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23/10/2023 às 1:00 - há XX semanas | Autor: Joaquim Araújo Filho*

MUITO

Juízas negras para ontem

Confira a íntegra do ensaio

Mostra de arte de rua e vídeo reforçam campanha por mulher negra no STF
Mostra de arte de rua e vídeo reforçam campanha por mulher negra no STF -

Quando o Conselho Pleno da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) reconheceu Esperança Garcia como a primeira advogada do Brasil, em novembro de 2022, a sociedade brasileira deu um importante passo na reparação histórica, ao mesmo tempo que fortaleceu um potente símbolo da resistência negra no país, contribuindo com as lutas por justiça racial e pela visibilidade do povo negro como importantes protagonistas da história brasileira.

Esperança Garcia foi uma mulher negra e escravizada que lutou contra o racismo e a opressão de gênero no Brasil escravocrata do século 18, mais especificamente em Oeiras, no sul do Piauí. Em 6 de setembro de 1770, ela escreveu uma petição ao governador da capitania em que denunciava as situações de violências pelas quais crianças e mulheres escravizadas passavam e pedia providências ao direito à própria vida. A carta foi descoberta pelo historiador Luiz Mott em 1979, no Arquivo Público do Piauí, e hoje é considerada pela OAB como o primeiro habeas corpus que se tem conhecimento, quiçá, o primeiro exemplo de uma escrita feminina afro-brasileira.

Nas palavras de Mott: “Trata-se do documento mais antigo de reivindicação de uma escrava a uma autoridade. Documento insólito! Primeiro por vir assinado por uma mulher, já que mulher escrever antigamente era uma raridade. As mulheres eram vítimas da estratégia de seus pais, mantê-las distante das letras, a fim de evitar que elas escrevessem bilhetinhos para os seus namorados. Segundo, por se tratar de uma petição escrita por uma mulher negra". Além disso, como afirma Elio Ferreira, o documento desmorona o mito da submissão dos escravizados negros e da convivência pacífica ou da democracia racial brasileira.

Esse evento se torna ainda mais relevante quando analisamos a pequena inserção da população negra aos cursos de Direito e estâncias do judiciário. Em 2010, apenas 18% dos bacharéis em Direito eram negros, enquanto a taxa dos negros aprovados no Exame de Ordem alcançou 28,7%, em 2014. No recorte de raça e gênero, a representatividade ainda é menor no judiciário. Hoje apenas 7% dos magistrados de primeira instância e 2% na segunda instância são de mulheres negras.

No Supremo Tribunal Federal (STF), instância de mais alto nível do judiciário brasileiro, desde sua existência ao longo de 132 anos, apenas três ministros negros e três ministras mulheres ocuparam seus assentos, nenhuma delas negra. Não podemos perder de vista que, no Brasil, 56% de sua população se autodeclara preta ou parda, enquanto quase um terço dela é composta por mulheres negras. Assim, se faz necessário e urgente uma reflexão acerca da diversidade e pluralidade do STF.

Dessa forma, sociedade civil, movimentos sociais e lideranças políticas vêm se organizando para reivindicar e clamar por uma mulher negra no STF, quando, ainda neste ano, o presidente Lula deve indicar um novo nome para o posto. A arte, sempre presente nos momentos de transformações sociais, tem também se manifestado através de seus artistas.

Prova disso foi a recente intervenção artística Juízas negras para ontem, composto por 24 cartazes de artistas visuais negros/as/es de diferentes linguagens e estéticas, provocando a imaginação sobre a possível nomeação histórica da primeira-ministra negra ao STF.

A impactante mostra contou com a curadoria de Nina Vieira e invadiu, simultaneamente, muros de espaços públicos e urbanos de 14 cidades do Brasil, no dia 13 do mês passado. Em Salvador, a mostra ocorreu numa lateral do Edifício Sulacap, na Rua Carlos Gomes. Os cartazes foram impressos e afixados pelos próprios artistas, transformando as ruas em espaço de exposição democrático, aberto e acessível a todos.

A mostra é uma forma de estimular o debate e conscientizar a sociedade sobre a importância da diversidade nas instituições públicas, além de, como afirma a curadora, “criar novos sentidos, imaginar futuros justos, cultivar sonhos. A presença das nossas subjetividades em uma narrativa conjunta, cavando brechas e ocupando espaços é sobre garantias para todos: de terra, de direitos, da justiça e da democracia. E é para ontem”.

Podemos ainda dizer que é menos sobre diversidade, e mais sobre o acesso aos lugares de poder, visto que práticas colonialistas mantêm intencionalmente a presença de pessoas negras nos espaços de obedecer, raramente de decidir.

Participaram da intervenção artistas de diferentes regiões do Brasil: Dayse Serena, Robinho Santana, Larissa Constantino, Thais Devir, Nayò, Senegambia, Coletivo Manifesto Crespo, Marcela Bonfim, Alisson Damasceno, Sheila Signário, Kerolayne Kemblin, Letícia Carvalho, Arthur Costa, A Coisa Ficou Preta, Mitti Mendonça, Cassimano, Alcides Rodrigues, Ayala Prazeres, Michel Cena7, Thayná Miguel, Alma Retinta, Sereia Caranguejo, Coletivo RENFA DF e Ariel Farfan.

Dentre as obras, destaco aqui a de Alisson Damasceno, artista de Belo Horizonte, que traz a representação de uma cadeira semelhante com as que os juízes da corte se sentam, rodeada por caqueiros com espada de Ogum. Essa planta originária da África é muito utilizada no candomblé e na umbanda, fazendo referência a Ogum, que é um orixá guerreiro. Há um jogo de figura e fundo produzido pelas imagens dos objetos que parecem flutuar e os elementos decorativos que aparecem ao fundo, quase como se fosse um papel de parede. A imponência da cadeira também nos remete àquelas designadas para yalorixás e babalorixás dos terreiros. Ainda que não apareça nenhuma figura feminina negra, ela está sugestivamente presente naquele assento e simbolicamente abençoada pela ancestralidade africana.

Uma estética gráfica é a proposta apresentada pelo coletivo Manifesto Crespo, que atua entre Salvador e São Paulo. A mensagem é direta com os dizeres: ‘Pela Justiça Histórica’ e ‘Por uma Negra no STF’. A imagem central de um olho observa o espectador, como se dissesse e cobrasse pelo seu engajamento na causa: estou de olho em você! Paleta composta por verde, vermelho e amarelos nos remete às cores que representam o movimento pan-africanista e estão presentes em muitas das bandeiras de seus países.

A artista Ayala Prazeres, de Curitiba, apresenta uma mulher negra, de cabelos crespos e volumosos, sentada em posição de reflexão com uma das mãos no queixo, no seu vestido uma estampa da bandeira brasileira, folhas de espada de Ogum e bananeira aparecem atrás dela. Palavras com o dizer ‘Quando uma Mulher Negra se Movimenta Toda a Estrutura da Sociedade se Movimenta com Ela’, circunda a imagem central em direção ao centro. É certo que a artista acredita no potencial do corpo negro feminino para alterar as estruturas sociais e institucionais ainda carregadas de cunho misógino, racista e classista.

O retrato de uma juíza negra usando uma beca é apresentado na obra de Robinho Santana, de Diadema (SP). A pintura tem um aspecto plácido. A expressão altiva do rosto, composto de cabelos penteados e brincos de pérolas tem uma feitura quase academicista e tradicional, se não fosse pela representação de uma mão vermelha de punho cerrado que aparece na lateral da beca. Esse símbolo, muito utilizado por Nelson Mandela, está relacionado à luta contra o racismo e conflitos sociais.

A obra de Senegambia, artista visual de Salvador, de forma bastante gráfica em preto e branco, apresenta a imagem de uma mulher negra, abraçando a constituição brasileira num braço e carregando um vaso com espada de Ogum no outro. Ela também veste uma indumentária de aspecto africano e seus olhos são cobertos por uma espécie de chorão, que é um ornamento feito de miçangas ou contas que ficam normalmente presos ao adê das vestimentas de alguns Orixás, nos remetendo à imagem da justiça de olhos vendados. No topo da imagem também aparece a frase ‘Imagina o STF com Mulheres Negras’. As figuras geométricas ao fundo sugerem uma bandeira brasileira. Assim, o artista faz referências da cultura afro-brasileira e do judiciário para criar uma iconografia completamente nova.

Por fim, a artista transgênero do Macapá, Sereia Caranguejo, apresenta uma ilustração de traços mais livres e abertos, em que podemos ver duas figuras femininas negras, uma de frente e outra de costas para o observador. Uma delas segura um espelho que reflete a imagem da outra de forma distorcida, não de uma mulher negra, mas de uma mulher branca que tradicionalmente representa a justiça. A artista então se pergunta: ‘Imagina o STF com Mulheres Negras?’. Outras palavras também circundam as imagens, como Afrocentrado e Vidas Negras Importam.

A exposição Juízas negras para ontem, portanto, é um testemunho de que a arte também pode ser uma poderosa ferramenta de mobilização social. Ela nos desafia a refletir sobre o papel do STF na construção de um Brasil mais justo e inclusivo. O Brasil dificilmente será uma sociedade socialmente sustentável enquanto 56% da sua população, constituída por afrodescendentes, permanecerem impedidos de acessar plenamente os seus direitos civis, e para que isso aconteça é fundamental que ocupem equitativamente os espaços de poder.

*Museólogo e doutorando em Estudos étnicos e Africanos (Ufba)

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