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Mês do milho: as várias formas de preparar o cereal na América Latina
Por Gilson Jorge | Foto: Raul Spinassé | Ag. A TARDE

À exceção dos convidados Catar e Japão, todos os países que participam da Copa América 2019, que começa no dia 14 de junho, têm o milho como base de sua alimentação, em algum grau. Símbolo maior das festas juninas no Nordeste do Brasil, o cereal começou a ser cultivado em pequenas ilhas que hoje são território do México, há 7.300 anos, segundo estudo da pesquisadora estadunidense Mary Poll, publicado em 2007 pela revista acadêmica Pnas. O nome científico da matéria-prima do nosso cuscuz é Zea mays, e, para antigos povos originários, os grãos amarelos ou brancos eram sinônimo de sustento da vida.
Uma das receitas mais populares criadas pelas populações indígenas do norte da América do Sul é a arepa, uma espécie de panqueca à base de milho branco que pode ser comida com diferentes recheios. Tão popular que a Venezuela celebra desde 2012, no segundo domingo de setembro, o Dia Mundial das Arepas. Alguns dos acompanhamentos mais comuns são queijo, linguiça, carne de frango, ovos de codorna e carne bovina.
“Originalmente, as arepas são assadas em forno de pedra”, explica a colombiana Alícia Romero, enquanto transforma com admirável destreza nos dedos as bolas de massa apanhadas na tigela em harmoniosos discos que são levados à forma. Uma prática que ela já dominava aos 7 anos de idade, quando morava na pequena aldeia de Cabrera de Cundinamarca, nos andes colombianos, quando teve que se mudar às pressas com a família para Bogotá, fugindo do bombardeio à sua cidade natal durante o conflito armado entre os partidos liberal e conservador.
Alícia mora há oito anos em Salvador, onde faz companhia a dois de seus cinco filhos e uma neta. O mais novo dos filhos, Dani Velásquez Romero, é professor de letras na Ufba, pesquisador e, há dois anos, um dos coordenadores do Patchamãe, centro de integração latino-americana criado em parceria com a professora de espanhol Camila Mora Melo, na Avenida Constelação, Monte Serrat, bem atrás do Quartel do Exército.
O adjetivo “gringos”, com o qual os moradores se referem aos inquilinos colombianos, mostra que a integração dos países da região ainda é um sonho, mas de alguma forma o gosto pelo milho representa uma possibilidade de identificação. As arepas devem integrar em breve o cardápio do Patchamãe durante os eventos culturais promovidos pela casa.
Na Venezuela, o São João é uma celebração das comunidades afrodescendentes do litoral, onde se consome sopa de milho
Alícia aprecia quase tudo o que é feito com milho. A chicha, uma bebida fermentada que se consome ao longo da Cordilheira dos Andes desde o Império Inca. E também os brasileiríssimos mungunzá e pamonha. “O bolo de milho também”, sussurra respeitosamente a técnica em radiologia Natália Velásquez, para lembrar à sua avó de mais um prato sem querer chamar atenção sobre si mesma.
Natália repete a postura na cozinha. Silenciosamente, corta em pedacinhos as carnes e os vegetais do recheio e, de vez em quando, responde a demandas de Alícia, sem jamais elevar a voz. A divisão de tarefas na preparação de alimentos é comum em regiões andinas, especialmente para pratos que demoram mais de um dia para ficar prontos. No caso da arepa, o milho branco tem que ser cozido com 24 horas de antecedência para que sua consistência esteja adequada após ser amassado.
Para se preparar a hallaca, um dos principais pratos da Venezuela, leva-se dois dias. No primeiro, é preciso cozinhar ao vinho o guiso, que é a mistura das carnes de pernil, boi, frango e toucinho, juntamente com os temperos. Hallaca, aliás, significa mistura, em guarani. A massa, à base de milho, é preparada no dia seguinte. “Toda a família se envolve na preparação, os homens normalmente se dedicam a cortar e limpar as folhas de bananeira, nas quais a comida é envolvida. As mulheres velhas se dedicam ao recheio, e as mulheres novas, aos legumes”, explica a artista de dança venezuelana Nirlyn Seijas, que mora há 10 anos em Salvador, onde fez mestrado e doutorado em cultura e sociedade e é uma das integrantes do coletivo Deslimites, que administra a Casa Rosada, espaço de arte feminista nos Barris.
Saudade
Nirlyn, que prepara hallacas para comemorar o Natal, quando recebe visita de familiares e amigos, aproveita as festas juninas para matar a saudade de comidas à base de milho. “Na Venezuela, o São João é uma celebração das comunidades afrodescendentes do litoral, onde se consome sopa de milho. Nos Andes, os festejos de Santo Antônio e São Pedro são mais fortes”, diz. Outros produtos à base de milho tradicionais em seu país são a cachapa, uma espécie de panqueca, e o pão de milho. “Antes da crise, as pessoas comiam duas vezes por dia”, declara.
Sua colega no Deslimites, a estadunidense de origem guatemalteca Nefertiti Altan, prepara arepas para o café da manhã e para o lanche. Mas com a dificuldade de encontrar a variedade de milho branco que se consome na Guatemala, sempre que vai à Califórnia aproveita para fazer estoque: “Lá é fácil de encontrar”.
Mesmo com a supremacia da influência cultural recebida da Itália e da Espanha, a Argentina, que é mundialmente conhecida pela excelência da sua carne bovina, comemora uma de suas principais datas nacionais, a Revolução de Maio, com o locro, um ensopado à base de milho branco.

Entre 18 e 25 de maio de 1810, os argentinos lutaram com as tropas espanholas e, vencedores, destituíram o vice-rei Baltasar Hidalgo de Cisneros e implantaram o primeiro governo nacional, 44 dias antes da declaração de independência, em 9 de julho.
Criado pelas populações indígenas, o locro tem diferentes receitas, a depender da região da Argentina ou do Paraguai, onde também é uma comida importante. Mas, normalmente, os grãos são misturados com cebola, pimentão, tomates e uma proteína, que pode ser carne bovina, bacon ou costela de porco.
À época da Independência da Argentina, o locro era a comida mais popular na região do Rio da Prata. Um prato fácil de fazer, barato e muito nutritivo, cujo preparo foi ensinado aos conquistadores espanhóis pela nação quéchua, que ocupava os territórios que hoje integram a Bolívia e o norte da Argentina. Assim como ocorria com a feijoada no Brasil, o locro era desprezado pelas classes altas, mas com o tempo adquiriu status de patrimônio nacional.
Veterano da Guerra das Malvinas, Luís Argentino dos Santos às vezes prepara locro para um grupo de amigos argentinos e suas mulheres baianas, que se encontram semanalmente para conversar, beber e comer. Ele escolheu a Bahia para viver, três anos depois de encerrado o conflito militar com o Reino Unido. Decidido a mudar de vida após perder quatro amigos na guerra, saiu em viagem e, ao se apaixonar, decidiu fincar raízes em Salvador.
Dos santos
A gastronomia se tornou a melhor possibilidade de ganhar a vida. Desde 1991, ele prepara comida por encomenda: churrasco, pizzas, locro. “Quando as pessoas procuram no Google alguém que faça churrasco, veem o meu nome e pensam: se é argentino, sabe fazer churrasco”, brinca, a respeito da vantagem que consegue por ter sido batizado assim. Herdou o Dos Santos do avô gaúcho. E o Argentino do nome é uma referência ao dia em que nasceu, 11 de maio, Dia do Hino Argentino.

Mas assim como uma pizza de dois sabores, Luís é meio argentino e meio baiano. Tanto que desembarcou em Salvador em 1985, em um 1º de julho, véspera da Independência da Bahia.
Pouco interessado por futebol, Dos Santos não vai conseguir ficar indiferente à Copa América. Muitos de seus amigos são fanáticos pelo esporte e os confrontos da seleção argentina devem gerar reuniões extraordinárias em sua residência, que funciona temporariamente como sede informal da Casa Martin Fierro, associação de argentinos na Bahia que homenageia o personagem homônimo criado pelo poeta José Hernández.
“Eu me contento em estar com eles e fazer a comida”, diz o chef, que, além do cardápio tradicional argentino, faz pratos inovadores, como a pizza vegetariana, cuja massa leva farinha de trigo e farinha de milho. Dos Santos não é tampouco um entusiasta das festas juninas, mas entre os pratos brasileiros feitos à base de milho, o seu preferido é o cuscuz, servido com manteiga. “É fácil, rápido e preenche o estômago”.
Acaçá
Até a década de 1970, era comum ver no Santo Antônio Além do Carmo e outros bairros do Centro Histórico o caminhar de mulheres negras vendendo acaçá, um bolinho feito à base de milho branco cujo preparo da massa é semelhante ao da arepa. A cena foi imortalizada por Dorival Caymmi na canção Acaçá, que retrata “o jeito dela marcar, sorrindo com dentes alvos, a bata caindo do ombro, caindo pro peito”.
“Era uma comida tão importante quanto o acarajé e tem um valor histórico. Era vendendo esse bolinho nas ruas que escravas de ganho conseguiam comprar sua alforria”, diz Leila Carreiro, proprietária do restaurante Dona Mariquita, especializado em comidas indígenas e africanas.

As escravas de ganho eram mulheres capturadas por pessoas da elite que faziam trabalhos remunerados para outras pessoas e repassavam parte do dinheiro obtido para quem as capturou. A iguaria acabou desaparecendo das ruas na década de 1990 e sua comercialização ficou restrita a feiras populares, onde é comercializada para terreiros.
No candomblé, o acaçá é uma comida devotiva a Oxalá. E os bolinhos que se vendem na feira são cozidos na água e quase não têm sabor, pois a oferenda aos orixás não pode ter tempero.
Há nove anos, Leila incorporou o acaçá ao cardápio de seu restaurante, como forma de resgatar a tradição, e acrescentou uma opção coberta com doce de goiaba, servida como sobremesa e batizada de Sorriso de Oxalá.
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