CRÔNICA
Meu Pepe Legal
Confira a crônica de ró-Ã
Por ró-Ã*
De acordo com Rubem Alves, o mais difícil para um escritor é fazer parecer que não deu trabalho algum. Quando comprei um livro contendo cartas entre Clarice Lispector e Fernando Sabino, fiquei sabendo que até a deusa sofria com dúvidas excruciantes ao compor suas obras viscerais, de originalidade sem par, buriladas até a exaustão, e o leitor não faz ideia dos torturantes penares.
Depois da cria parida, lambe-se a cria. Encontra-se uma pedra, precisa ser polida. É a parte que mais me agrada, embora não fique pronta nunca.
Saramago dizia que livro não se termina: publica-se. Haverá sempre algo a ser retocado. Li também uma vez Chico Buarque brincando que, se fosse pintor com quadro em museu, ficaria esperando uma distração do guarda pra ir de mansinho alterar pinceladas imperfeitas.
Me espanta que artistas como Clarice e van Gogh tenham se tornado populares, já que não são de digestão tranquila. Talvez porque gritos tão desesperados sejam impossíveis de ignorar: encontram nossas próprias dores e nos irmanam.
Todos queremos pertencer. Alguns se guiam por exemplos e caminhos que trazem claridade. O meu escolheu-se desde sempre, creio que nasce conosco e se manifesta mais cedo ou mais tarde. Ainda menina, acreditava que dentre os lobos que podemos ser haveria aqueles que não devorariam vovós por prazer ou pra levar vantagem; talvez por fome, caso a velha estivesse dando sopa. Mais tarde, entendi que essa fome pode ter naturezas diversas e é compreensível que um grupo de oprimidos resolva dar um basta canino à situação.
Sou uma vovozinha de netos impossíveis, porque escolhi não dar ninguém à luz. Certa vez, o videoartista mineiro Eder Santos me questionou sobre ser nulípara: eu era uma pessoa tão bacana! Ué!? Ele também era bacana sem ser pai. Será que me achava mais na obrigação, pela minha condição de mulher?
Confesso: sempre que via as dores do parto nos filmes, decidia que não queria passar por aquilo. Seriam muito mais ferozes que as cólicas menstruais me despedaçando todo mês. Só se acalmavam com bolsa d’água fervendo, não sei como meu útero não cozinhou. E isso me leva à questão do aborto, que já teria sido plenamente legalizado há anos, se aos homens coubesse amargá-lo psicologica e fisicamente. E só repito o que outros sacaram faz tempo.
Um espírito que você não permitiu reencarnar! – rugiriam alguns. Vai pagar por isso, desgraçada! Mas quem mandou o espírito escolher o ventre errado? E o dono do espermatozoide que fertilizou o óvulo não vai também ser condenado a duras cacetadas?
Quem nos julga são as crenças humanas, o Cosmos não tá nem aí. Espero que admita as saias justas nas quais nos coloca, reconheça que a maioria tentamos fazer o melhor, e olhe pela lagartixa que meus gatos alucinados estão tentando pegar agora, só que ela não é besta e correu pro teto inalcançável. Entretanto, às vezes dão mole e desprendem o rabo que renascerá. Doloroso, mas a gente véve.
Penso também em meus textos como frutos. Tudo o que os compõe me exige muito, porém exerço sobre eles controle quase total – diferentemente de rebentos em carne e osso. De uns gosto mais, de outros, menos, e não preciso tentar disfarçar minhas preferências.
Não sei como eram Clarice mãe e Fernando pai. É possível que a percepção que deles têm os filhos não corresponda exatamente à obra que nos legaram. E provável que sua produção escrita encerre a maior perfeição que lhes competia.
Apesar das costumeiras digressões, esta crônica pretende render homenagem ao ex-Tupamaro José Mujica, que acredita estar se aproximando do fim de seus dias por aqui. Pepe irradia um brilho capaz de atingir até bolsonarentos como um irmão meu – admirador que nunca lhe daria o voto, pois aí já entra o lance de esquerda, comunismo, lagartixas e cobreiro. Mas essa contradição deve espetar em algum lugarzinho.
Espetos penetram mais fundo que alegrias, tanto os que nos rasgam de uma só vez quanto os que vão perfurando aos poucos, mas sem dar trégua. No entanto, algumas horas felizes têm o condão de apaziguar momentaneamente tristezas muitas e teimosas. Melhor mirar sempre no teto e fazer todo o esforço pra chegar até ele, mesmo sem o rabo. Faz mal nenhum ser um cotó sobrevivente, até que a morte nos separe a alma dos apêndices.
*ró-Ã é autora de Dor de facão & brevidades
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