MUITO
Luciana Rodrigues Silva: "O movimento antivacinas é absolutamente equivocado"
Por Tatiana Mendonça | Foto: Adilton Venegeroles | Ag. A TARDE

Você, que por acaso me lê, é pai ou mãe de uma criança pequena? Costuma dar o celular para a filha ou o filho quase como uma chupeta, para ter uns minutinhos de paz em meio ao turbilhão que é botar e criar um ser humano neste mundo? Não estou lhe julgando nem nada, mas é dever avisar que a recomendação da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) é que meninos e meninas de até 5 anos tenham zero acesso a celulares e tablets. “Ela deve estar é correndo com os pais, brincando na natureza”, diz a baiana Luciana Rodrigues Silva, primeira mulher a presidir a SBP, que reúne mais de 23 mil sócios. É a maior sociedade médica do país e a segunda do mundo, conta Luciana. O número reflete, naturalmente, a quantidade de pediatras no Brasil. São 39 mil. Entre as especialidades, a pediatria só perde para a clínica médica. O dado seria um alento, não fosse a má distribuição crônica. A região Sudeste concentra 55% destes profissionais. Apenas 16% estão no Nordeste. Para Luciana, é responsabilidade dos gestores públicos equacionar esse quadro. “Infelizmente, na rede pública muitas crianças não têm um pediatra. Elas só são atendidas numa emergência, numa situação de doença, e isso é muito ruim”. Professora da Universidade Federal da Bahia, ela lida há 40 anos com o universo das crianças, adolescentes e seus pais, ora preocupados, ora aflitos. Em entrevista à Muito, Luciana fala sobre retrocessos na área de saúde, como o aumento na mortalidade infantil e a volta do sarampo.
A mortalidade infantil voltou a crescer no Brasil. É a primeira vez que isso acontece desde 1990. Como a senhora analisa essa situação?
O aumento que teve na mortalidade, a diminuição nos índices de vacinação, que é extremamente preocupante, o aumento no número de mortalidade por arma de fogo que acomete adolescentes... Tudo isso está ligado às próprias questões da nossa sociedade atual. Mas é fundamental para que a gente reverta esses dados que exista um pediatra bem informado, trabalhando em boas condições. Muitas das causas de mortalidade seriam evitáveis se nós tivéssemos um número maior de pediatras e se nós tivéssemos também condições adequadas nos serviços de saúde, o que nós sabemos que nem sempre acontece, sobretudo nas cidades mais remotas.
Mas o Brasil vinha desenvolvendo práticas exitosas nessa área, e parece haver um retrocesso na política de redução de mortalidade infantil. Como explicar essa diminuição?
Veja só, uma prática exitosa maravilhosa, exemplo para o mundo inteiro, tem sido os hospitais Amigos da Criança, que apoiam a amamentação. Acho que houve um declínio tanto de aporte financeiro como de aporte científico nas condições de trabalho, no número de profissionais. Acho que na hora que os gestores entenderem que o futuro do Brasil está na mão da criança e do adolescente de hoje... Então, eles têm que fazer o quê? Boa educação, escola em tempo integral e bons cuidados de saúde. Essas duas medidas são importantíssimas para que o Brasil possa decolar. E a questão da segurança também é muito importante, mas sobretudo para a criança é educação e saúde. Se você aumenta, por exemplo, a licença-maternidade, apoia a mãe que amamenta em todos os níveis, apoia o pai também, se você dá creche nos primeiros anos, se dá garantia de escola em tempo integral, se cria serviços de atenção primária, secundária e terciária, com a presença do pediatra para todas as crianças, o país dentro de 10 anos será outro.
Ainda falando em retrocessos na área de saúde, o sarampo também voltou a crescer. Em 2016, o Brasil recebeu da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) o certificado de erradicação da circulação do vírus. A gente está vendo, especialmente nos Estados Unidos, mas também no Brasil, o crescimento do movimento antivacina. Como a Sociedade Brasileira de Pediatria faz frente a isso?
A volta do sarampo é algo gravíssimo. Nós temos nos posicionado de maneira enfática com uma série de documentos, temos ido ao ministro da Saúde, desde a última gestão, pedindo medidas, divulgado em redes sociais, feito simpósios, entrevistas, porque esse movimento antivacinas é um movimento equivocado, absolutamente equivocado. Existe uma série de fake news que têm sido disseminadas na sociedade e que, às vezes, por falta de informação adequada, por falta de o pediatra da criança conversar com os pais e explicar a importância de vacinar os filhos, algumas mães deixam de vacinar. Porque se a criança só vai ver o médico quando ela tem uma febre, uma diarreia, uma pneumonia, no pronto-socorro, ela não tem um vínculo com o médico, e o médico não vai ter tempo de orientar vacinação, dizer por que é importante. O que a gente também propôs é aumentar o horário de ação dos postos de saúde, porque a maioria das mães e dos pais trabalha. Só o Ceará fez isso. Mas se a gente estendesse o horário de ação dos postos de saúde até as 20h, 21h, e abrisse nos dias de sábado, nós poderíamos também ter uma frequência maior. Pedir também nas escolas públicas e particulares para que se façam campanhas para que as crianças sejam vacinadas. Acho que tem muita necessidade de educação das famílias, de orientação.
É errado a criança pequenininha ficar na frente de telefone, de tablet. Ela deve estar é correndo com os pais, brincando com a natureza
Estudos internacionais indicam que nós estamos, pela primeira vez na história, diante de uma geração que tem expectativa de vida menor do que a de seus pais, por conta da alimentação inadequada. Mais de 30% das crianças brasileiras estão com sobrepreso. Como sair do discurso para a prática?
A obesidade é uma epidemia no mundo inteiro. Mas há alguns países que têm feito programas de educação que estão conseguindo reverter isso. Novamente, aqui, ter o pediatra que oriente a amamentação exclusiva nos seis primeiros meses e a nutrição adequada das crianças é fundamental. Outra coisa fundamental é a orientação da atividade física. Toda criança, todo adolescente tem que fazer pelo menos uma hora de atividade física por dia. Seja brincando, seja jogando, correndo, se movimentando, sabe? E uma coisa que tem contribuído para isso também é o tempo que as crianças ficam na frente da tela. Celular, tablet, computador. E o Brasil tem um número de horas em frente à tela assustador. Uma média de cinco, seis horas por dia das crianças. Quer dizer, as crianças ficam em casa, comendo na frente da tela. E, além da obesidade, essa inatividade também vai dar problemas de comportamento, a obesidade vai dar vários problemas articulares, problemas de bullying, de aceitação nas escolas. Tem também uma série de complicações para doenças hepáticas, cardiovasculares, muito significativas.
A escola está participando como deveria desse movimento por uma vida mais saudável?
Deveria ter uma participação maior, orientando as próprias crianças e adolescentes no sentido de propiciar o autocuidado, para que elas próprias tivessem conhecimento, e também orientar os pais. Mudar hábitos é uma das coisas mais difíceis que tem, mas só através de programas de educação sistemática é que nós podemos fazer isso.
A senhora falava do tempo que as crianças passam hoje em dispositivos eletrônicos, muitas vezes repetindo um comportamento dos pais. É correto falar em vício em crianças tão pequenas? Qual é a recomendação da Sociedade Brasileira de Pediatria para lidar com essa questão? Há um número máximo de horas indicado?
Sim, sim. Até os 5 anos, a criança não deve ficar na frente de nenhuma tela. Porque é a época que ela está fazendo o desenvolvimento cognitivo, a interação social, é a época de maior crescimento e desenvolvimento cerebral. A partir dessa idade, de 5 anos, ela pode ficar uma hora [por dia] e na adolescência se orienta que não deve ultrapassar as duas horas.
Mas até 5 anos é zero, então...
O ideal é zero. É errado a criança pequenininha ficar na frente de celular, de tablet. Ela deve estar é correndo com os pais, brincando com a natureza. Os pais devem estar conversando, ouvindo a criança, mostrando a beleza dos parques, tomando banho de mar, fazendo atividades de interação social, porque isso também vai ser muito importante para o desenvolvimento e a inteligência emocional da criança.
E tem receita para tirar a criança da frente do celular? Hoje o que a gente mais vê são os pais dando os celulares para os filhos pequenos, para terem uns minutinhos de paz...
Eu acho que é orientar os pais para os malefícios que isso pode determinar, a curto e longo prazos. Distúrbios de sono, comportamentais, alterações escolares, obesidade, falta de socialização, doença cardiovascular, enfim, um monte de malefícios que precisam ser mostrados ao pai e à mãe para que eles possam dizer: bom, hoje você fica uma hora, para as crianças maiores de 5 anos, e depois acabou seu horário, agora vamos brincar, vamos correr, vamos desenvolver uma atividade física. É uma questão de educação, mesmo.
A senhora especializou-se em gastroenterologia. Muitas crianças hoje são diagnosticadas com refluxo. Por que isso acontece?
Nós fundamos, há mais de 35 anos, o Serviço de Gastroenterologia e Hepatologia Pediátrica da Universidade Federal da Bahia, onde sou professora titular. E a questão específica que você me pergunta do refluxo a gente tem que imaginar o seguinte: o refluxo é uma coisa natural que acontece no bebê pequeno até os 4, 5 meses, de maneira fisiológica, normal, que não causa problema nenhum. Excepcionalmente, ele pode ser um refluxo grave que precise de intervenção com a postura para dormir e, mais raramente ainda, de algum medicamento ou até de uma cirurgia. Mas, na maioria das vezes, a condução é exclusivamente postural e nutricional.
Existe uma relação entre o aumento do refluxo e o leite artificial, a fórmula?
O que a gente tem que imaginar é que o melhor alimento para a criança até o sexto mês é leite materno e ponto final. É o melhor alimento do ponto de vista nutricional, é o melhor alimento para proteger das doenças, é o melhor alimento por causa da microbiota intestinal [antes, flora intestinal]. Então, sempre que for possível, é o alimento que deve ser dado. O refluxo pode se manifestar com mais frequência nas crianças que são alimentadas com fórmulas, e o refluxo também pode ser uma manifestação da alergia à proteína do leite artificial. Então, algumas crianças que têm alergia alimentar podem se manifestar com o refluxo.
Se a criança só vai ver o médico quando ela tem uma febre, uma diarreia, uma pneumonia, no pronto-socorro, ela não tem um vínculo com o médico
As mães muitas vezes ficam frustradas quando vão ao pediatra e voltam com um diagnóstico de virose, como se as crianças não tivessem sido devidamente atendidas. Como a senhora vê isso?
Na maioria das vezes, a criança pequena tem mais infecções virais do que bacterianas. Toda consulta, para que seja boa, o médico, o pediatra, precisa ouvir e perguntar a história com bastante detalhe e fazer um exame completo da criança. Aí depois, se for necessário, em algumas situações, ele poderá pedir exames. Mas a história do paciente, o exame físico completo, são insubstituíveis para uma boa consulta. Em algumas situações, se trata de virose. Em outras, de infecção bacteriana, que precisa do tratamento adequado. Mas a consulta precisa ser feita de maneira sistematizada, com todos os protocolos, com todos os passos, não se pode fazer uma consulta em pouco tempo, de maneira negligente. A criança precisa ter a tensão arterial medida, ela tem que ter todos os segmentos corpóreos examinados, tem que ser pesada, tem que se ver a estatura, tem que se fazer avaliação nutricional, tem que se perguntar do sono, da atividade física, da alimentação, dos hábitos. Tem que se fazer uma consulta completa.
Tem um jeito de evitar aquelas doenças que as crianças pegam quando começam a ir para a creche?
A criança nos dois, três primeiros anos, é esperado que ela tenha entre cinco e seis infecções respiratórias altas. E quando vai para a creche, é um convívio muito próximo com muitas crianças, então... É meio difícil de a gente diminuir ocorrência. Agora, uma coisa muito importante para diminuir a incidência das infecções respiratórias é que todo mundo que lida com as crianças deve sempre lavar muito as mãos. E aí quando alguma criança apresentar febre, ou coriza, nesse dia ela não deve ir para a creche contaminar os outros. Então, tem uma série de medidas que a gente tem que estar atento para não disseminar para todo mundo.
A senhora é pediatra há 40 anos. Qual era a principal preocupação dos pais quando a senhora começou a trabalhar nessa área e qual é a maior hoje? Mudou muito?
As preocupações, as queixas, são mais ou menos as mesmas. Porque um filho é algo de mais precioso que qualquer pessoa pode ter. Às vezes, o pai ou a mãe adiam a ida ao médico, mas não deixam de levar a criança. A preocupação dos pais é muito grande para que seus filhos se desenvolvam de maneira adequada. Quando um filho adoece, a família toda se desestrutura junto.
A senhora percebe que a maternidade muda nos casos de mulheres que estão tendo filhos com mais idade?
Acho que a mãe mais madura tem condição, de maneira geral, de ter uma percepção melhor no desempenho da sua maternidade. Mas existem mães jovens que são excelentes, a gente não pode generalizar. Vai muito do nível de desejo da mulher em engravidar, porque quando ela deseja, já é um ponto positivo para que ela possa desenvolver uma maternidade mais tranquila. Mas a gente não pode esquecer que, infelizmente, a gravidez da adolescente ainda é uma realidade na condição mais pobre, onde as meninas não têm acesso à anticoncepção como deveriam, não tem acesso à educação sexual como deveriam. Ter um filho é uma responsabilidade muito grande. O adolescente não está preparado ainda para ser mãe e pai. Novamente, entra o papel do pediatra para orientar o desenvolvimento, a atuação sexual, com responsabilidade.
A pediatria é a segunda maior especialidade no país, atrás apenas da clínica médica. Mas há uma má distribuição dos pediatras no Brasil. Mais da metade (55%) está na região Sudeste, e apenas 16,2% estão no Nordeste. Como resolver essa questão?
Há um grande interesse pela pediatria, mas de fato o maior número de pediatras está na região Sudeste. A nossa principal bandeira é que a fase mais importante da vida das pessoas está na faixa etária pediátrica, que são as crianças e o adolescente. É nessa fase onde se pode desenvolver todo o potencial das pessoas. Temos feito grandes esforços para sensibilizar os nossos gestores públicos de que é necessário na assistência primária, secundária e terciária, nos atendimentos de pronto-socorro, no atendimento da gestante, antes de a criança nascer... Em todas essas circunstâncias precisa haver um pediatra para atender a criança, o adolescente e suas famílias.
Mas como essa distribuição poderia se dar na prática de forma mais equilibrada?
Isso depende dos gestores nos serviços captando esses médicos para irem para a assistência privada e pública em nível de consultório, de especialidades nas unidades de atenção básica, em todos os níveis de atendimento se criar e se ampliar o número de pediatras. Infelizmente, na rede pública hoje muitas crianças não têm um pediatra. Elas só são atendidas numa emergência, numa situação de doença, e isso é muito ruim. A criança e o adolescente precisam ser vistos pelo pediatra de uma maneira sistemática, para que se crie um elo de confiança.
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