. Esse dinheiro do cinema servia para financiar as obras sociais.
Qual o peso de Hildebrando Kuthraup na igreja?
Ele era o presidente da Congregação Mariana de São Luís, que reunia alguns empresários católicos, e eles financiaram o Movimento Operário Cristão. Naquele período, década de 1930, a Igreja (católica) se sentiu muito ameaçada, porque três grandes sistemas políticos, o nazismo, o fascismo e o comunismo, queriam extinguir a Igreja. Aí o papa Pio XI desencadeia a Ação Católica, que tinha como meta principal a evangelização do operário. Um movimento que Irmã Dulce inicia na Península de Itapagipe por uma orientação da igreja. Ela era de uma congregação missionária, a Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, e essa ação em que ela consegue arregimentar pessoas acontece mais nos finais de semana. Havia uma orientação vinda de cima para abordar os operários nas fábricas, e a maioria das irmãs não queria, porque eram muitos homens juntos, não era um lugar em que estariam com as famílias. Irmã Dulce se coloca como a número um desse voluntariado e vai conseguindo sucesso. Um ano e meio depois, ela já é citada em jornais como exemplo de alguém que estava conseguindo mobilizar o operariado.
Em que momento ela começa a fazer a sua própria obra social?
Quando acontece o golpe de Getúlio Vargas (1937), todos os líderes operários são convocados para lá e há uma determinação de que o movimento (operário católico, antes independente em cada estado ) teria um só nome, um só hino, uma só bandeira, uma só logomarca, O Círculo Operário. Esse movimento vai crescendo e Irmã Dulce começa a criar uma vertente própria. Até então, era só para cuidar dos operários. Mas ela descobre que os operários, mesmo pobres, tinham um mínimo de amparo dos seus institutos previdenciários. Um dia um garoto, na rua, pega no braço dela, trêmulo, com paludismo, febril, olha nos olhos dela e diz: ‘Irmã, não me deixe morrer na rua’. O olho dela sintoniza no dele e a vida dela muda. Ela disse que aquele olhar vai acompanhá-la a vida inteira. Isso foi em 1940. Quando ela assiste ao arrombamento das casas (imóveis desocupados na Vila Operária, em Itapagipe), que foi o primeiro ato, vamos chamar assim, radical de Irmã Dulce, ela entende que as leis dos homens não poderiam se sobrepor às leis de Jesus. É como se ela dissesse assim: a lei maior, para mim, é seguir o que Jesus mandou. O homem diz: você não pode arrombar uma casa, isso aqui é uma propriedade privada. Ela diz: “Ame o próximo como a si mesmo, alguém está morrendo à míngua. Aqui não mora ninguém, eu vou arrombar”. Passa um transeunte e ela manda ele arrombar a casa. O que ela queria era tirar os mendigos da rua. Ela era um ser político, mas um ser político em função do evangelho.
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