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MUITO

"Muito do que nos leva ao sofrimento é a ignorância"

Por Kátia Borges

30/10/2017 - 9:34 h | Atualizada em 21/01/2021 - 0:00
Monja Coen foi a primiera mulher não japonesa a assumir a Federação das Seitas Budistas do Brasil
Monja Coen foi a primiera mulher não japonesa a assumir a Federação das Seitas Budistas do Brasil -

Cláudia Dias Baptista fez 70 anos em junho último, e seu sobrenome trai de imediato o parentesco com os irmãos roqueiros Sérgio e Arnaldo, dos Mutantes, de quem é prima. Desde que se tornou monge budista – e a primeira mulher de ascendência não japonesa a assumir a presidência da Federação das Seitas Budistas do Brasil –, Monja Coen foi se distanciando de todos os rótulos que nos aprisionam, sejam as referências exclusivamente familiares, a aparência feminina ou a idade. A expectativa de sua chegada ao lobby do hotel é a de que seja a personificação da paz. Mas as expectativas são mesmo uma antessala da ilusão. O que ela traz consigo é algo muito mais próximo da alegria, um contentamento tranquilo que se expressa na atenção plena posta no interlocutor. Em seu novo livro, O sofrimento é opcional – Como o zen budismo pode ajudar a lidar com a depressão (BelaLetra, 2017), Coen Sensei conta parte da vida tumultuada que a levou a uma tentativa de suicídio e à busca pelo equilíbrio. De depressão entende, embora confesse não ser especialista. “Antes do século 19, e da psicanálise, os religiosos, os xamãs e os monges cumpriam o papel de auxiliar as pessoas”, diz. Nesta entrevista, conversamos sobre o nosso tempo.

O chamado “mal do século” é tema de seu novo livro, O sofrimento é opcional – Como o zen budismo pode ajudar a lidar com a depressão (BelaLetra, 2017). Qual a origem desse mal? O que o fez tão forte e presente na contemporaneidade?

Vivemos hoje sob forte pressão, cercados pela desesperança, bombardeados todo o tempo por notícias negativas. A imprensa não nos traz nada que não seja violência, guerra e destruição. Também vivemos em conflito internamente, tanto com aquilo que somos quanto com o mundo em que vivemos e, sem nos conhecermos, ficamos ainda mais perdidos. Na verdade, a depressão, ainda que em menor escala, sempre existiu, mesmo sob outros nomes. No romantismo, por exemplo, muitas vezes, assumia a forma da tuberculose, a doença do amor não correspondido. Os escravos também morriam de tristeza. E os índios, quando arrancados de seu contexto natural e obrigados ao trabalho. Se você tira do ser humano a perspectiva da consciência daquilo que ele é e o mantém em um estado semimorto, ele cai em depressão. É como entrar em um redemoinho.

A medicalização tem sido vista frequentemente como o caminho mais rápido para voltarmos à funcionalidade. Como a senhora vê essa opção?

Tenho um amigo que é médico de família e que deseja se tornar monge budista, e ele é absolutamente contra medicamentos, a não ser em casos extremos. Penso que está havendo uma banalização. Outro dia, conheci uma criança de 11 anos que estava sendo medicada com antidepressivos por causa de bullying. É difícil, claro, mas temos que aprender a superar as dificuldades. Se cada vez que eu tiver um desconforto ou uma dor, eu for medicada, a tendência é que eu perca a capacidade humana de superação. Se você tem insônia e toma remédios para dormir, logo você não poderá mais dormir sem eles e terá que consumir cada vez mais. Por isso necessitamos de bons médicos, de médicos éticos, que sejam capazes de discernir quando é realmente necessário medicar, porque há casos de depressão profunda e de síndrome do pânico, nas quais se justifica o uso, mas só durante o período de crise. Tomar remédios é parte da recuperação. Claro que há a depressão crônica, que é difícil de lidar, mas, de modo geral, há alternativas. Antes do século 19, antes da psicanálise, eram os religiosos, os xamãs e os monges que cumpriam o papel de auxiliar as pessoas com depressão. Buda tem uma coisa interessante sobre isso, que é sobre o conhecimento da mente humana. Só posso fazer funcionar bem aquilo que eu conheço, é preciso conhecer para usar, e isso diz respeito ao conhecimento de si mesmo, da sua mente, das suas limitações. Uma analogia que gosto muito é a de que existe um ícone em nossa tela de trabalho chamado sabedoria, que é a compreensão clara da realidade, e tudo que precisamos fazer é direcionar o nosso mouse para ele, colocar a nossa atenção no que é a sabedoria, sair da ignorância.

Em que consiste essa ignorância?

Muito do que nos leva ao sofrimento é a ignorância sobre a impermanência das coisas. As coisas mudam, nada permanece, tudo se transforma todo o tempo. Podemos direcionar a transformação, embora não possamos controlar nada. Em relação à depressão, é preciso saber que não precisamos estar sozinhos e medicalizados para atravessar essa dor. Podemos fazer essa travessia pedindo ajuda, estando juntos com os outros, buscando apoio, e com várias técnicas, não só com remédios.

A senhora falou sobre a imprensa e seu bombardeio de notícias negativas. A senhora é jornalista. Como vê o cenário mundial hoje e a pós-verdade que desafia os jornalistas?

Mas não é incrível? Não é impressionante isso? Na tradição budista, dizemos que devemos buscar dentro de nós mesmos a verdade, pois temos a capacidade de discernir o que é real e o que é falso. Todos nós temos essa capacidade. Sempre que vemos uma notícia, falando de política, por exemplo, o primeiro passo é pensar a quem ela interessa e por que está sendo divulgada naquele momento. É preciso ver além das aparências. Mas o que acontece é que nos acostumamos a olhar o mundo com superficialidade, só vemos as roupas que as pessoas vestem, se são gordas ou magras, qual a cor da pele... Somos incapazes de aprofundar a nossa visão sobre as coisas e as pessoas, de olhar com profundidade e enxergar a essência. Quando formos capazes de ultrapassar as aparências, aí sim, entraremos em contato com a realidade e não sentiremos ódio ou raiva de ninguém, nem mesmo daqueles que estão mentindo, porque, muitas vezes, a mentira é tudo que eles têm a oferecer naquele momento.

A máxima do “cada um dá aquilo que possui”.

Exatamente. Não é que não se vá punir os culpados, nada disso. Mas tentar compreender qual o contexto que formou aquele ser humano daquele jeito, que expectativas colocaram sobre ele, que causas e condições o formaram, para que ele se manifeste no mundo desta forma. E mesmo o castigo não será aplicado com ódio, com raiva, com esses sentimentos que são capazes de destruir comunidades, famílias, grupos, cidades inteiras.

Imagem ilustrativa da imagem "Muito do que nos leva ao sofrimento é a ignorância"
Foto: Adilton Venegeroles / Ag. A TARDE

Em seu livro, a senhora diz que o oposto da depressão não é a alegria. Mas a alegria tem sido considerada um imperativo, inclusive para o sucesso.

Sim. Conheço pessoas que, se chega alguém triste, saem imediatamente do local. Elas não podem sequer ficar perto de pessoas que estejam tristes, têm medo de se “contaminar” com a tristeza. Mas a verdade é que a tristeza faz parte da nossa vida e devemos estar preparados para lidar com ela, ela é tão natural quanto as fases do dia. Alguém que se diga permanentemente alegre soa mesmo duvidoso. A diferença é a seguinte: no budismo, encontramos um estado de contentamento com a existência que, mesmo se atravessamos dificuldades, dores ou sofrimentos, saberemos lidar com elas, atravessar esse oceano da existência, que é o nascimento, a doença, a velhice e a morte, em um barco seguro, que é o da sabedoria, da compreensão, da calma e da consciência, ao invés de se afogar.

Acaba-se estigmatizando quem corre à margem dessa alegria compulsória.

Sim, como se a tristeza fosse algo perigoso e mau, quando não é, e muitas vezes culpando quem está triste. No entanto, a tristeza é algo que, quando nos pega pelo pé, consegue nos puxar para baixo, que é a questão da depressão, e é mesmo complicado sair dela. Um amigo psiquiatra me disse, certa vez, que as pessoas que fazem meditação, e que já atravessaram uma depressão, costumam ficar mais atentas aos primeiros sintomas antes que ela se instale outra vez, e que eles são capazes de buscar coisas boas das quais possam se alimentar para resistir e não sucumbir. É um dos benefícios do autoconhecimento.

Podemos dizer que, de certo modo, foi a depressão que levou o Buda a alcançar a iluminação?

Tem alguma coisa sim. Quando eu me entristeço por algo que não é, isso pode me dar um impulso em busca daquilo que é, e esse foi realmente o caso do Buda. Ele era um homem muito rico, jovem, saudável, casado, pai de um filho, tinha tudo para ser feliz, mas ele se questionava sobre o sentido da vida, sobre as razões da dor e do sofrimento. E ele foi se entristecendo por isso, e nada mais o agradava. E ele só vai encontrar as respostas que busca na prática meditativa. No budismo se fala assim, que os seres celestiais não são capazes de acessar a sabedoria perfeita, porque quando nada falta, quando a vida é só alegria, fica mais difícil acessar a sabedoria, e ela é a maior riqueza que um ser humano pode ter. É muito importante nos questionarmos sobre quem somos e o que estamos fazendo nesse planeta. A vida não tem um só sentido, pode ter vários sentidos. E a depressão surge como um momento para repensar mais uma vez a existência, a morte, quem somos. Há um professor de yoga, Hermógenes, que era um homem maravilhoso – ele morreu com mais de 90 anos – e dizia que, no final de sua vida, adoraria criar uma nova religião, o desilusionismo, para que as pessoas, estudando, entendessem que a cada desilusão estarão mais próximas da verdade, o que seria motivo de grande alegria, não de tristeza

Penso que o modo como vivemos hoje vai na contramão da atenção plena. Estamos em todos os lugares virtualmente e, no entanto, nunca onde realmente estamos. E sempre projetados, graças ao apelo consumista, para o futuro, viagens que faremos, coisas que iremos comprar...

Sim. E isso tem a ver com a questão do pertencimento. É a ideia de que se tenho coisas de tal qualidade pertenço a determinado grupo. Nós usamos isso e somos usados por isso. E a origem é o medo de ser rejeitado, de ser posto no ostracismo, de não ser acolhido. Isso é muito doloroso para o ser humano, e a propaganda, que é algo maravilhoso, acaba nos levando a ficar reféns do consumismo. Eu preciso consumir para mostrar ao mundo que posso ser acolhido, respeitado, aceito, que tento condições de competir. Isso é um pequeno engodo, um pequeno erro, e devemos tomar cuidado com ele. Por isso que sempre falo sobre a necessidade de olhar as pessoas em profundidade. Certa vez fui num encontro, num desses resorts luxuosos, e a esposa de um grande empresário veio me dizer exatamente isso, como ela era obrigada a consumir continuamente para ser aceita nos círculos que frequentava, no qual consumir era quase uma obsessão. Eu a aconselhei a continuar a consumir então, mas a não ser vítima disso, e a levar sempre uma palavra nova aos seus círculos de amizade, um questionamento sobre o sentido da existência, sobre a morte, sobre o próprio consumismo. As amigas até poderiam achar meio chato no começo, mas aos poucos, certamente, acabariam por se interessar, porque essas são questões fundamentais para os seres humanos e se não lidamos com elas acabamos por mascarar aquilo que realmente importa. Teremos que tomar muitos remédios para preencher o vazio.

A senhora falou sobre o cuidado com a palavra. O que vemos, no entanto, é o contrário disso. Principalmente nas redes sociais.

Mas a tecnologia não é má. O que há de errado é a capacidade humana de lidar com ela. Estamos repetindo o modelo de uma educação discriminatória e opressiva nas redes sociais. Odiamos quem não é como desejamos ou quem é o que desejamos ser. Sinto que falta meio de campo, mediação. O que precisamos desenvolver é essa capacidade de mediação.

Como pacificar a mente sem cortar os vínculos com tudo aquilo que nos exige e nos cerca?

Há uma frase do Dalai Lama: “Não deixe que outras pessoas tirem a sua tranquilidade”, algo assim. Temos nossa paz interior, mas nos deixamos invadir pelo desequilíbrio dos outros. Tudo que devemos fazer é encontrar o nosso eixo e voltar a ele. Somos diferentes, e isso é bom, aquilo que nos provoca é o que nos leva ao crescimento, e nem sempre aquele que nos confronta é nosso inimigo. Muitas vezes, o outro simplesmente não tem a capacidade de compreensão daquilo que somos. Não se trata de pacificar a mente, porque ela é incessante e luminosa, ela está sempre saltando daqui para lá, e é linda e maravilhosa assim. O que realmente precisamos é nos conhecer e aceitar a impermanência de todas as coisas.

Como lidar com a morte, por exemplo?

A morte é natural e, no entanto, é um tabu. Todos morreremos. Somos finitos. Por que não viver então com plenitude e fazer o melhor, sabendo que está tudo interligado? Tudo aquilo que você fala, pensa e faz mexe na trama da vida, na sua e na de todos que você conhece. De que jeito você deseja mexer na vida das pessoas? Reclamamos demais, resmungamos demais... Se a vida é finita, por que não apreciar cada momento dela?

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