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Leandro Karnal: "Amar é individual, odiar é coletivo"

Por Kátia Borges

18/12/2017 - 14:48 h | Atualizada em 18/12/2017 - 15:15
O historiador Leandro Karnal, um dos palestrantes mais solicitados do país, está lançando o oitavo livro
O historiador Leandro Karnal, um dos palestrantes mais solicitados do país, está lançando o oitavo livro -

Leandro Karnal, 54, é um daqueles fenômenos pop que surpreendem pela quase onipresença em eventos e pela abordagem de diversos temas. Suas palestras país afora tanto podem versar sobre a relação entre a servidão voluntária, preconizada pelo filósofo francês Étienne de La Boétie, e a submissão contemporânea às redes sociais, quanto sobre os princípios para ter uma vida bem-sucedida, a partir da otimização e da organização do tempo. Um dos palestrantes mais solicitados e bem pagos do país, Karnal é sobretudo um historiador, especialista em história da América, e professor da Universidade Estadual de Campinas. Nascido em São Leopoldo, cidade do interior do Rio Grande do Sul, ele é autor de sete livros e coloca no mercado, neste final de ano, mais uma produção – em parceria com o também historiador Luiz Estevam de O. Fernandes –, o livro Santos fortes: Raízes do Sagrado no Brasil (Editora Rocco). Não se trata de sua primeira incursão pelo universo da religiosidade. Pela Contexto, lançou As Religiões que o Mundo Esqueceu, além de Teatro da Fé – representação religiosa no Brasil e no México do século XVI (Editora Hucitec) e Pecar e Perdoar: Deus e Homem na História, editado pela Nova Fronteira. Nesta entrevista (feita via e-mail), Karnal fala sobre o novo livro e a fé dos brasileiros.

O senhor acaba de lançar o livro Santos Fortes (Editora Rocco, 2017), que foi escrito em parceria com o professor Luiz Estevam de O. Fernandes – doutor em história e em cultura. Em sua opinião, o que a vida e o sofrimento dos santos brasileiros têm a ensinar para todos nós, pecadores?

Santos também são pecadores. Alguns eram mesmo infratores antes de entrarem para a vida religiosa, como Agostinho ou Inácio. Outros, como Teresa de Ávila, tinham gênio difícil mesmo já sendo santos. A vida de um santo é um pouco da maneira de o humano lidar com o divino, com seus limites e seus temores. Os santos são perfectíveis e não perfeitos enquanto estão na Terra. Arcanjos podem decair, como Lúcifer. Os pecadores todos, toda a humanidade, todos os seres, possuem, na tradição religiosa, o chamamento constante à perfeição. Os santos, em meio ao lodo da existência, ouviram o chamamento e andaram.

Os brasileiros costumam apelar ao auxílio dos santos diante de toda e qualquer dificuldade cotidiana, seja uma espinhela caída ou um problema financeiro. De que modo o culto religioso influencia o nosso modo de ser e de viver?

Os santos oferecem identidade e mostram muito da nossa concepção de intimidade, sociabilidade e intercessão. Afogar Santo Antônio ou dar três pulinhos a São Longuinho, por exemplo, são processos que explicam a nossa relação com o poder e com o corpo. A tradição católica gosta da intermediação que a protestante rejeita. A maneira de recorrer a Deus e aos santos mostra nossa maneira de ver o poder e nossa relação com a graça.

Mas, por conta disso, não acabamos por deixar decisões que deveriam ser nossas nas mãos do divino? Em que medida a fé absoluta nos santos mais atrapalha que ajuda?

Em si, a fé absoluta não existe, porque em se tratando de seres humanos, a palavra absoluta fica excluída por definição. Agora, a fé cega, a fé fundamentalista, aquela fé que é incapaz de dialogar com a alteridade e a diversidade é um terrível mal religioso e social. É uma doença psíquica que busca na religião um amparo para o seu problema.

Este seria o caso, por exemplo, dos fanáticos religiosos capazes de dar a vida em nome da fé?

A verdade é que o religioso fanático tem mais fé em si do que em Deus ou mesmo em valores religiosos, pois é incapaz de olhar muito além de si. A fé fundamentalista é um risco para as religiões, principalmente. Como dizem, o diabo ganhou mais inventando o fanatismo do que o ateísmo.

Há uma santidade conquistada com muita dor, mas há também santos que repousam na leveza, a exemplo de Santa Teresinha e de São Francisco de Assis. Como essas histórias e imagens foram transmitidas através dos séculos?

São imagens construídas. Teresinha de Lisieux sofria de constante “secura” espiritual, ou seja, encontrava pouco consolo na oração. Francisco de Assis passou por várias “noites da alma”. Porém, sem dúvida, há biografias mais poéticas e outras mais dramáticas.

E muitas biografias que são, na verdade, forjadas por humanos...

Sim. Se São Bernardo tivesse saltado alguns séculos e pregado para a quase tuberculosa Santa Teresinha, ela certamente teria se encolhido de medo e pavor. A multiplicidade de personalidades e conjunturas históricas constitui uma das riquezas da santidade: oferecem modelos a todos os padrões dos fiéis.

Uma novela como Roque Santeiro, de Dias Gomes, nos mostra os bastidores da construção de um santo. Quanto há de real nessas histórias? De que modo somos vítimas de fábulas de santidade?

A memória é uma construção e possui o mesmo real de uma narrativa de santos como da maneira que você e eu lembramos das coisas. Alguns santos são profundamente históricos. Temos fotografias de alguns. Santa Bernadete, por exemplo, foi fotografada e o corpo ainda existe. São Marcelo e São Denis de Paris, um que luta com dragão e outro que carrega sua própria cabeça decepada, são um pouco mais difíceis de extrair do campo da lenda.

E onde entra então a história em meio às construções simbólicas?

Mas o historiador não trabalha se o milagre ocorreu ou não, se o santo levitou ou não, se curou ou não doenças, mas na crença de que isto tenha ocorrido. Assim, posso pesquisar com riqueza de detalhes o saci e suas implicações folclóricas e simbólicas, mesmo que não exista o saci em si. A fé nos santos existe.

Então o senhor diria que essa construção simbólica e mesmo aquilo que ela tem de histórica depende fundamentalmente da fé?

Todos compartilhamos graus variados de crenças: de que somos amados pela família, de que não somos traídos pela esposa/marido, de que nossos pais dariam a vida por nós, de que nossos filhos são a coisa mais importante do mundo ou de que são lindos e inteligentes. Tudo isto também é crença, tão plausível como a levitação de alguns santos.

Ironicamente, hoje somos quase onipresentes, mas vivemos absolutamente dispersos – estamos ao mesmo tempo e virtualmente em vários lugares. Essa dispersão digital nos distanciaria da santidade?

O que nos distanciaria da santidade clássica não seria a onipresença em redes sociais mas a nossa fixação no nosso narciso. Com smartphone ou deitados na cama olhando o teto estamos longe de Deus porque estamos imersos em nós mesmos o tempo todo.

E conectados o tempo todo também, especialmente via celular...

O celular só reforça o que vem antes de tudo: nossa fixação vaidosa no narciso.

Tornou-se quase cult afirmar-se ateu. O que o senhor pensa sobre o avanço do ateísmo na contemporaneidade?

O ateísmo existe, sim, e cresceu, mas a religião vai muito bem, especialmente no Brasil. Creio que o ateísmo tem a tendência de ocupar o espaço de um tocador de oboé ou corne-inglês: é um fato interessante, mas numericamente pouco expressivo.

Esta seria, em sua opinião, uma reação ao modo como as religiões tentam conduzir hoje seus fiéis, tanto no catolicismo quanto nas igrejas evangélicas?

Católicos e evangélicos pentecostais e neopentecostais estão apresentando um culto teatral, simbólico, catártico, emotivo, com ou sem imagens de santos. Alguns setores católicos (como carismáticos) têm comportamentos próximos da participação efusiva neopentecostal e alguns setores evangélicos voltam-se a práticas simbólicas, como bênção de pastores, óleo sagrado disso e daquilo, que se aproxima da materialidade da liturgia católica. Estamos perdendo a contemplação, a oração silenciosa, a mística do silêncio e a teofania do Deus escondido. Isso une católicos e evangélicos.

Notamos também o crescimento da intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana. Temos, no entanto, na formação de nosso povo, forte presença do sincretismo. O que, em sua opinião, nos explica hoje como povo?

O preconceito sempre foi forte, apenas está mais visível hoje. Há décadas que os terreiros de candomblé são atacados e que as pessoas que usam suas guias de orixás no pescoço são vistas com mais desconfiança do que alguém com a medalha milagrosa de Nossa Senhora das Graças. O preconceito contra as religiões de matriz africana é o subproduto de dois outros preconceitos mais antigos do que o religioso: o racismo e a demofobia.

Vivemos uma época marcada pelo ódio, mesmo quando este é alimentado pela fé. O que nos leva ao ódio pelo amor?

Pergunta ampla. Amar é um fenômeno individual, odiar pode ser coletivo. Odiar dá uma identidade imediata e forte. Ter e odiar um inimigo em comum é, por vezes, a única coisa que une um grupo. O ódio é mais visível do que o amor e também mais destrutivo. Isso explica tantos apelos ao demônio em detrimento de apelos ao amor de Deus. É mais fácil ter medo de Satanás do que entregar-se ao amor divino. Tanto Deus como Satanás projetam coisas nossas para planos onde possam ser vividas de forma mais ordenada. Estar repleto do Criador não impacta tanto quanto estar possuído pelo demônio. Como diz Sakamoto: “O ódio é um lugar quentinho”.

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