MUITO
Leonardo Padura: "Quase toda arte tem uma posição política"
Por Bruna Castelo Branco
Leonardo Padura leva um pouquinho de Cuba para o mundo. A série de romances policiais Estações Havana, traduzida para 15 idiomas e adaptada pela Netflix em 2016, mostra que, como escritor, diferentemente do que se pensa, dá para viver em Cuba, pertencer a Cuba e, vez ou outra, falar dos problemas de Cuba. Da criminalidade, por exemplo. Padura, um dos autores mais reconhecidos do país, vencedor do Prêmio Nacional de Literatura de Cuba, em 2012, e do Princesa de Astúrias, da Espanha, cresceu numa ilha pós-revolução comunista – e lá decidiu continuar, mesmo com um passaporte espanhol que o levaria para longe. “Eu não saí porque a coisa mais importante para mim é ser escritor, e eu não posso ser nada além do que um escritor cubano e para ser um, pelo menos eu, pelo menos até agora, preciso estar perto de Cuba. Poderia talvez ter vivido melhor em termos materiais, mas me faltaria um sustento espiritual muito importante para o meu trabalho como escritor”. Por agora, ele escreve o livro Los Fragmentos del Imán [Os Fragmentos do Ímã, em tradução livre], que trata do movimento de autoexílio que cresceu entre os cubanos na década de 1990, num tempo de uma crise econômica dura. “Outros não tiveram outra escolha além de emigrar, e eu os compreendo. Espero que também seja compreendido”. Padura estará em Salvador na próxima terça-feira, 6 de agosto, na abertura do Fronteiras do Pensamento, para falar justamente disso: o sentimento de pertencimento e o sentido da vida.
No Fronteiras do Pensamento, o senhor vai falar sobre o sentimento de pertencimento a um local. Cuba é um país marcado por um movimento de autoexílio, muita gente saiu por causa da situação política e econômica. Sente que pertence a Cuba?
O exílio tem sido uma constante na vida cubana desde que nos formamos como nação. A esse fenômeno dediquei um romance inteiro, intitulado La novela de mi vida [no Brasil será lançado pela Boitempo], que não fala da minha vida, mas do poeta José María Heredia, que na década de 1820 vai ao exílio pelas suas ideias políticas. O livro cobre dois séculos da história cubana e fala sobre a permanência deste conflito. E se escrevi esse romance foi, talvez precisamente, para falar sobre o sentimento de pertencimento que os cubanos sentem dentro ou fora da ilha e... o drama que sempre significa o exílio. E esse é, em outra dimensão, o tema da novela que estou escrevendo agora, e que se chamará Los Fragmentos del Imán, mas que está centrada na diáspora da minha geração, um movimento que se tornou muito popular desde os anos 90.
O senhor, mesmo com a cidadania espanhola, decidiu ficar. Dada a situação econômica atual, não seria mais cômodo sair? Por que prefere ficar em Cuba?
A situação econômica de hoje é quase um paraíso comparada com a dos anos 90 – cortes de energia, quase sem comida –, e... então, eu não saí, ainda estou aqui. E eu não saí porque a coisa mais importante para mim é ser escritor, e eu não posso ser nada além do que um escritor cubano e para ser um, pelo menos eu, pelo menos até agora, preciso estar perto de Cuba. Poderia talvez ter vivido melhor em termos materiais, mas me faltaria um sustento espiritual muito importante para o meu trabalho como escritor e para meu espírito de cubano, habanero, mantillero... para o meu bairro, onde nasci e vivo. Outros não pensam como eu, e eu os respeito. Outros não tiveram escolha além de emigrar, e eu os compreendo. Espero que eu também seja compreendido.
No Brasil, neste atual momento político, muitos dos que se opõem ao governo passaram a rejeitar símbolos nacionais, como o hino e a bandeira. É um movimento que também acontece nos Estados Unidos, por exemplo, onde o acirramento político é forte. Acha que tensões políticas deterioram o sentimento de pertencimento de um povo?
Não me atrevo a julgar as atividades dos habitantes de outros países. Eu acredito que só vivendo em uma circunstância, pertencendo a ela, é possível ter todos os elementos do juízo. Dar uma opinião seria muito irresponsável da minha parte.
O livro Hereges, que trata da história dos judeus em Cuba, fala também da vontade de pertencer a algum lugar. Especialmente naquele contexto de holocausto, perseguição e rejeição a um povo. O que o motivou a escrever sobre isso?
Me motivou a força do pertencimento, neste caso um dos mais sustentados, que tem sido o do povo judeu, uma nação que sobreviveu a dois mil anos sem terra sob seus pés, apenas com um livro e uma forma de entender o mundo. E o escrevi porque, no final, somos todos um pouco judeus... ou deveríamos ser, com o orgulho de pertencer a uma dimensão sobre a qual até mesmo ideias muito críticas podem ser mantidas, como fez a agora a professa Yuval Noah Harari, a autora do muito merecido best-seller Sapiens, e as suas continuações, também fabulosas. E também fui levado a fazê-lo pela ideia de que o homem tem o direito de praticar a sua liberdade individual, o seu livre-arbítrio, em qualquer sociedade e em qualquer momento.
Hereges também fala da aflição de carregar o peso da história. No Brasil, a nossa relação com a história não é muito saudável. Negam-se os efeitos dos mais de 300 anos de escravidão, o genocídio do povo indígena, a barbárie da ditadura militar… Como é a relação de Cuba com a própria história?
Eu não saberia como responder a essa pergunta porque a história não é apenas uma, e a ciência da história não é exata. Tudo depende de como as pessoas aceitam o passado, o que elas esperam dele e o que ele lhes oferece para justificar suas posições no presente. Já se sabe que a história não é uma narrativa única, mas milhares de narrativas alternativas. E, assim, é manipulável e sempre, de alguma forma, os vários grupos poderosos ou impotentes escrevem-na de acordo com os seus interesses. Assim, há muitas histórias, porque dependem da leitura de uma posteridade interessada.
Qual é a relação de Cuba com imigrantes hoje? Pergunto isso porque, além de ser uma ilha, o país passou um tempo fechado. Ainda hoje, há turistas que comentam sobre a dificuldade de entrar no país…
Acho que não há muitos turistas com dificuldades para entrar em Cuba. Se essa pessoa não é uma verdadeira turista, então talvez ela tenha problemas se for detectado por algum órgão de inteligência... Isso já aconteceu algumas vezes. Mas, em geral, o país grita por mais turistas e, acima de tudo, oferece algo que na realidade tem: segurança. Com relação aos exilados, há uma postura seletiva. São avaliados a partir de dentro do país em relação às atitudes políticas no exterior. E, se é considerado que a pessoa ultrapassou limites nos seus discursos ou atos, as autoridades cubanas costumam negar-lhe a entrada no país. Mas isto é por vezes aleatório, e vi em Havana pessoas que publicaram ataques diretos ao governo, e não vi, mesmo porque a possibilidade foi negada, outras que tiveram atitudes menos agressivas nas suas opiniões políticas. Isso ainda acontece hoje. Quando um fenômeno como a migração se torna um ato político, é lógico que as condições políticas apareçam. Justo é outra coisa.
Uma das suas obras mais conhecidas é a série de romances policiais Estações Havana. De onde vem a sua afinidade com o gênero? Tem alguma relação com o fato de você ser jornalista?
Não. Ser jornalista me permitiu crescer como escritor, me deu ferramentas, maneiras de me expressar melhor. Mas as minhas preferências literárias cresceram ao longo de um caminho paralelo, porque sou também, e sobretudo, filólogo e estudante de literatura que se tornou romancista, escritor de ficções. E a minha proximidade com o romance policial foi forjada em muitas leituras ao longo de vários anos, não com base em uma relação jornalística com a realidade do país.
Acredito que, de fora, Cuba muitas vezes é vista em preto e branco. Para alguns, pode ser o inferno comunista, para outros, o paraíso socialista
Em uma entrevista, o senhor disse que não gosta que a política esteja em primeiro plano em seus romances, mesmo que acabe tocando em temas como criminalidade e desigualdade. Ultimamente, temos visto muitas discussões entre arte e militância, alguns artistas e críticos dizem que a arte militante é mais esvaziada. Qual a sua visão sobre essa discussão? Toda arte é política?
Quase toda arte tem uma posição política, às vezes militante e visível, às vezes cidadã e menos visível. Minha posição é escrever trabalhos em que o sustento político dos eventos não é o que determina minha visão da realidade, mas tento vê-la de uma perspectiva mais social, mais cívica. Não acho que seja saudável demais para a arte se tornar um instrumento de um programa político, porque depois é muitas vezes usada por políticos. E se você quiser um bom exemplo do que acontece com a arte quando ela se torna uma ferramenta da política, há o realismo socialista. Mas eu não quero dizer com isso que todas as tentativas de misturar arte e a política sejam um fracasso. Nem que outros artistas pensam como eu.
O senhor também já disse que na sua adolescência em Cuba, nos anos 1970, as liberdades individuais eram extremamente limitadas. Como está hoje, houve uma mudança?
Creio que em Cuba, durante anos, muitos direitos individuais foram maltratados, como o direito de ter e praticar uma religião, bem como o direito a ter uma inclinação sexual que não fosse hétero e muitas pessoas sofreram com estas decisões ou inclinações. Casos como o da religião e da sexualidade, porém, foram superados e hoje não são um problema. Restaria resolver a possibilidade de ter ideias políticas e econômicas diferentes e ser capaz de colocá-los em prática, algo que ainda é limitado no país, embora na Constituição o direito à liberdade de pensamento seja dado.
Quando pensamos em Cuba, a sensação que temos é que é um país totalmente mergulhado em assuntos de política, como se todos falassem sempre sobre isso, seja à mesa, nos bares, nas ruas. Como é a relação dos cubanos com a política? Já foi assim, ainda é assim?
Acredito que, de fora, Cuba muitas vezes é vista em preto e branco. Para alguns, pode ser o inferno comunista, para outros, o paraíso socialista e o bastião anti-imperialista... e eles teriam sua razão para pensar isso, mas no meio há muitas pessoas que vivem suas vidas sob o peso da política – como em qualquer estado moderno – e refletem sobre isso, e pessoas que, na mesma situação, dificilmente pensam no assunto.
Nas suas obras, os conflitos e desigualdades de Cuba ocupam um espaço importante na narrativa. Como essas críticas à situação do país e, consequentemente, ao regime são vistas pelos cubanos?
Acredito que as pessoas as veem a partir das suas posições, gostos, necessidades, ideias... Acho que algumas pessoas vão pensar que estou exagerando e que sou demasiado crítico, e outros, que digo a verdade. Alguns dirão que estou abaixo da realidade. Posso apenas assegurar que a verdade é relativa e que pode haver muitas verdades sobre Cuba ou qualquer outra coisa. Mas a mentira é absoluta e, nos meus livros, não há uma única mentira sobre o que é Cuba e nós, cubanos, vivemos. E eu vou te dizer: quando as pessoas em Cuba puderam ler – aqueles que conseguiram um exemplar – meu romance El hombre que amaba a los perros, muitos me disseram, por várias razões, que estavam gratos por eu ter escrito um romance que lhes permitiu compreender uma parte da história que eles não conheciam bem, mesmo da sua própria história pessoal que não compreendiam bem.
Você já chegou a receber alguma retaliação do governo pelas críticas?
Não sei o que considera represálias. Se represália é prisão, então não. Se a represália é que, durante anos, quase não se falou de mim na TV ou na imprensa oficial, então sim. Mas, até hoje, faço o meu trabalho e olho para a frente, escrevo, viajo, ganho prêmios no exterior e, por vezes, também em Cuba. Por exemplo, ganhei o Prêmio dos Críticos Cubanos oito vezes. O outro autor que mais ganhou tem três prêmios de La Crítica.
A gente está vivendo uma onda direitista em todo o mundo. Muita gente acredita que políticas de esquerda levam um país a se transformar em Cuba ou Venezuela e que o Brasil realmente seguia por esse caminho. Quando Bolsonaro assumiu a presidência, disse que iria livrar o Brasil do comunismo. Como você, que de fato vive em um país comunista, enxerga esses comentários?
Quer que te diga o que penso de Bolsonaro? Não, eu não vou fazer isso... Direi apenas que quando te ouvi fazer a pergunta, pensei que estava em um cenário dos anos 50, com um discurso da Guerra Fria. E que me parece curioso, só curioso – não digo mais nada – que, com um político que diz coisas desse tipo, tenha havido tantos brasileiros que votaram nele e elegeram-no presidente.
O governo Obama, nos Estados Unidos, fez as pazes com Cuba, pelo menos na teoria. Agora, com Trump, a inimizade entre os dois países volta a ser assunto. Você enxerga algum efeito prático nessa mudança?
A política de aproximação de Obama pode ter trazido mudanças para Cuba. Por exemplo, em setores de pequenas empresas privadas que tiveram um bom momento, nos intercâmbios culturais, intercâmbios pessoais, etc. A política de Trump não faz nada além de repetir modelos anteriores, talvez ainda mais agressivamente – aplica plenamente o Helms Burton Act [lei federal dos Estados Unidos que fortalece o embargo contra Cuba] –, e terá o mesmo resultado que os seus antecessores. A vida diária de muitos cubanos será muito prejudicada, e o governo terá como aliada a política hostil do poderoso inimigo. E continuaremos com a retórica... da Guerra Fria!
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes